Ariano Suassuna fica encantado na memória dos brasileiros
O grande escritor brasileiro deixou de viver nesta quarta-feira (23). Ariano Suassuna foi escritor, sertanejo, brasileiro, e a marca de sua literatura e de sua arte foi a defesa da cultura e do modo de ser de nossa gente.
Por José Carlos Ruy
Publicado 24/07/2014 01:50
A idade e os problemas de saúde não foram obstáculos para Ariano Suassuna deixar de exercer a atividade de sua vida: escrever. Foi assim até o último momento de seu longo ofício de escritor e homem de cultura. Ele próprio explicou, em uma de suas aulas-espetáculo, em dezembro de 2013, que não seria fácil leva-lo desta vida. "No Sertão do Nordeste”, disse, “a morte tem nome, chama-se Caetana. Se ela está pensando em me levar, não pense que vai ser fácil, não. Ela vai suar! Se vier com essas besteirinhas de infarto e aneurisma no cérebro, isso eu tiro de letra".
De fato, foi um lutador com a audácia e a pertinácia dos sertanejos. Sofreu um infarto do miocárdio em agosto de 2013. Mas se manteve ativo, sempre; sua última aula espetáculo foi apresentada na sexta-feira (dia 18), em Garanhuns (PE). Ele estava animado com o carnaval de 2015, quando será homenageado pela escola de samba Unidos de Padre Miguel, do Rio de Janeiro. Mas não teve tempo para esperar! Na segunda-feira, dia 21, baixou outra vez ao hospital, e sua morte chegou a ser noticiada de véspera nos jornais. Mas ele resistiu, e só cedeu na tarde desta quarta-feira, dia 23, quando seu coração parou de bater e a literatura perdeu um gigante. Com 87 anos de idade, trabalhava e agia como o menino que nunca deixou de ser.
Sendo um sertanejo, é também um clássico. Um escritor clássico, com todas as feições exigidas por esta estatura, autor da rara e difícil unidade que só aqueles que frequentam este panteão sabem construir – a fusão do erudito com o popular, que é o traço marcante que constitui um clássico. É uma fusão na qual popular e erudito andam de mãos dadas em obras nas quais o caráter “culto” nada mais é do que a expressão da alma brasileira em formato artístico. Que Ariano Suassuna registrou num sem número de personagens e peripécias que parecem saltar direto da literatura de cordel e da voz de cantadores das feiras do sertão, para páginas e palcos, passando a figurar num patamar mais permanente na literatura.
Ariano Suassuna chegou a ser proposto, pelo Senado brasileiro (com relatoria do senador comunista Inácio Arruda) para o Prêmio Nobel de Literatura, em 2012. A Academia Sueca não o escolheu e quem perdeu com isso foi aquela láurea, que ficou sem ter, em sua lista de agraciados, o nome do escritor paraibano-pernambucano-brasileiro.
Desnecessário, aqui, repetir as informações que, com certeza, estão em todas as publicações que homenageiam o grande escritor. Mas é preciso lembrar, e ele concordaria com isso, as ideias que defendeu. A matriz delas foi o amor pelo Brasil e pela arte de seu povo. Muitos, sem coragem de usar o termo “anacrônico”, veem seu nacionalismo como próprio de uma personalidade polêmica. Não era: era o reconhecimento da importância da cultura brasileira. Importância que ele destacou, por exemplo, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 9 de agosto de 1990. Nele, usou a metáfora da contradição entre “pais oficial” e “país real” – aquele, de pele clara, elitista e rico, este de pele escura, popular e pobre – que precisa ser ultrapassada para que se possa construir uma nação justa e avançada.
Nacionalismo que o levou a rejeitar toda imitação de modelos culturais dominantes estrangeiros, incluindo o uso de palavras estrangeiras (vindas, hoje, do inglês, como vieram, no passado, do francês). Mas enganam-se os que pensam que este era um exercício banal e inculto de xenofobia: era a rejeição da subserviência a outras nações e a condenação da desvalorização daquilo que traz a marca do popular e do nacional, que caracteriza os brasileiros e os distingue entre os demais povos.
Pode-se aplicar, a seu humor ferino, a imagem usada por outro nordestino, o poeta João Cabral de Melo Neto, no poema “Uma faca só lâmina”. Era assim o humor que Ariano Suassuna usava, mesmo em coisas aparentemente simples, para defender a cultura de seu povo e sua terra. Um exemplo: numa aula-espetáculo ocorrida em Porto Alegre não aceitou o uso da palavra inglesa "showman" para defini-lo. E explicou: “para mim essa coisa de Xô era a palavra que a gente usava para espantar galinha”.
Se sua defesa da cultura popular e brasileira era avessa a modismos, é visível em sua obra influências de autores estrangeiros que fazem parte do patrimônio cultural comum da humanidade, como o espanhol Miguel de Cervantes, o russo Nicolai Gogol, entre outros. Entre os brasileiros, as grandes referências são Euclides da Cunha, Gregório de Matos, Lima Barreto, e inclusive o “urbano” (como ele dizia) Machado de Assis. Inclusive na relação com o Partido Comunista do Brasil uma das coisas que ele levava em conta era a questão da nacionalidade, como ficou claro em uma entrevista que deu ao Jornal do Commercio, do Recife, citada por Luciano Siqueira (no artigo Guerreiro do sol, in portal Vermelho, 1º de agosto de 2007), na qual ele se declarou aliado dos comunistas: “Numa reunião importantíssima que realizaram, disseram que estão procurando um socialismo brasileiro. Deixaram de olhar pra fora, aí pela primeira vez tive condições de me aliar mesmo, apareci no guia do Partido Comunista do Brasil, até disseram que era uma contradição da minha parte. O que eu disse lá está perfeitamente coerente com o que eu dizia: se eu fosse marxista, pertenceria ao Partido Comunista do Brasil, nosso aliado na luta contra o governo antinacional e antipopular de Fernando Henrique Cardoso”. Deixou clara, aqui, a profunda coerência não apenas de sua arte, mas também de suas opções políticas.
Nesta quarta-feira (23) Ariano Suassuna seguiu o destino que havia registrado, já em 1955, na peça O Auto da Compadecida, quando falou do destino de um personagem: "Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre". Hoje, quase 60 anos depois de escrever isso, Ariano Suassuna ficou encantado na memória dos brasileiros.