Ebola: a febre dos invisíveis

A rota da epidemia de Ebola se oculta sob o descaso silencioso dos países desenvolvidos motivados por política segregacionista e exploração econômica.

Por Sheila Fonseca, para o Vermelho

Epidemia de Ebola - Reprodução

A suspeita da chegada do vírus Ebola ao Brasil no último dia 9 através do imigrante vindo da Guiné, Souleymane Bah, reacendeu o debate sobre a epidemia que se alastra, agora não só pela África Oriental e Ocidental, mas também pela Europa e América. Felizmente a suspeita no Brasil foi descartada com exames negativos feitos pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mas segundo autoridades sanitárias é real a possibilidade de chegada do vírus ao país.

Ao se lançar um olhar sobre o continente africano, cenário original da doença, o que se avista é desolador. Uma mistura de séculos de exploração europeia e norte-americana, fome, racismo e abandono compõem o panorama que se tornou o viveiro ideal para o vírus da febre hemorrágica.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que a epidemia é a mais agressiva desde o surgimento do primeiro surto da doença em 1976, na aldeia de Bumba, às margens do rio Ebola, no antigo Zaire, atual República Democrática do Congo. Hoje o número de mortos é comparável às estatísticas de guerra, chegando a 4.493 vítimas fatais desde fevereiro deste ano e quase 9.000 infectados com a doença. E estima-se que os dados epidêmicos podem ser ainda maiores devido à subnotificação e precariedade do sistema de saúde de Serra Leoa, Libéria e Guiné na África Ocidental, os principais atingidos. Bruce Aylward, diretor-geral adjunto da OMS, afirmou em entrevista coletiva em Genebra, no dia 14 deste mês, que em dezembro poderão ser registrados entre 5.000 e 10.000 contágios por semana.


Sergio Rego médico e professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz | Foto: Divulgação

Segundo informações de um médico infectologista, consultor da OMS, que trabalhou durante cinco anos no continente africano e preferiu não se identificar, erros de classificação, além de motivações políticas e econômicas são a causa da atual epidemia. “Foi uma sucessão de erros e negligência que motivaram a epidemia atual. Desde a classificação incorreta de surto epidêmico quando já era uma epidemia instaurada desde a década de 80, até o atual descaso em se investir em pesquisas e tratamentos por desinteresse econômico e racismo institucional.”, relata o médico.

“Para se entender, a classificação de surto epidêmico fica circunspecta, por exemplo, a um quadro de surto em um vilarejo, um colégio, uma localidade pequena, fechada. E desde a década de 80, quando se referia a um surto epidêmico já era uma epidemia. Ainda hoje se ouve a imprensa e até algumas autoridades de saúde se referindo como surto. O que prejudica muito, porque se retira o interesse no investimento em pesquisas de medicamentos e vacinas, que sabemos bem, são muito caros. E eu não acredito que autoridades especializadas em segurança epidemiológica não saibam a diferença. Esse abrandamento na maneira de se referir a um problema grave na África tem motivações políticas, socioeconômicas e raciais.”, afirma a fonte da OMS.

E completa: “Soma-se a isso as condições precárias de higiene, falta de alimentação adequada, carência de profissionais de saúde e medicamentos, além de costumes locais como a prática de escarificação por curandeiros, em que os pacientes são escarificados e tem seus corpos açoitados através de leves batidas com galhos de ervas, visando a cura dos doentes, mas que na verdade só aumentam o contágio que se dá justamente através do sangue.”, revela.

Sergio Rego, médico e professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, coordenador do Programa de mestrado e doutorado em Bioética da Fiocruz / UFRJ /UFF/ UERJ, salienta que os costumes culturais da população dos países africanos atingidos são mais um desafio ao combate da doença. O médico tem acompanhado e discutido questões éticas relacionadas com a atual epidemia pelo Ebola na África e a preparação do Brasil para se prevenir e atuar em caso do aparecimento da doença no país, e afirma que a ajuda humanitária é o único meio eficaz de debelar a epidemia:

“Precisa-se intensificar a ajuda humanitária com envio de alimentos e montagem de hospitais de campanha, além do investimento urgente na construção de hospitais e postos bem aparelhados nos países atingidos na África. Essa é a maneira mais eficiente de conter uma pandemia. Porque os poucos hospitais existentes lá atuam em condições impossíveis de conter uma epidemia, colocando em risco até mesmo a vida de profissionais de saúde. Faltam alimentos nos hospitais, então as pessoas levam comida de casa aos pacientes, aumentando a transmissão. Hábitos locais, como a lavagem dos mortos, é outro grande desafio porque no momento do óbito é exatamente quando se dá o pico de carga viral e ainda se entra em contato com as secreções na lavagem. Então ali o contágio é altíssimo, quase que 100%.”, disse Sergio.

O governo brasileiro já anunciou pacote de ajuda humanitária para países da África Ocidental atingidos pela epidemia. O ministro da Saúde, Arthur Chioro, disse em entrevista coletiva no último dia 10, que o pacote está em análise na Casa Civil e na Presidência da República. Segundo Chioro, a OMS solicitou ao país o envio de alimentos, medicações e equipamentos, como geradores e caminhões, e o ministério já informou à Casa Civil a disponibilidade, de ambulâncias para serem enviadas aos países. O ministro acrescentou a possibilidade de incluir ajuda financeira e também material. "Fizemos a identificação de que tipo de reposta poderíamos dar e a decisão agora é coordenada pelo ministro das Relações Exteriores, pela Casa Civil e pela Presidenta", disse.

As fronteiras e a rota de imigração no Brasil

O Protocolo de Segurança Epidemiológica brasileiro prevê o monitoramento de imigrantes oriundos de países africanos atingidos pela epidemia e o ministro da Saúde alerta que o Brasil não possui voos regulares diretos, nem com escalas a nenhum dos países africanos atingidos até o momento.

Contudo, os aeroportos não são a única porta de entrada de imigrantes africanos no país. As fronteiras também são pontos de alto fluxo migratório. A região Sul, em cidades como Caxias do Sul, Lajeado e Passo Fundo, está na rota de imigração. E a região Norte, no Acre, mais precisamente na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia, é considerada a principal porta de entrada de imigrantes das regiões da África e Caribe.

Imigrantes haitianos disputam por comida em acampamento no Acre

Em entrevista no dia 11 de outubro, o ministro da Saúde descartou regiões de fronteira, como o Acre como uma possível porta de entrada do vírus Ebola no país, pois os imigrantes africanos, principalmente os senegaleses, demorariam de 45 a 60 dias, após a partida, até chegarem ao Estado. “É um período muito superior ao de incubação da doença, que é 21 dias” disse. No entanto, há relatos de imigrantes vindos do Senegal que demoram entre 11 e 15 dias de Dakar, capital do Senegal, até Rio Branco, capital do Estado do Acre.

De acordo com o Secretario de Estado de Justiça e Direitos Humanos, Nilson Mourão, já passaram mais de 26.000 imigrantes e refugiados pela fronteira desde o inicio do movimento migratório em 2010. Mourão afirma que os imigrantes refugiados que ultrapassam a tríplice fronteira são em sua maioria haitianos e senegaleses, e em menor proporção vindos de outras regiões da África “Esses imigrantes vem por motivos diversos. Em geral fugindo de perseguições políticas e guerras civis, ou de catástrofes como o terremoto que assolou o Haití, e surgem em busca de ajuda humanitária e da obtenção de um visto de permanência como refugiados.”

O secretário de Justiça e Direitos Humanos afirma que há uma preocupação maior, em decorrência da epidemia de Ebola, em ordenar o fluxo migratório e já foram solicitados pelo Governo do Acre, Secretaria de Saúde do Acre, e Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos, ao Governo Federal e ao Ministério da Saúde um plano estratégico “Já nos reunimos com o Governo Federal e Representantes do Ministério da Saúde para a implementação de um Posto de Triagem na Fronteira.”, disse o secretário.

“Hoje o critério é de acolhimento desses imigrantes, encaminhamento à Polícia Federal, para que possam obter o protocolo de permanência em caráter humanitário. Depois um encaminhamento ao sistema de saúde para verificação das condições de saúde dos imigrantes e aplicação de vacinas. Os senegaleses demoram em geral entre 11 e 15 dias para chegar até o Acre e estamos criando em conjunto com o ministério da Saúde um protocolo estratégico específico para intensificar esse monitoramento.”, completa.

Um morador da região da fronteira do Acre, que pesquisa e acompanha o fluxo migratório na fronteira acreana e pediu para não ser identificado, ressalta que a fronteira merece maior atenção e que hoje a imigração se dá de forma desordenada “Há muito pouco controle e critério nesse processo migratório. Eu moro próximo, em uma área de reserva e esses imigrantes surgem às dezenas, sem falar uma palavra no idioma português, se comunicando por gestos e pedindo trabalho. Quando posso auxilio dando dinheiro, roupas, calçados e eles seguem o seu caminho. Em geral eles vivem em condições de total precariedade. Amontoados em abrigos, com baixas condições sanitárias, o que favorece a proliferação de doenças. Já detectaram até casos de elefantíase nesses abrigos.” conta.

O morador também denuncia a exploração comercial da imigração “Quando chegam, já são encaminhados e cooptados imediatamente por empresários que tem interesse nessa mão de obra dos imigrantes, que é mais barata. Em geral são empregados pelo setor frigorífico, que é um trabalho extremamente duro e de baixa remuneração. Daqui eles migram para a região Sudeste, muitos deles para São Paulo. É quase que um fluxo de tráfico humano. São os novos navios negreiros.”, revela.

A secretária de Saúde do Acre, Suely Mello afirma que a Secretaria de Saúde trabalha no sentido de aumentar o controle na fronteira e que existe um grupo multidisciplinar atuando no treinamento de equipes de saúde, porém, ainda não há uma data para a instalação do posto de triagem “Nós, em conjunto com o ministério da Saúde e o Governo do Estado já criamos um plano de contingência para a definição desse fluxo de imigrantes. Possuímos uma equipe que trabalha junto com a vigilância sanitária, nos reunimos semanalmente, às quintas-feiras, para tratar do assunto. E já demos início ao treinamento de equipes de saúde para tratar de casos de suspeita de ebola. Estamos buscando apressar a criação de um posto de triagem na fronteira”

A desinformação prejudica o combate à doença

Informações desencontradas marcam o cenário da epidemia no mundo, causando confusão na população e atrapalhando a contenção do avanço da doença. Especialistas apontam que o alarmismo é um fator de risco para o aumento da epidemia.

Tom Frieden, diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças Americano (CDC), recentemente deu declaração comparando o surto de ebola à Aids, durante a reunião do Banco Mundial no dia 9 deste mês: “Em meus 30 anos de saúde pública, a única coisa como essa foi à Aids. Temos que trabalhar agora para que não se torne a nova Aids”, disse Frieden.


Palácio Mourisco Sede da Fiocruz referência no tratamento do Ebola |Foto: Acervo Fiocruz

Contudo, a comparação ente as doenças está longe de ser um consenso: “Essa declaração do Frieden é uma temeridade e coloca em cheque a imagem do CDC. Declarações de efeito como essa em geral são feitas com o intuito de chamar a atenção da comunidade internacional, mas são perigosas e geram ainda mais desinformação. Os portadores de HIV positivo já são vitimas de preconceito que vem sendo diminuído com campanhas de conscientização e essa declaração pode fazer com que os doentes retrocedam a um passado de estigma e isolamento.”, revela a fonte sigilosa da OMS.

E acrescenta: “Ebola e a Aids são doenças muito diferentes. O Ebola tem uma concentração viral e poder de contágio muito maior. É uma doença de alta transmissibilidade e taxa de letalidade de 60%. Que pode ser muito maior até devido a subnotificação, que lá é muito alta. É um vírus que é transmissível pelo suor, pelos fômites (utensílios do paciente). E o HIV não tem esse tipo de contágio. Por isso a declaração que ele faz é uma desinformação que só atrapalha. E esse tipo de coisa é que gera a subnotificação, porque gera preconceito”, completa.

O médico Sergio Rego também afirma que é necessário se ter cuidado com declarações feitas pela comunidade médica e aponta que o papel da imprensa na disseminação de informações corretas e na cobertura sem sensacionalismos como elemento fundamental para o combate à doença. “O protocolo de segurança epidemiológica brasileiro formulado para o Ebola está entre os mais eficientes do mundo. Informações de que o vírus poderia sofrer mutações, ou comparações com outras doenças atrapalham a compreensão e o combate. O ebola não é transmissível pelo ar nem pelo toque. A transmissão se dá através de secreções corporais como saliva, esperma, suor e sangue. As pessoas precisam confiar no protocolo epidemiológico criado que é eficiente. No momento o Brasil não corre risco, estamos preparados.”, diz Sergio.