Copa do Mundo: a diplomacia dos gramados

Em diferentes momentos da história, o futebol ajudou os governos a construir uma imagem positiva do Brasil, dentro e fora do país. Embora tenha sido publicado originalmente em 2009, este texto mantém sua atualidade e merece ser lido na época da Copa do Mundo no Brasil.

Por João Daniel Lima e Maurício Santoro
 

Jogo da Paz - Brasil x Haiti, 2004
Em 15 de junho de 1974, durante a Copa do Mundo da Alemanha, o goleiro da seleção italiana Dino Zoff, que não levava um gol havia 1.143 minutos – ou 12 jogos! – foi driblado pelo atacante haitiano Emmanuel Sanon, o Manno, que colocou a bola na rede. Haiti 1 x 0 Itália era o placar, que durou pouco: a Azurra empatou aos seis minutos do segundo tempo, ganhando de virada. O placar final foi Itália 3 x 1 Haiti, mas isso pouco importa. Naquele momento, o Haiti vivia a ditadura de Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier e aquele primeiro gol fez o povo haitiano sorrir. Depois da Copa, Manno, o atleta mais popular de seu país, foi jogar no futebol europeu e nunca mais voltou à terra natal. 
 
Porto Príncipe, capital do Haiti, trinta anos depois. O presidente Jean-Bertrand Aristide foi deposto por rebeldes, em fevereiro, e o processo democrático, posto em xeque. Em junho, a missão da força de paz da ONU, liderada pelo Brasil – que enviou uma brigada de 1.200 homens – chega ao país com uma dupla responsabilidade: facilitar a ajuda humanitária e garantir a segurança no local. Nos debates sobre a polêmica decisão brasileira de liderar a intervenção das Nações Unidas no Haiti, o primeiro-ministro daquele país se queixou de que o Brasil deveria ter enviado a seleção de futebol, não soldados. 
 
O presidente Lula achou boa a ideia e, assim, em 18 de agosto de 2004, foi realizado na capital haitiana o chamado “Jogo da Paz”, entre Brasil e Haiti. A cidade se preparou para um amistoso entre as seleções como para uma final de Copa do Mundo. Manno voltou ao seu país especialmente para assistir ao jogo, transmitido ao vivo para mais de cem países. Porém, mais que uma simples partida de futebol, tratava-se de um importante instrumento de política externa, que ajudava a chamar a atenção da sociedade internacional para a tragédia humanitária no Haiti e para a missão de paz. De novo, o placar final – Brasil 6 x 0 Haiti – foi o que menos importou. 
 
Lula é um notório fã de futebol e gosta de rechear seus discursos com metáforas sobre o esporte. Mas o Jogo da Paz não foi a primeira vez em que a diplomacia brasileira se valeu do futebol para difundir a imagem do país no exterior, ou tentar obter ganhos políticos. Se recentemente Ronaldo fez apelo pela libertação do engenheiro brasileiro refém no Iraque, e em novembro Ronaldinho Gaúcho foi nomeado embaixador contra a fome da ONU, ao longo de boa parte do século XX, o sucesso nos gramados foi fundamental para a construção de uma identidade nacional, que diversos governos tentaram utilizar como parte de sua estratégia de política externa. Na definição de Nelson Rodrigues, a seleção nacional de futebol é “a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber botinadas.” 
 
Quando chegou ao Brasil, o futebol estava restrito à elite. Mas já na década de 1920 o esporte era uma febre nacional, embora dividisse os intelectuais. Céticos como Graciliano Ramos profetizavam que seria apenas “fogo de palha”. Lima Barreto detestava o jogo, chamando-o de “primado da ignorância e da imbecilidade” e acusando-o de fomentar preconceitos raciais. O romancista chegou até a fundar uma “Liga Brasileira contra o Futebol”. Do lado oposto do campo estava o escritor Coelho Neto, defensor apaixonado do futebol, que escreveu a letra do hino do Fluminense e propagou as virtudes do esporte bretão com base no ideal de “mente sã em corpo são”. 
 
Em 1930 ocorreu a primeira Copa do Mundo, mas só em 1938 a seleção brasileira teve um desempenho digno de nota, alcançando o terceiro lugar e maravilhando fãs do esporte no Brasil e no exterior. Naquela campanha, o time contou com amplo apoio do governo Vargas, ficando concentrado na estação de águas de Caxambu durante um mês, preparando-se fisicamente para os jogos. Ao Estado Novo interessava um bom desempenho do país nas competições esportivas internacionais.
 
A Segunda Guerra Mundial interrompeu a realização das Copas do Mundo, que só voltaram a ser disputadas em 1950. O Brasil venceu a disputa para sediar o evento e o entusiasmo popular levou o governo a empreender a construção do maior estádio do planeta em pleno centro geográfico do Rio de Janeiro. Em seu belo livro sobre o Maracanã, Gisella Moura observou que “o campeonato mundial não se restringiria apenas a um confronto entre as melhores seleções do mundo e à disputa de uma taça de ouro. Poderia ser a ocasião de difundirmos a imagem do país que desejávamos. Seria como nas grandes exposições internacionais do início do século XX, quando os pavilhões dos países representavam as últimas novidades e os progressos científicos”. A campanha para a construção do Maracanã foi liderada por Mário Rodrigues Filho, brilhante jornalista que praticamente inventou a moderna cobertura esportiva no Brasil e que comandou a mobilização através de seu Jornal dos Sports, mas contou com aliados importantes, como o compositor Ary Barroso, que à época também era vereador no Rio de Janeiro, eleito pela União Democrática Nacional. A Copa mobilizou o país e terminou na derrota para o Uruguai. Contudo, a repercussão internacional do torneio foi amplamente favorável ao Brasil, com os jornalistas estrangeiros ressaltando a capacidade de organização dos brasileiros, a alegria da torcida e até o comportamento educado e respeitoso demonstrado diante dos uruguaios. Compareceram à final cerca de 200 mil pessoas, o equivalente a 10% da população da capital federal. A vitória no futebol serviria para esquecer os dramas governo Dutra (1946-51) e sua política externa de extrema subserviência aos EUA, com perseguição interna aos comunistas, alta inflação e déficit  comercial crescente. Mas a vitória não veio, como se a tragédia econômica invadisse os gramados.
 
As relações entre política e futebol aparecem em vários lugares. Mas, feliz ou infelizmente, no caso brasileiro o futebol não seria quase nunca paliativo dos problemas nacionais. Alguma mágica impelia os pés do escrete nacional ao longo das Copas e fazia o futebol acompanhar o crescimento econômico ou vice-versa. Não há tese ou relação causal que explique a conexão do sucesso do país com o sucesso da bola, mas certamente há conexão que serve de gancho para professores fazerem seus alunos memorizarem e entenderem um pouco da história da República. Recorrer ao futebol é estratégia pedagógica infalível.
 
Em 1954, na Copa da Suíça, os germânicos levaram a taça. Poucos meses depois o presidente Vargas se suicidou, lançando o país em crise institucional. A primeira Copa vencida pelo Brasil, na Suécia em 1958, ecoou a euforia que o país vivia, com reconhecimento internacional nas mais diversas áreas. No esporte, a Copa era a maior das glórias, mas vinha acompanhada das vitórias de Maria Ester Bueno, no tênis, de Eder Jofre, no boxe, de Adhemar Ferreira da Silva, no salto. A bossa nova conquistava o mundo. Brasília era construída por Juscelino Kubitschek e elevava a arquitetura brasileira de Oscar Niemeyer como uma das mais criativas do globo. No ano seguinte, a dramaturgia de Vinicius de Moraes ganhava as telas pela câmera do cineasta francês Marcel Camus, recebendo o Oscar de melhor filme estrangeiro (Orfeu do Carnaval, 1959) e a economia “crescia cinquenta anos em cinco”, embalada pelo desenvolvimentismo do plano de metas. O futebol era o rei da expressão de uma nacionalidade que se descobria feliz, e mundialmente prestigiada, ainda mais com bicampeonato de 1962, em plena mobilização do governo João Goulart pelas reformas de base.
 
Em 1966, os ingleses levaram a Jules Rimet, enquanto o Brasil da ditadura militar amargava aqui o início da repressão. Na Copa do México em 1970, conseguir acordar, paralisado por um regime decadente. Os anos 1980 foram então a década perdida, tanto na economia como no futebol. Ficamos sem rumo no México em 1986. Zico perdia o pênalti contra a França de Michel Platini enquanto o governo perdia a capacidade de pagar a dívida externa, decretando moratória no ano seguinte.
 
Em 1990, o Brasil teve uma de suas piores participações, eliminado nas oitavas-de-final pelos argentinos quando milhões de brasileiros só tinham futebol para consolo ante o confisco de suas poupanças pelo recém-eleito caçador de marajás e sua ministra Zélia Cardoso. Mas não é que em 1994 o país recuperava o caminho do gol? No dia 1º de julho de 1994, o Brasil adotou o real e abandonou uma década de hiperinflação. Deve ter feito bem ao futebol, pois três dias depois, no feriado nacional americano, a seleção brasileira venceu os anfitriões em Stanford e seguiu fulminante para ser o primeiro país tetracampeão do mundo, vencendo a Copa dos EUA.
 
Quatro anos depois, Fernando Henrique Cardoso já não conseguia mais manter o câmbio tão baixo e, socorrido por plano providencial do FMI, garantiu a sobrevida de um modelo insustentável, reelegendo-se. O Brasil, na final contra os franceses, perdeu a Copa de 1998, após uma convulsão até hoje mal explicada de Ronaldinho, nosso maior craque. Meses depois a economia brasileira também entraria em convulsão e o dólar dispararia, derrubando a popularidade do presidente.
 
A esperança venceu o medo em 2002, e a vitória do Partido dos Trabalhadores levou à presidência um operário, eleito no rastro da conquista do pentacampeonato brasileiro na Copa do mundo. A história do Brasil misturava-se, mais uma vez, à história da bola, deixando estes autores-torcedores ainda mais entusiasmados pelo futebol, na expectativa de que um espetáculo brasileiro rumo ao hexacampeonato, na Copa da Alemanha em 2006, seja a ante-sala do prometido espetáculo do crescimento.
 
Fonte: Revisa de História da Biblioteca Nacional