Lira Neto fala sobre o terceiro volume de seu livro "Getúlio"
No mês que marca 60 anos do suicídio de Getúlio Vargas, o jornalista Lira Neto lança o último volume da trilogia que aborda detalhes da vida de uma das personalidades brasileiras mais marcantes da história.
Publicado 16/08/2014 18:01
Em 24 de agosto de 1954, o então presidente da república Getúlio Dornelles Vargas encerrou um dos capítulos mais dramáticos da história brasileira com um tiro no peito. Nas próprias palavras, saiu “da vida para entrar na história”. O episódio ainda desperta estudos e interpretações. Natural de São Borja, no Rio Grande do Sul, Getúlio nunca foi unanimidade e, passados 60 anos de sua morte, seu nome ainda desperta reações de admiração ou repulsa.
E foi esse personagem amado e odiado em diferentes proporções que Lira Neto desvendou numa trilogia biográfica que se encerra agora. Em Getúlio (1945-1954) – Da volta pela consagração popular ao suicídio (Companhia das Letras) o jornalista cearense conta o período em que o ex-presidente, atormentado pela morte, planejava seu retorno à política. Usando a correspondência de Getúlio com sua filha, Alzira Vargas, e um livro de memórias que ela deixou incompleto, Lira apresenta um personagem que vivia entre a aclamação popular e a dificuldade de pagar as próprias contas. Em entrevista ao jornalista Marcos Campos, do jornal O POVO, do Ceará, o biógrafo revela mais detalhes sobre o livro.
Getúlio foi seu projeto biográfico mais demorado e ambicioso. Como se sente depois de encerrar essa história?
No momento, sinto um misto de sensação de dever cumprido e, confesso, certo vazio. Nos últimos cinco anos, dediquei-me exaustivamente a biografar Getúlio. Passei meia década de minha vida debruçado sobre uma montanha de documentos, livros, filmes e revistas de época. Não há como o biógrafo deixar de se envolver com o biografado, com o tema de sua pesquisa. Apesar de buscar manter sempre um distanciamento crítico em relação ao objeto de trabalho, a tarefa acaba por nos absorver, aproximando-se de uma verdadeira obsessão. Você se pega tendo insônias diante da envergadura da tarefa. Quando consegue pregar o olho, arrisca-se a sonhar – e isso, no meu caso, aconteceu várias vezes – com o biografado.
Por onde começou o processo de pesquisa?
Dediquei o primeiro ano de trabalho inteiramente a ler toda a vasta bibliografia existente sobre Getúlio, incluindo perfis biográficos, relatos memorialísticos, ensaios e análises acadêmicas nas mais diversas áreas, como história, ciência política, sociologia e economia. Em seguida, procurei me familiarizar e dar conta do arquivo pessoal de Getúlio, um arsenal de centenas de milhares de documentos, hoje sob a guarda da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Também foi preciso consultar, com a ajuda de pesquisadores contratados, dezenas de arquivos públicos e particulares, no Brasil e no exterior. O trabalho envolveu pesquisa na Alemanha, Itália, Estados Unidos, Inglaterra e Argentina.
Getúlio Vargas talvez seja o ex-presidente que mais teve a vida retratada em filmes, livros e outros meios. O que você queria trazer nessa trilogia?
Getúlio, sem dúvida, é o personagem da história brasileira mais revisitado pelo cinema, pela literatura, pela música popular e pela historiografia propriamente dita. Cada um dos três volumes que escrevi conta com cerca de cem páginas só de referências às fontes utilizadas durante a pesquisa. Ainda assim, faltava uma biografia jornalística moderna, mais exaustiva e o mais isenta possível sobre esse indivíduo tão controverso e contraditório, capaz até hoje, 60 anos após sua morte, de despertar sentimentos tão radicais de devoção e repulsa. Meu objetivo foi o de articular a dimensão da vida pública de Getúlio com a dimensão de sua vida privada, para tentar estabelecer conexões e indagar de que modo essas duas dimensões se impactaram mutuamente.
Cada livro da trilogia cobre um período diferente, com aspectos históricos particulares e diferentes atuações do biografado. Getúlio foi mudando ao longo da história?
Na verdade, ao contrário do que muitos costumam dizer, não houve “três Getúlios”, ou seja, “o revolucionário de 30”, “o ditador do Estado Novo” e o “democrata nacionalista” dos anos 50. A divisão em três volumes obedeceu a contingências metodológicas e editoriais. Como bem já salientou a cientista política Maria Celina D`Araújo, uma das maiores autoridades acadêmicas quando o assunto é a Era Vargas (e que, para minha honra, assina a orelha do segundo volume), Getúlio foi um só, apesar de todas as suas conhecidas ambivalências. Entretanto, foi afetado e envolvido por uma série de grandes mudanças na sociedade brasileira que ele próprio ajudou a engendrar. Para ficarmos em um exemplo ilustrativo, podemos verificar que, ao longo do Estado Novo, o regime que Getúlio ajudou a construir uma sociedade urbana de massas em um país antes essencialmente agrário. E é essa nova sociedade de massas que servirá de sustentáculo à sua volta ao poder em 1951, após uma consagradora votação popular.
Este terceiro volume usou muito da correspondência de Getúlio com sua filha Alzira Vargas como fonte. O que essas cartas revelam?
Para este terceiro volume, lancei mão de documentos ainda pouco conhecidos da historiografia e, em sua grande parte, praticamente inédito. São as centenas de cartas trocadas entre Getúlio e a filha, Alzira, no período compreendido entre 1945 e 1954. São mais de 1600 páginas manuscritas, onde se pode perceber todo o xadrez político envolvido na articulação para a volta ao poder por meio das eleições presidenciais de 1950. Ali estão reveladas todas as artimanhas e astúcias típicas de Getúlio, mas também suas hesitações, angústias e sobressaltos. Um detalhe salta aos olhos na leitura desse material: após 15 anos no poder, Getúlio tinha dificuldades notórias de pagar as próprias contas a cada final de mês. Mantinha em São Borja um estilo de vida espartano, mas mesmo assim ainda se via às voltas com apertos financeiros. Conclusão: jamais utilizara o poder em benefício próprio. Uma qualidade rara nos dias de hoje e, à época, reconhecida mesmo por alguns de seus mais furiosos adversários.
Em 1960, Alzira Vargas escreveu o livro Getúlio Vargas, meu pai. O que essa correspondência, a que você teve acesso, acrescenta àquele relato da filha?
O livro de Alzira, um best-seller à época, encerra a narrativa com a instauração do Estado Novo. Isto é, não cobre os acontecimentos relacionados nesse terceiro volume da biografia e, portanto, não abrange o período das cartas trocadas por ela com o pai enquanto ele se encontrava em São Borja, após ser deposto em 1945. Além dessas cartas, também tive acesso aos rascunhos do segundo livro de memórias de Alzira, que ficou inacabado e jamais foi publicado. A crise de agosto de 1954, por exemplo, é contada por ela nesse segundo volume, de forma inédita, com riquezas de detalhes, a partir de uma perspectiva notoriamente subjetiva e parcial, mas revelando importantes detalhes de bastidores e do cotidiano familiar.
Que legado você acha que o Getúlio deixou?
Getúlio, inegavelmente, modernizou o Brasil. Em 1930, pegou um país agrário, semifeudal e, no espaço de pouco mais de duas décadas, o conduziu para o rumo do desenvolvimento. O projeto nacional desenvolvimentista nos deixou legados indiscutíveis, como a Petrobras, a siderúrgica de Volta Redonda, o BNDES e o Banco do Nordeste, entre tantos outros. Também é evidente a herança positiva das leis trabalhistas, que estabeleceu relativo equilíbrio na relação entre capital e trabalho em um país, do ponto de vista histórico, recém-saído da escravidão. Isso não significa que o legado de Getúlio seja inteiramente positivo. A ditadura do Estado Novo permanece como uma nódoa indelével em nossa história. O cerceamento das liberdades, a censura à imprensa, a perseguição feroz a intelectuais e sindicalistas, tudo isso merece crítica veemente. Portanto, é impossível analisar a trajetória de Getúlio por uma única perspectiva, encará-lo historicamente de modo maniqueista, reducionista. Como bem escreve o historiador Boris Fausto, na quarta capa do primeiro volume, “Getúlio é, para o bem e para o mal, a figura mais importante da história brasileira no século XX”.