Ladislau Dowbor: Voto Dilma, uma questão de bom senso
Nem a situação internacional preocupante, nem muito menos a dinâmica interna permitem aventuras, voos inseguros em nome da moralidade e do liberalismo.
Por Ladislau Dowbor*, na Carta Maior
Publicado 23/09/2014 15:25
Achei importante me posicionar relativamente às eleições presidenciais. Os que acompanham o meu trabalho sabem a centralidade que têm, na minha visão, a redução das desigualdades e o resgate da sustentabilidade ambiental. A própria economia, neste sentido, tem de responder a estes objetivos: o que queremos é viver melhor, este é o fim, o resto são meios. A presente tomada de posição também está ligada à vontade de buscar raciocínio numa área onde com facilidade os argumentos descem do cérebro para o fígado: as pessoas perdem de vista o que realmente importa. O clima de ódio, tão fortemente insuflado em particular pela mídia comercial, realmente não ajuda. Deixem-me dizer desde já que o catastrofismo apresentado é semelhante ao da véspera da Copa, e tem a mesma falta de fundamentos.
Gostaria também de me proteger contra a imediata rejeição por parte de quem acha que tudo que vem de outra banda é contaminado. Quando Ruth Cardoso, há anos, me pediu para ajudar no Comunidade Solidária, ao lado de Gilberto Gil, Zilda Arns e outros personagens que respeito, participei, sem remuneração, por achar que poderia ser útil. O objetivo maior, para mim, é o bem-estar da população. E também aprendi muito, em particular ao constatar que não basta um pouco de política social, precisávamos de uma política integrada de Estado para reerguer a base do país. Na época me criticaram à esquerda por ajudar o Comunidade Solidária, hoje poderão me criticar por apoiar a Dilma. Deem-me ao menos o crédito de que a minha posição não parte do fígado, mas dos conhecimentos que adquiri aplicando políticas de desenvolvimento e de inclusão em vários países, no quadro das Nações Unidas, e em vários segmentos de gestão pública e privada no Brasil.
O argumento central, de longe, é que o Brasil gerou um círculo virtuoso que não pode ser interrompido. Quanto mais se aproximam as eleições, sem dúvida, mais aparecem gritos de que a economia está quebrada, de que estamos num mar de lama e argumentos semelhantes. Nenhum deles se sustenta. O PIB estar murcho quando a economia mundial está em crise e as commodities básicas perderam mais de 15% do valor no mercado internacional não é surpresa. Tampouco é surpresa aparecer muito mais corrupção quando é combatida: quando tudo funciona a contento, há um silêncio solidário entre quem paga e quem recebe. E num país de 200 milhões de habitantes, 8 milhões de funcionários públicos e 5 milhões de empresas, há muita matéria prima para denúncias. Apresentei o amplo leque de opções de desvios em pequeno livro, Os estranhos caminhos do nosso dinheiro. Recomendo, está online, eu fiz a lição de casa, abri a caixa. Acreditem, já fiz este exercício para vários países, a pedido da ONU, eu sei o que são números e o que é cosmética. Follow the money, siga o dinheiro.
E o que importa mesmo é a dinâmica estrutural e de longo prazo. Aqui os dados são avassaladores. Temos os quase 40 milhões de brasileiros que saíram do buraco negro em que se encontravam, e isto em si já é quase milagroso, num país onde se criou uma ditadura por um miserável aumento de salário mínimo e fragmento de reforma agrária. Temos também os 20 milhões de empregos formais criados, um aumento do salário mínimo real da ordem de 70% e o menor desemprego da história, da ordem de 6%, dados que apontam para um marco de transformação estrutural. Aqui não há voo de galinha. Eu, por ofício de economista, acompanho os números. A esperança de vida ao nascer, efeito de alimentação, saúde e outros direitos básicos, passou de 65 para 74 anos: ou seja, o brasileiro tem praticamente 10 anos de vida a mais para falar como era bom antigamente.
No plano ambiental, a redução de desmatamento da Amazônia de 28 para 5 mil quilômetros quadrados é um imenso avanço. E meio-ambiente é muito mais que o verde. Mais de um milhão de famílias passaram a ter moradias decentes, o financiamento do pequeno e médio agricultor passou de 2,5 bilhões para 25 atualmente, há uma batalha em curso pelo fim dos lixões, criou-se um PAC de mobilidade urbana – desastre acumulado por décadas de descaso do transporte público – tudo isto é meio ambiente. Nesta dinâmica não se deve mexer, a pretexto de eleger políticos que poderão fazer o mesmo de maneira mais eficiente. Para ampliar as políticas atuais e aprofundá-las, em termos de gestão o melhor é manter quem as criou e domina as dinâmicas, do que entrar no caos tradicional da descontinuidade administrativa.
A solidez dos avanços de hoje encontram sem dúvida pontos de apoio fundamentais que foram a aprovação da constituição de 1988, que nos devolveu regras de jogo democráticas, e a ruptura da hiperinflação em 1994, que recuperou o sentido das contas e do cálculo financeiro. Mas também enfrentamos a perversa herança de meados dos anos 1990, que foi a da taxa Selic, com monumentais transferências de dinheiro público para os bancos: as tentativas de reduzi-la encontram a resistência feroz dos mesmos interesses que hoje estão em campanha. Outra herança pesada foi a autorização em 1997 do financiamento corporativo das campanhas eleitorais. O resultado é que temos um congresso com bancadas ruralista, das empreiteiras, dos grandes bancos, das montadoras, da grande mídia, e ficamos à procura da bancada cidadã: os interesses privados estão dentro do sistema público, com todo o desequilíbrio que isto implica. São estes mesmos grupos que dificultam as transformações que querem recuperar o poder. O tripé que realmente interessa é o resgate da representatividade dos eleitos, o controle do sistema de intermediação financeira e o equilíbrio do sistema tributário: reforma política, reforma financeira, reforma tributária.
Os imensos avanços que tivemos nos últimos anos, e que precisam continuar, se deram dentro deste quadro de restrições. De certa forma, o próprio desenvolvimento conseguido exige um marco institucional modernizado. Temos um ministro do STF que “pediu vistas” na votação sobre a inconstitucionalidade que representa o financiamento eleitoral por corporações, apesar de estarem já garantidos os 6 votos que dão a maioria à sua proibição. São mais dois anos de privilégios e de deformação política. A oposição demanda a volta do controle do Banco Central pelos bancos, na linha da chamada “independência”. A direita ostenta o “impostômetro” quando se trata não de aumentar os impostos, mas de torná-los justos. As soluções não estão na volta para trás.
De certa forma, o corpo econômico e social do país cresceu mais do que a camisa institucional que o veste, e que hoje o trava. Nesta tensão, há os que querem a volta ao passado, à restrição das políticas sociais, à redução das políticas públicas, ao travamento da subida da base da pirâmide que os assusta. E há os que querem dinamizar o processo virtuoso gerado por meio de mudanças estruturais. Nos protestos, misturam-se assim por vezes os que são indignados pelos avanços, e os que são indignados porque não se avança o suficiente. A verdade é que estamos sim enfrentando entraves institucionais poderosos – daí a importância de uma constituinte que modernize o sistema – mas para que os entraves sejam rompidos, ou atenuados, precisamos manter e expandir as políticas de desenvolvimento em curso.
Nem a situação internacional preocupante, nem muito menos a dinâmica interna permitem aventuras, voos inseguros em nome da moralidade e do liberalismo, argumentos que clamam por um voto “contra”, mas que não apresentam outra perspectiva senão o da reconstituição do sistema de privilégios de sempre. A verdade é que a máquina administrativa herdada foi feita para administrar privilégios, não para prestar serviços. E os privilegiados a querem de volta. A dinâmica de transformação em curso é preciosa demais para que a travemos com aventuras. Precisamos de mudanças sim, mas de mudanças para a frente, não de um retrocesso liberal.
*Ladislau Dowbor é formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S” (Sebrae e outros). Atua como Conselheiro no Instituto Polis, CENPEC, IDEC, Instituto Paulo Freire, Conselho da Cidade de São Paulo e outras instituições.