Destruição social e caos mundial, essência do império neoliberal
É difícil não sentir que o mundo, a humanidade e nossa mãe terra estão sendo empurradas à catástrofe pelo império neoliberal, ou seja, pelos Estados Unidos (EUA) e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Por Alberto Rabilotta, em Prensa Latina
Publicado 13/07/2014 07:14
Isto é tão válido ao falarmos da natureza, da acelerada extinção de espécies e do reaquecimento global, assim como das sociedades, ou melhor dito do que delas resta em tantos países que se deixaram empurrar ou estão sendo empurrados a se despojar de toda soberania nacional e popular.
Este caos atual é o produto das políticas de um imperialismo que desde a derrubada da União Soviética trata de manter uma ordem unipolar para instaurar mundialmente e sem alternativa de mudança o neoliberalismo, de tornar realidade o "não há outra alternativa" de Margaret Thatcher.
Mas, como ficou demonstrado quando os EUA foram forçados a mudar sua política de agressão na Síria, a partir de setembro de 2013, a unipolaridadee já não é possível não apenas pelo papel ativo que jogam duas grandes potências, como são Rússia e China, senão por existir uma maioria de países no mundo que apoiam o retorno a um multilateralismo e se opõem à perda da soberania nacional e popular que lhes permita adotar suas próprias políticas socioeconômicas e se integrar internacional ou regionalmente de maneira compatível com seus legítimos interesses nacionais.
A unipolaridade já estava comprometida pela constatação no Oriente Médio, África e Ásia de que os EUA e seus aliados provocam guerras que não ganham – Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria -, mas que sempre deixam caos, mortes, refugiados, miséria e destruição econômica e social.
Em 2011 os dois principais aliados do império no Oriente Médio, Israel e Arábia Saudita, criticaram abertamente Washington por não ter lançado uma guerra contra o Irã e ter permitido a derrocada do presidente Mubarak no Egito, fazendo chegar ao presidente Barack Obama a mensagem de que "não se abandona os aliados".
Todo mundo, e em primeiro lugar os aliados de Washington, sabem que os EUA e seus aliados lançam não ganham as guerras que fazem, mas estas guerras destroem países, economias e sociedades, e deixam o caos.
Desde o Afeganistão até a Síria, passando pelo Iraque e Líbia – sem esquecer do Paquistão, Sudão e outros países africanos -, só deixaram destruição, lutas sanguinárias entre comunidades religiosas e grupos étnicos, e centenas de milhares de mortos, feridos e refugiados, e uma grande miséria. Os EUA não têm nada de positivo para mostrar.
Há quase duas décadas o economista ítalo-estadunidense David Calleo escreveu sobre as fases de decadência final dos impérios da Holanda e da Inglaterra, qualificando-as como uma "hegemonia exploradora", nas quais o império não tem nada a oferecer de positivo (desenvolvimento socioeconômico ou segurança militar, por exemplo) aos países que domina e compõem o sistema, inclusive para a economia e sociedade do império, e então se dedica a espremê-los a fundo, a viver da fonte de renda que por todos os meios pode extrair desses países. O império estadunidense se encontra nessa fase.
Um exemplo é suficiente: em uma conversa privada o ministro de Relações Exteriores da Polônia, Radoslaw Sikorski, deixou claro que a aliança de seu país com os EUA e a Otan não os beneficia e que, ao contrário, provoca perigosos focos de tensões com os países vizinhos.
O mesmo deve estar pensando qualquer pessoa honesta que ainda esteja no governo criado pelo golpe de Estado na Ucrânia, último país que os EUA e seus aliados da Otan levaram à beira da guerra civil para provocar foco de constante confronto com a Rússia.
Ao mesmo tempo, um sinal de que o império já não pode controlar todo o mundo durante o tempo todo, é de que na América Latina e no Caribe prossegue a criação dos mecanismos de integração regional e sub-regional, nos quais os EUA não figuram nem podem controlar.
Por sua vez os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) continuam avançando com seus projetos de criação de um banco de desenvolvimento e instrumentos monetários e financeiros fora do alcance dos EUA e do dólar, enquanto assistimos ao reforço dos laços econômicos, comerciais e monetários entre a Rússia e a China, entre outros processos regionais em curso na Ásia e Eurásia.
Nada disto constitui em si uma alternativa anticapitalista, senão que quase a totalidade dos países funcionam dentro de um sistema capitalista, ainda que tenham importantes setores estatais na economia e possam estar priorizando formas de propriedade social como substitutas à propriedade privada em ramos da economia. Mas, detalhe chave, em praticamente todos os países a intervenção estatal na economia é um fato.
Igualmente, em todos esses processos o regionalismo inclui a participação e intervenção dos Estados, de suas instituições e empresas, assim como níveis de planejamento setorial nas áreas industriais, energéticas, comerciais e de serviços, e sistemas financeiros e monetários que se prometem ou vislumbram que estarão fora do controle do império e de seus aliados.
Uma forma de regionalismo deste tipo como alternativa ao "capitalismo universal", o que hoje chamamos neoliberalismo, foi proposta pelo intelectual húngaro Karl Polanyi em 1945.
Mas ainda não sendo uma alternativa socialista ou anticapitalista, é claro que estes processos regionais e multilaterais constituem uma formidável barreira aos planos do império, uma barreira que o imperialismo está tratando de derrubar com todos os instrumentos ao seu alcance, como a ofensiva para concluir rapidamente e no mais completo segredo os acordos de "última geração" – o Acordo Transpacífico de Associação econômica, a Associação Transatlântica sobre Comércio e Investimentos e o Acordo sobre o comércio em serviços -, ou tratando de entorpecer os acordos regionais através dos políticos, burocratas, profissionais e empresários que estão a serviço do império.
Os mencionados acordos têm por objetivo a eliminação da soberania nacional e a fixação dos estados signatários de respeitar os termos desses tratados negociados em segredo, que respeitam apenas uma lei, a dos EUA, e incluem mecanismos através dos quais os países que não respeitarem os termos podem ser levados aos tribunais de arbitragem pelos monopólios. Esses países passam a ser fiadores dos investimentos dos monopólios estrangeiros para se apropriar dos setores econômicos que lhes interessam, incluindo os que deixarão a órbita dos estados ao se privatizar os serviços públicos.
Mas esses acordos não estão simplesmente dados, porque cresce a rejeição nas populações que não querem abandonar seus legítimos sentimentos e interesses nacionais, e nos interesses capitalistas locais que sabem que serão esmagados pelos monopólios estrangeiros.
E enquanto o regionalismo avança, na Casa Branca e no Congresso de Washington não resta outra alternativa que se aferrar a continuar achando que o império é invulnerável e que pode continuar atuando, ele e seus aliados estratégicos, com a impunidade que a (relativamente breve) ordem unipolar lhes permitiu. É neste contexto que tem sua dimensão o discurso do presidente russo Vladimir Pútin aos embaixadores da Rússia, neste mês de julho, em que recorda que os EUA estão aplicando ao seu país a mesma política de "contenção" que aplicaram contra a União Soviética durante a Guerra Fria, e que esperava que o pragmatismo prevaleceria, que os países ocidentais se despojariam de ambições, de tratar de "estabelecer quartéis mundiais para organizar tudo conforme os interesses, e impor regras uniformes de comportamento e de vida da sociedade".
Pútin disse que os diplomatas russos sabem o quão dinâmicos e imprevisíveis os acontecimentos internacionais podem às vezes ser. Parecem ter acontecido juntos de uma só vez e por desgraça não são todos de caráter positivo.
O potencial de conflito está crescendo no mundo, as velhas contradições se agravam e outras novas estão sendo provocadas. Continuamente nos encontramos com este tipo de situações, com frequência de forma inesperada, e observamos com pesar que o direito internacional não está funcionando, que as leis internacionais não funcionam, que as elementares normas de decência são descartadas e que triunfa o princípio de que tudo é permitido…
É tempo de que reconheçamos o direito dos demais a serem diferentes, o direito de cada país a construir sua vida por si próprio, não pelas avassaladoras instruções de alguns (…) o desenvolvimento global não pode ser unificado, mas podemos e devemos procurar um terreno comum, ver parceiros nos demais, não rivais, e estabelecer cooperação entre os Estados, suas associações e as estruturas integradas.
E ao se referir aos conflitos que assolam várias regiões do mundo, Pútin destacou que o mapa do mundo tem mais e mais regiões onde as situações estão cronicamente conturbadas, sofrendo de um "déficit de segurança".
No Encontro Internacional Anti-imperialista convocado pela Federação Sindical Mundial (FSM) e realizado em Cochabamba, Bolívia, o presidente boliviano, Evo Morales, apontou que "é importante identificar" os atuais instrumentos de dominação do capitalismo, do imperialismo, porque "pelo menos na América Latina já não se encontram golpes de Estado, já não há as ditaduras militares como antes", senão que "povos que defendem as democracias, povos que com muita clareza propõem programas e projetos, projetos políticos de libertação".
E neste contexto, segundo o presidente boliviano, há que se perguntar o que faz o império: "provoca conflitos em cada país, financia confrontos de um povo, de um país e depois com o pretexto de defesa dos direitos humanos, da criança, da mulher, do idoso, intervêm com o Conselho de Segurança; que é esse Conselho de Segurança? Para mim esse chamado Conselho de Segurança da ONU continua sendo um conselho de insegurança, um conselho de invasão aos povos do mundo".
Para enfrentar esta agressão imperialista, Morales pediu aos delegados da FSM que elaborem "uma nova tese política para libertar os povos do mundo", que ultrapasse "as reivindicações setoriais para afundar a crise no capitalismo e por um fim a ele, assim como às oligarquias e hierarquias".
Resumindo, para um observador que não tenha perdido a memória histórica, o que Pútin disse não é mais do que uma explicação aos diplomatas da Rússia da conclusão à qual o povo russo, e ao menos uma parte de seus dirigentes, chegaram após terem sofrido a experiência da Perestroika e da aplicação brutal das políticas neoliberais, e de viver a atual experiência de como o imperialismo estadunidense age quando um povo quer buscar sua própria via, ainda que dentro do capitalismo. Sem menosprezar que tudo isso deva ter ajudado a reviver o que o imperialismo tentou enterrar: os ensinamentos de Lênin sobre o imperialismo.
Não é tão fácil apagar a memória histórica dos povos, e enquanto pensava li o artigo "Una mirada al pasado" de Ricardo Alarcón de Quesada, ex-presidente da Assembleia Nacional de Cuba, que conclui com a seguinte frase: “Ao voltar a olhar para aqueles anos sonhadores vem à mente a advertência de William Faulkner: ‘O passado nunca morre. Nem sequer é passado’” (publicado na revista chilena Punto Final, edição de número 807 de 27 de junho de 2014).
Poucos dias antes da reunião da FSM, o presidente Evo Morales foi anfitrião da reunião do Grupo dos 77 mais a China, e sem dúvida ali registrou muitos sentimentos sobre o brutal agir do imperialismo e a vontade de muitos governos de poder defender seus legítimos interesses nacionais, algo que no império neoliberal está proibido.
Novamente, quando os povos vivem sob o punho imperial e recuperam a memória histórica, é lógico que a necessidade de uma estratégia anti-imperialista retorne.
Em uma recente análise intitulada "America's Real Foreign Policy – A Corporate Protection Racket", o intelectual estadunidense Noam Chomsky descreve o verdadeiro objetivo histórico da política exterior dos EUA: proteger os interesses do setor das grandes empresas com um "nacionalismo econômico (um protecionismo que) depende em grande parte da intervenção estatal em massa", e por isso em regra geral se opôs por todos os meios a que os demais países tenham políticas de "nacionalismo econômico".
Isto, fundamenta Chomsky com referências documentais, é válido para toda a análise da política estadunidense para a América latina e o Caribe, e é a profundidade do conjunto da política exterior estadunidense em todo o período posterior à Segunda Guerra Mundial, quando o sistema mundial que ia ser dominado pelos EUA foi ameaçado pelo que os documentos internos chamavam de "regimes radicais e nacionalistas", que respondem às pressões populares para um desenvolvimento independente.
O que Chomsky documenta se enquadra com o que em 1945 Karl Polanyi antecipava, que os EUA "têm sido o lar do capitalismo liberal do século 19 e é suficientemente poderoso para prosseguir sozinho a utópica política de restaurar o liberalismo".
E, nesse sentido e com todas as limitações que implica, o regionalismo é nesse momento a principal frente anti-imperialista, e outra terá que ser construída pelos povos, por suas organizações políticas, sindicais e sociais.