Para deter o massacre palestino, é preciso responsabilizar Israel
Israel defende-se com manipulações midiáticas, rechaça críticas ao massacre palestino, promove falsas elucubrações filosóficas e acadêmicas sobre a “guerra justa” e investe na distorção do direito internacional humanitário. Em 2009, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas confirmou os crimes de guerra perpetrados na ofensiva Chumbo Fundido, mas arriscamos ver o destino do seu relatório repetir-se na investigação do atual massacre: impunidade.
Por Moara Crivelente, da Redação do Vermelho
Publicado 01/08/2014 17:11
O repúdio global à ocupação da Palestina por Israel e às ofensivas de que é acompanhada esta política é exponencial. Movimentos sociais de todo o mundo levantaram-se nas últimas semanas para protestos fortalecidos devido ao assombro com a chacina na Faixa de Gaza, onde cerca de 80% das vítimas entre as quase 1.500 pessoas mortas até hoje eram civis, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). Em Israel, também, as vozes contrárias à política genocida do seu governo proliferam-se.
Entre as campanhas propostas ressalto um apelo fundamental, além da essencial libertação da Palestina: o fim da impunidade. Desde que foi criado, em 1948, o Estado de Israel continuou se expandindo à custa da repetição, ao longo das quase sete décadas seguintes, do massacre, do despojo, da segregação, da expulsão e do encarceramento massivo dos palestinos, que se recusam a deixar o espírito “quebrar”, como se diz no linguajar “estratégico” das grandes potências que enfrentam uma resistência obstinada. Não é à toa que trabalhadores de todo o mundo identificam-se com a causa palestina.
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Neste sentido, é preciso resgatar do esquecimento o relatório publicado pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em setembro de 2009, com as conclusões da Missão de Averiguação dos Fatos enviada a Gaza e às cercanias para investigar as denúncias de crimes de guerra cometidos durante a “operação Chumbo Fundido”, que durou 22 dias, entre o final de dezembro de 2008 e meados de janeiro de 2009, matando cerca de 1.400 pessoas e causando devastação.
O documento que se convencionou denominar “Relatório Goldstone” – devido ao nome do juiz encarregado da missão, o sul-africano e judeu Richard Goldstone – comprova em mais de 500 páginas de pareceres, testemunhos de palestinos e israelenses e descrições da região, que crimes de guerra e “possíveis crimes contra a humanidade” foram cometidos pelo Exército de Israel, apontando também para violações que teriam sido cometidas pelas forças da resistência palestina, sobretudo as Brigadas Ezedeen Al-Qassam, ligadas ao Hamas, partido à frente do governo em Gaza.
Um à parte relevante pode ser dedicado à contradição inerente ao estatuto das brigadas e do próprio Hamas: enquanto as autoridades israelenses os classificam de “terroristas” ou “combatentes ilegais” para justificar o total rechaço aos princípios direito internacional humanitário quando os combatem – ou assassinam – também ignoram a sua própria linha de raciocínio ao usar exatamente o direito internacional para acusar a resistência palestina de também ter cometido “crimes de guerra”.
Apesar destas zonas cinzentas, o relatório deve sair da gaveta para análise, sobretudo porque praticamente todos os pontos que analisa a fundo são repetições notadas na atual ofensiva contra Gaza, “Margem Protetora”, à exceção, principalmente, do uso de fósforo branco e tungstênio, armas químicas proibidas, contra áreas habitadas do território palestino sitiado. As vítimas, durante a ofensiva de 2008-2009, apresentavam queimaduras tão graves que chegavam a perder os membros atingidos.
Foto: AP
A propósito, a resposta israelense às acusações de uso dessas armas ilegais foi a de que isso só ocorreu em “zonas abertas” e não habitadas, para efeitos de iluminação noturna. Na atual ofensiva, porém, o Exército de Israel parece ter descoberto a existência de sinalizadores, já que muitas das imagens divulgadas por esses dias têm o efeito sombrio da escuridão assim iluminada. A escuridão, por sua vez, resulta dos ataques às redes elétricas e a um racionamento já em vigor há meses, devido ao bloqueio a Gaza.
Impunidade
Das repetições, valem destaque as conclusões sobre a destruição massiva e disseminada de milhares de residências, muitas vezes vitimando famílias inteiras. Além disso, estruturas da Agência das Nações Unidas para Assistência e Refugiados (UNRWA), que atende a mais de um milhão de pessoas entre os 1,8 milhão de residentes em Gaza, também foram atingidas, o que constitui outro crime de guerra, uma vez que se trata de pessoal e serviços humanitários.
Nesta semana, o bombardeio de uma escola que abrigava 3.300 palestinos – após a 17ª vez em que a UNRWA advertiu o Exército sobre a sua localização – matou 16 pessoas, entre crianças e funcionários da escola, o que levou o comissário da agência a fazer um apelo emocionado pela responsabilização e pelo fim da “carnificina” que é motivo de “vergonha universal”.
Foto: Reuters
Hospitais abarrotados forçosamente evacuados, mesquitas, igrejas, poços de água, redes de esgoto e plantas de energia elétrica são também estruturas que não se enquadram no que o direito internacional humanitário – através de diversas convenções e protocolos sobre a proteção dos civis durante conflitos armados – classifica de “alvos militares legítimos”. Entretanto, são grande parte dos locais destruídos, embora o Exército de Israel afirme oficialmente que seu objetivo é a destruição da “infraestrutura do terror”, especialmente os túneis subterrâneos que afirma serem usados para transportar armas e invadir o território israelense.
Outros pontos ressaltados pelo Relatório Goldstone, e que se repetem na atual ofensiva, são os ataques deliberados contra a população civil, o que inclui o extermínio de famílias inteiras em massacres quase diários. Além dos bombardeios aéreos, o documento analisou as instruções dadas pelo Exército aos seus combatentes e citou testemunhos coletados pela organização de soldados Quebrando o Silêncio (Breaking the Silence) sobre a insuficiência das informações recebidas.
Ainda em 2012, em conversa com a jornalista do diário israelense Haaretz, Amira Hass, que cobriu aquela e a atual ofensiva, ouvi que os soldados não sabiam o que faziam e não eram informados dos procedimentos ou dos objetivos da “operação militar”. Eles “davam declarações que faziam pouco sentido e informações incorretas” quando eram entrevistados, disse ela. Mesmo assim, eram, como hoje, os protagonistas das propagadas nacionalistas de guerra e do “esforço heroico” oferecido à “população inocente de Israel”.
Manipular o direito internacional para conduzir a ofensiva
Entre os principais argumentos elaborados pela Advocacia Geral Militar – órgão institucionalizado em 1950 para a assessoria jurídica na condução da guerra – do Exército israelense contra as críticas internacionais e as acusações de crimes de guerra está a de que o Hamas usa os civis, as maiores vítimas das ofensivas, como “escudos humanos”, já que “os terroristas” – a resistência composta basicamente de voluntários que veem suas famílias e vizinhos morrerem diariamente – “disparam foguetes contra Israel desde áreas habitadas” ou armazenam ali seus armamentos.
O Relatório Goldstone concluiu que não havia evidências para corroborar a alegação israelense, que pretendia desresponsabilizar Israel pelas mortes massivas de civis; o Hamas também negou a acusação, tanto em 2008 quanto neste mês. Ainda assim, lembrou Amira Hass: a Faixa de Gaza, um território de 360 quilômetros quadrados sitiado há oito anos, é um dos locais mais densamente povoados do mundo.
Outra forma de se eximir é a propaganda do Exército israelense – o “Exército moral”, como o classificam seus defensores – sobre os panfletos despejados desde aviões ou mensagens por rádio ou celular e chamadas telefônicas em que avisam aos civis que suas casas serão bombardeadas. Algumas afirmam: “Deixe esta área imediatamente, pois ela será atingida em quatro minutos” e frases afins. Um panfleto lançado em 2008 concluía: “Você foi avisado!”, e é assim que as autoridades israelenses alegam cumprir a sugestão da quarta Convenção de Genebra Relativa à Proteção de Pessoas Civis em Tempos de Guerra, de 1949, para que “todos os meios possíveis” sejam adotados para evitar as mortes de civis.
As respostas ao Relatório Goldstone foram as mais variadas, mas a virulência da reação do governo israelense e de comunidades sionistas em várias partes do globo foi intimidante e, embora especialistas tenham analisado as respostas concluindo que não havia argumentos suficientes para refutar o documento, Goldstone, que foi rechaçado pela comunidade judaica do seu país, voltou atrás e se disse “arrependido”, declaração amplamente reproduzida pelos jornais israelenses e sionistas pelo mundo, temerosos que são pela imagem de autoridades israelenses no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional, em Haia, para onde também devem ser encaminhados pelas violações cometidas na ocupação geral da Palestina.
O Conselho de Direitos Humanos voltou a decidir por uma investigação das novas denúncias de crimes de guerra com apenas um voto contrário entre os 47 membros: o dos Estados Unidos, patrocinador oficial da violência e da impunidade israelense, que garante há décadas o veto a qualquer resolução consequente do Conselho de Segurança. O Brasil, membro do Conselho de Direitos Humanos que já havia declarado sua posição, condenou na sessão de 25 de julho as decisões de Israel, “a potência ocupante”, de agir “à custa da população civil, com o uso desproporcional da força”, embora também condenasse os foguetes lançados pelas brigadas da resistência palestina, rechaçando ainda o bloqueio contra Gaza e a expansão da ocupação israelense ilegal sobre os territórios palestinos. Em 25 de julho de 2014, a história ofereceu outra oportunidade e é preciso defendê-la.