Burocratização do direito internacional e a impunidade de Israel
O primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu garantiu que a ofensiva contra Gaza continua. Uma série de ataques aéreos conduzia os chamados “assassinatos seletivos” de líderes do Hamas, matando inclusive civis e crianças, na quinta-feira (21), após Netanyahu definir a segurança de Israel como objetivo da “operação” de 44 dias de bombardeios preenchidos por crimes de guerra. O direito internacional, por outro lado, arrisca tornar-se novamente retórico.
Por Moara Crivelente*, para o Vermelho
Publicado 22/08/2014 14:59
“Apenas a garantia da segurança israelense trará um fim a esta operação. Por isso, continuarei a operar com firmeza e insistência. A operação Margem Protetora não está encerrada. Nem por um minuto. Estamos falando de uma campanha contínua,” garantiu Netanyahu, em discurso televisionado, em que a repetição da palavra “operação”, se não foi vício de tradução da emissora britânica BBC, revela o patente tom “estratégico-militar” no linguajar israelense oficial quando o discurso aborda a morte dos palestinos.
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Netanyahu está seguro da sua decisão: uma nova pesquisa de opinião publicada nesta sexta-feira (22) pelo jornal israelense Haaretz mostra que ele continua respaldado, como mostraram resultados anteriores, em sua decisão de manter e até prolongar a ofensiva contra os palestinos. A maior parte dos entrevistados, que apoia decisivamente o Exército – um resultado dos recursos massivos destinados à propaganda – opina que o objetivo final deve ser a derrubada do governo na Faixa de Gaza, ou, como ficou expresso repetidas vezes, "eliminar o Hamas" do poder.
Na noite de terça-feira (19), na Cidade de Gaza, cinco bombas de uma tonelada atingiram o edifício de seis andares em que fica a casa de Mohamed Deif, líder das Brigadas Ezedin al-Qassam, ligadas ao Hamas. Sua esposa Widad Mustafa e seu bebê de sete meses foram mortos na tentativa de “assassinato seletivo”, um termo empregado também pelos Estados Unidos em suas operações criminosas. Fontes militares de Israel citadas pela BBC disseram que suas informações garantiam a presença de Deif na casa e que não era possível qualquer pessoa sobreviver ao ataque – ou seja, as mortes da família e outros residentes do edifício foram previstas, mas isso não é novidade.
Na quinta (21), mais bombardeios mataram três líderes do Hamas – um partido à frente do governo e da resistência armada em Gaza, mas taxado de “organização terrorista” por Israel para legitimar as repetidas agressões contra todo o enclave. Mohammed Abu Shamalah, Raed Attar e Mohammed Barhoum foram mortos. O ministro da Defesa Moshe Ya’alon declarou que o Exército havia matado “centenas de terroristas e continuará a fazê-lo”, e as declarações oficiais continuam sendo mesuradas a partir das supostas "brechas" no direito internacional pelas equipes jurídicas que trabalham em ligação direta com o aparato militar e propagandístico de Israel.
No território sitiado, as vítimas fatais se acumulam – já são cerca de 2.100, majoritariamente civis e mais de 500 crianças – e quase 1,8 milhão de palestinos vivem com pouca ou nenhuma energia elétrica e água, devido à destruição da infraestrutura básica que afetou também dezenas de hospitais e a indústria alimentícia. Defensores internacionais dos direitos humanos dizem que Israel impõe “jogos burocráticos” para impedir a sua entrada em Gaza e regula a entrada da assistência humanitária emergencial.
Além disso, os bombardeios também têm atingido estruturas de assistência e serviços da ONU e seus funcionários: mais de 10 pessoas do corpo humanitário, supostamente protegido pelo direito internacional, também morreram, mas eles tinham nomes árabes e, como todos os palestinos de Gaza, são vistos como culpados por sua própria morte, principalmente por apoiarem ou apenas dividirem um território com a resistência, ou “os terroristas”.
Burocratização do Direito Internacional e da proteção humanitária
Ainda em 2008, o canadense William Schabas, especialista em Direito Internacional Penal nomeado em 11 de agosto pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU para liderar a nova investigação sobre a operação israelense – a segunda em cinco anos – escreveu um artigo em que discutia a prevenção e a punição do crime de genocídio.
No texto, Schabas faz referência a uma das principais polêmicas nestas situações – a definição do crime – desenroladas enquanto as evidências parecem moralmente suficientes para comprovar a agressão multidimensional e a morte infringida a um povo. Juridicamente, entretanto, o emprego do termo “genocídio” pressupõe requisitos básicos e quase inviáveis, como a comprovação de uma “intencionalidade” de eliminar um grupo específico.
A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Resolução 260 referente à Convenção para a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio em dezembro de 1948. Israel, provavelmente devido ao holocausto dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, tragédia que deu sustentação e narrativa à criação desse Estado, assinou o documento no mesmo ano e ratificou-o em 1950. Já a Palestina, cenário de outro (ou vários) massacre(s) no mesmo momento e por causa dele – mas reconhecida como Estado (observador não membro) pela Assembleia Geral das Nações Unidas apenas em novembro de 2012 – assinou a Convenção em abril de 2014, no conjunto dos esforços por sua integração enquanto sujeito do Direito Internacional.
A Convenção, escreve Schabas, em 2008, foi o primeiro tratado relativo aos direitos humanos adotado pela Assembleia Geral da ONU, mas é amplamente criticada por sua abrangência limitada na abordagem das atrocidades massivas, principalmente devido à limitação da definição do termo genocídio. Ao invés de expandi-lo, o conceito de “crimes contra a humanidade” foi o que evoluiu. Assim, o genocídio foi deixado onde ocupa um lugar especial enquanto “o crime dos crimes”, segundo o professor. Mas o “denominar” tem peso e tem medida, e o termo “genocídio” aplica-se apenas a casos escolhidos a dedo.
De acordo com a Convenção e definições em outros documentos, genocídio é “um crime de destruição intencional de um grupo nacional, étnico, racial e religioso, no todo ou em parte.” Ele é também definido no Estatuto de Roma de 2002, que estabelece o Tribunal Penal Internacional (TPI), ao qual as autoridades palestinas consideram aderir para denunciar os líderes israelenses por trás dos crimes da expansiva ocupação militar e racista da Palestina, já que não podem contar com o Conselho de Segurança da ONU em sua possibilidade de referir o caso ao TPI devido ao veto dos Estados Unidos e, provavelmente, da França e do Reino Unido. Os palestinos têm um longo histórico de massacres, limpezas étnicas, devastação de centenas de vilas e milhares de lares, a colonização e outros episódios cotidianos, para apresentar como evidências da “intencionalidade”.
Mais de 500 cartas dirigidas à própria ONU desde 2000 pelas autoridades palestinas em denúncia das políticas e práticas do regime israelense também são testemunhos. A eles se soma ainda o relatório da Missão das Nações Unidas para Averiguação dos Fatos divulgado em setembro de 2009 pelo líder da missão, o juiz Richard Goldstone, após mais uma “operação”, a Chumbo Fundido, em que as forças israelenses mataram cerca de 1.400 palestinos com bombardeios durante 22 dias contra Gaza e deixaram o enclave sitiado mais uma vez devastado. O documento concluiu que crimes de guerra e “possíveis crimes contra a humanidade” – com ênfase para a cautela no emprego do termo – foram cometidos, mas ainda não há providências concretas a respeito. Assim, a demanda dos palestinos pelo fim do arrasador bloqueio imposto há quase oito anos por Israel a uma área onde já se tinha movimentação limitada desde 1991 – e em que sucessivos eventos de "experimentos" de novos armamentos, como testemunharam até mesmo soldades israelenses – parece minimanente razoável.
Condescendência, cumplicidade e impunidade
Voltemos a 1975, quando a Resolução 3379 da Assembleia Geral das Nações Unidas determinou que o sionismo – ideologia disfarçada de preceito religioso para justificar a política europeia de colonização da Palestina à custa do povo árabe dessa região – é “uma forma de racismo e de discriminação racial.” Porém, no escopo da condescendência internacional – ou da cumplicidade – que falha em responsabilizar as autoridades israelenses, aquela resolução foi revogada em 1991, uma condição de Israel para participar no incipiente “processo de paz” que apenas serviu para lhe garantir a extensão da ocupação sobre os territórios e as vidas dos palestinos.
Na base da ocupação estão políticas e práticas que coincidem com inúmeros artigos referentes às condutas proibidas, em específico, pela quarta Convenção de Genebra Sobre a Proteção dos Civis em Tempos de Guerra, em vigor desde 1950, e que rechaçam as responsabilidades da “Potência Ocupante”, como Israel é classificado pela ONU, embora o regime israelense rechace essa representação. Nesta condição, as detenções – inclusive de crianças e parlamentares – massivas e ilegais perante o direito internacional, embora "regulamentadas" em Israel, as demolições de casas, o regime militar imposto aos palestinos em seus territórios ocupados, entre diversas outras políticas que submetem a população palestina ao empobrecimento enquanto usurpa-lhe os territórios para fins de colonização são algumas das provas visíveis da ocupação.
Israel viola diversas provisões da Convenção, como a relativa ao tratamento das pessoas protegidas (“que, em dado momento e em qualquer forma, se encontrem, em caso de conflito ou ocupação, nas mãos de um envolvido no conflito ou da Potência Ocupante da qual elas não são nacionais”), dos detidos, da assistência humanitária, as condições de trabalho e movimentação, os julgamentos e as leis penais, as deportações, transferência ou evacuação, a destruição de propriedades, enfim, uma miríade de pontos que Israel transgride cotidianamente e inclusive através de leis que seus juristas elaboram para regularizar internamente a violação abrangente do direito internacional humanitário. Além disso, o regime nega rotundamente “estar em conflito (tratam-se de ‘operações’)” e ser “uma potência ocupante”.
Tudo gira em torno do jogo de palavras e de pressões políticas-econômicas que dão sustentação ao regime racista de Israel e à ocupação da Palestina. Além disso, as polêmicas criadas deliberadamente, as inúmeras brechas nos instrumentos do direito internacional e o espetáculo de ilusionismo garantido pelo aparato jurídico, acadêmico e midiático que presta suporte e legitimidade – ainda que inventada – aos crimes israelenses continuam devendo ser confrontados para que se encerre o ciclo eterno no genocídio dos palestinos.
*Moara Crivelente é cientista política e jornalista, fez parte da redação do Portal Vermelho e integra o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)