Ariano, cumplicidade e afeto na relação com os comunistas
A política, a cultura e a arte são elementos que se entrelaçam não só na vasta produção literária de Ariano Suassuna, escritor e dramaturgo, mas em toda a trajetória de vida desse paraibano/pernambucano, que faleceu esta semana.
Publicado 25/07/2014 10:18
Nacionalista ferrenho e defensor vigoroso da cultura brasileira e nordestina pode-se dizer que Ariano manteve uma relação com a política desde seu nascimento, em 1927, filho que era do ex-governador da Paraíba, João Urbano Suassuna, assassinado no Rio de Janeiro, em 1930.
Uma relação que, ao longo do tempo, foi se tornando cada vez mais explícita e na qual se inclui a convivência com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) marcada pela cumplicidade, pelo afeto e pela convergência de pensamento sobre o presente e o futuro do país.
Na entrevista a seguir, Luciano Siqueira, vice-prefeito do Recife e dirigente estadual e nacional do partido, traduz essa afinidade entre o mestre Ariano e os comunistas.
Sabemos que o nacionalismo e a defesa da cultura brasileira e nordestina são alguns dos pontos de convergência entre Ariano Suassuna e os comunistas. Que outros aspectos dessa relação você destacaria?
Luciano Siqueira – Eu sintetizo a relação de Ariano Suassuna com o PCdoB em dois sentimentos: cumplicidade e afeto. Cumplicidade porque, ao tomar conhecimento de que nós perseguimos uma ideia de socialismo que não copie supostos modelos aplicados a outros países, mas que estejam atento às peculiaridades históricas, culturais, econômicas, sociais, políticas e institucionais brasileiras, Ariano sentiu um motivo muito forte para uma aliança com o PCdoB. Em uma entrevista o Jornal do Commercio, de Pernambuco, ele disse: "Esse é o socialismo que eu apoio, um socialismo com a cara do Brasil". Ele que foi um verdadeiro baluarte, um paladino, da defesa da cultura nacional.
Ariano se comportava de maneira jocosa em qualquer situação, uma verve muito grande, às vezes uma certa irreverência. Eu me recordo que ele era secretário de Cultura do segundo governo de Miguel Arraes e eu presidente estadual do partido e fui com minha filha Tuca a uma palestra que ele daria para jovens recém-chegados à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ariano fazia essas palestras com um álbum de recortes de jornais, e ao perceber minha presença ele disse: "Está aqui na plateia um grande amigo meu, dirigente do Partido Comunista do Brasil, e eu quero mostrar para vocês uma entrevista que ele concedeu ao Diario de Pernambuco".
E leu um trecho da entrevista. Exatamente aquele no qual eu me referia ao fato de que o Programa do PCdoB buscava – o que chegamos a atingir no 12º Congresso – uma definição clara da ideia do socialismo segundo as peculiaridades brasileiras. Então, ele fez um comentário: "Este é o socialismo que eu apoio". E fez uma brincadeira. Pediu que eu me levantasse e aos alunos, uma salva de palmas.
De que outras manifestações de apoio ao PCdoB você se recorda?
Luciano – Em diversas oportunidades Ariano expressou essa relação de cumplicidade política com o partido. Ele semeou a informação de que não recusaria um pedido meu. Na campanha da reeleição de FHC (1998), que nós perdemos mais uma vez com Lula, em um comício aqui no Recife, a direção da campanha de Lula e do PT me pediu para convidar Ariano a participar do ato de lançamento de um manifesto de apoio de intelectuais à candidatura de Lula, em Natal (RN). "Nós sabemos você é um grande amigo de Ariano e que ele sempre lhe atende", me disseram. Falei com Ariano e ele a princípio fez um gesto de rejeição, alegando que não gostava de viajar – de fato, ele não gostava de viajar. Ele me pediu um tempo para pensar, depois me chapou e disse: "Eu aceito, mas diga à campanha de Lula que só aceito porque você está pedindo".
Ele nunca recusou o convite para um evento do Partido. Quando Luciana Santos era deputada estadual e eu ganhei uma ação contra a Veja por calúnias que a revista divulgou contra mim e ganhamos na Justiça, ela propôs uma homenagem a mim na Assembleia Legislativa, Ariano compareceu e foi o primeiro orador. Não conseguiu fazer o discurso que ele queria porque se emocionou muito e desceu da tribuna chorando.
Em outra ocasião, talvez no último programa do PCdoB na televisão naquela fase em que os programas gratuitos tinham quase uma hora de duração, e a direção do partido me propôs abordá-lo sobre a possibilidade de ele gravar para o nosso programa. Telefone para ele e de pronto ele aceitou: "Quando vamos gravar?", perguntou.
No dia seguinte fomos eu, Guido Bianchi, nosso companheiro da área de Comunicação, e uma equipe de televisão a casa dele, que nos recebeu como sempre de maneira muito afetuosa. Sentou-se na clássica cadeira em que dava entrevistas e em sua fala foi muito preciso ao afirmar: "Se eu fosse marxista, eu seria membro do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, porque é o nosso grande aliado na luta contra o governo antinacional e antipopular de Fernando Henrique Cardoso e defensor da soberania do Brasil”.
Eu poderia citar várias outras oportunidades em que ele foi muito solícito em atender aos convites do partido. Quando Aldo Rebelo comemorou 20 anos de vida pública, no Memorial da América Latina, em São Paulo, foi um dos que prestigiaram nosso Aldo Rebelo, por quem tinha uma grande admiração. Ele se sentia muito identificado com as posições nacionalistas de Aldo. Quando Aldo, deputado federal, apresentou um projeto de lei limitando o uso de diversas expressões em inglês em diversas situações, para valorizar a língua portuguesa, brasileira, ele se empolgou, ele era um defensor do mandato e das posições de Aldo em defesa da cultura brasileira.
Então, eu acho que havia muita cumplicidade com o nosso partido na compreensão da questão chave para o desenvolvimento do país e para a abordagem da luta pelo socialismo que é a questão nacional. Por outro lado, uma relação de muito afeto. Eu já registrei a presença e a emoção dele numa solenidade em minha homenagem na Assembleia Legislativa; a ida dele ao evento alusivo aos 20 anos de vida pública de Aldo Rebelo; ele comparecia aos eventos do partido toda vez que era convidado; compareceu e foi o primeiro a chegar ao lançamento do meu primeiro livro O vermelho é verde amarelo. Ele também apresentou na primeira Bienal da UNE aqui no Recife, há muito tempo, uma de suas famosas aulas-espetáculo. Nessa ocasião, ele estava veraneando numa praia, mas mesmo assim aceitou nosso convite. Sempre com essa disposição: "Convite do PCdoB eu não recuso".
Uma vez aconteceu um fato muito típico de Ariano. Nós estávamos conversando lá na sede do partido e um militante razoavelmente estimulado pelo álcool ao vê-lo exclamou: "Ariano, meu ídolo!", tirou do bolso uma conta de luz e uma caneta e pediu um autógrafo. Concedido o autógrafo, o companheiro deu-lhe um beijo meio exagerado na face e eu comentei: "Ariano, me desculpe porque nessa altura o pessoal já bebeu um pouco e aparece um maluco lhe abraçando e lhe beijando". E ele: "Maluco? O homem que me chama de ídolo? É muito lúcido!". Típico dele, típico dele!
Quando vocês se conheceram?
Luciano – Eu conheci Ariano nos anos 1980, quando era deputado estadual e fui paraninfo de uma turma acho que de Enfermagem e entre os formandos estava uma filha dele e ele na plateia. Ao terminar a solenidade, ele veio falar comigo e disse: "Gostei muito do seu discurso, a sua fala é muito aprumada. E deixa eu te falar uma coisa, eu costumo guardar recortes de jornais com suas declarações, artigos e entrevistas. Gosto muito de suas opiniões. E, a partir daí, nós tivemos uma sequencia de oportunidades de nos relacionarmos, seja conversando sobre arte, literatura, sobre política, ora nos encontrando na casa de Miguel Arraes e, posteriormente, na casa de Eduardo Campos, ou em eventos, nos pronunciando juntos. Então, essa era a relação de Ariano Suassuna com o nosso partido.
Há a percepção de que, além de traduzir todo aquele sentimento em relação ao assassinato do pai, a obra de Ariano é na verdade um manifesto político intenso a partir do momento que nela ele reafirma a brasilidade, a nordestinidade. É um exercício da política e político por meio da arte.
Como você avalia isso?
Luciano – Existiu uma polêmica entre ele e Hermilo Borba Filho, romancista e dramaturgo pernambucano, seu amigo, porque Ariano não gostava de Brecht, pois considerava que ele tinha enveredado pela arte panfletária, porque as posições ideológicas eram explícitas em demasia. Com o quê Hermilo não concordava. Nós também polemizamos um pouco sobre isso. Ariano, do alto de sua sabedoria de professor de Estética da Universidade Federal de Pernambuco, de artista consagrado que era, e eu, modestamente, como mero consumidor de cultura e das artes.
E, nessa ocasião, eu me lembro de ter dito a ele que na essência a arte que ele praticava é profundamente identificada com a arte de Brecht ou por outra tem algo em comum, tem um posicionamento político. O grau de explicitação, de maneira mais clara, que possa ser identificada como mais próxima ou menos próxima de certas correntes políticas é secundário. O que pesa é o conteúdo essencial de sua obra que é uma obra eminentemente política. Não só no sentido dessa persistência em revelar o modo de pensar, de agir, de amar, de sofrer, de viver suas dúvidas, suas angústias, suas contradições da nossa gente, particularmente, a gente simples do interior.
Em várias entrevistas, Ariano dizia que as noites que passou na fazenda da família em Taperoá (PB) ouvindo as histórias contadas pelos empregados da propriedade, histórias verdadeiras ou imaginadas, foram muito importantes na formação dele, pois despertaram seu interesse para a arte de contar histórias.
Interessante é que Ariano fez um caminho muito difícil. Ele tinha um domínio profundo da estética da arte erudita e fundiu essa percepção com a percepção da vida simples do interior e produziu a revelação do que é o homem brasileiro, do que é o homem nordestino, do que é o sertanejo. A obra de Ariano é eminentemente política, mas não explicitamente partidária.
Aliás, ele só assumiu uma postura partidária em um período mais recente, quero crer que a partir do segundo governo Arraes. Ele foi evoluindo politicamente e dando, digamos assim, formato a uma percepção própria da luta política não necessariamente traduzida em termos explícitos em sua na obra, mas expressada em seu comportamento. Então, ele passou a frequentar os palanques nas eleições; ele participou de três ou quatro campanhas de Lula, inclusive as vitoriosas, dando depoimentos, participando das caminhadas. Isso aconteceu também nas duas campanhas de Eduardo Campos para o governo de Pernambuco; na campanha do ex-prefeito João Paulo (PT); e, recentemente, na campanha de Geraldo Julio (PSB) para prefeito do Recife, além de se filiar ao PSB. Sempre assumindo uma posição política clara, embora tenha preservado o conceito que tinha de fazer uma arte que ele chamava de não panfletária.
Entrevista concedida à jornalista Audicéa Rodrigues, do Recife.