União Europeia em crise: Vem aí a guerra do euro
O recente encontro entre os primeiros-ministros francês e italiano, Manuel Valls e Matteo Renzi, pode ter sido um prenúncio da passagem à fase seguinte de um conflito anunciado no interior da União Europeia: a guerra do euro, isto é, por um euro menos forte, "mais amigo das exportações de todos e não apenas das alemãs", segundo um funcionário governamental de Paris.
Por José Goulão, de Bruxelas, Sylvie Moreira, de Paris, e Lourdes Hubermann, de Frankfurt, para o Jornalistas sem Fronteiras
Publicado 07/05/2014 09:09
O assunto está sobre a mesa e será fulcral; daí o protagonismo que as questões associadas aos bancos centrais e ao mandato do Banco Central Europeu têm vindo a ganhar no cenário europeu. "Isto é tanto verdade", afirma o mesmo funcionário, "que os burocratas europeus consideram útil e favorável interferir ilicitamente nas eleições europeias, organizando uma conferência de alto nível para Portugal nos dias das votações".
Os dados estão lançados, isso é inegável. Valls e Renzi, jovens turcos de uma "versão de socialismo ainda mais moderna do que a terceira via, porque se pretende institucionalizar de vez como bloco de poder, em paralelo com a direita conservadora", segundo Pierre Blanc, jovem advogado da esquerda do PS francês, estão procurando uma estratégia para enfrentar o imobilismo e a ortodoxia alemã da Sra. Merkel em torno do Banco Central Europeu, versão Bundesbank.
Para isso, contam com uma aliança discreta com os social-democratas alemães, no próprio governo alemão, fazendo eco de um alegado descontentamento que grassa em meios empresariais alemães quanto aos continuados efeitos da à estratégia "de euro forte".
"Estão a vestir-se as armaduras nos dois campos e a ensaiar-se as estratégias para a segunda metade do ano, uma vez realizadas as eleições europeias", reconhece em Frankfurt um funcionário do Banco Central Europeu (BCE), que pediu anonimato devido às funções que desempenha.
"O governo alemão está confortável com esta política do Banco Central Europeu", afirma o mesmo funcionário. "Ela corresponde à tradição alemã herdada do pós-guerra e muito motivada pelos combates ao défice e à inflação e à recordação dos pesadelos que levaram à guerra; além disso, funciona bem em termos comerciais, para a Alemanha, e razoavelmente para alguns dos seus protegidos, por exemplo Áustria, República Tcheca e Eslováquia".
O outro campo está se definindo um pouco melhor através da convergência de objetivos entre Valls e Renzi: eles têm as suas economias com problemas e os próprios cargos à mercê dos "indicadores estatísticos", mais até do que da revolta social uma vez que "pelo menos Manuel Valls sabe como manejar os instrumentos dependentes do Ministério do Interior e não hesitará em servir-se deles", afirma Blanc.
"Talvez a dinâmica para esta convergência tenha sido criada pelo ambicioso Renzi", considera o funcionário do BCE. "Ele trouxe como ninguém para a cena europeia uma certa tese 'obamista' e, no fundo, da economia americana de gestão de crises, que diz que a crise europeia já não tem a ver com a crise americana de 2008 e transformou-se numa crise comercial motivada pelo euro forte".
Em quê assenta a tese norte-americana reproduzida por Renzi, segundo o nosso interlocutor de Frankfurt? "Nas diferenças entre os estatutos e procedimentos do BCE em comparação com a Reserva Federal e do Banco Central do Japão, por exemplo. O défice americano na altura da crise chegou praticamente aos 10%, enquanto a Alemanha, na prática, impunha ao BCE a pressão para que os défices dos Estados da Zona Euro tendessem à força para os 3%. Resultados: algum regresso ao crescimento nos Estados Unidos, sem quaisquer riscos de crescimento descontrolado da inflação; e, na Europa, recessão, desemprego, risco iminente de deflação e muitas bolsas de tragédia social".
Os diferentes cenários aquém e além Atlântico são agora poderosas armas de arremesso na anunciada batalha do euro, por um euro menos forte, mais competitivo e capaz de aliviar as amarras econômicas que prendem os governos europeus, sobretudo do sul, França e Itália incluídos.
"Diferenças ideológicas, não as vejo", afirma Pierre Blanc. "Para os socialismos à moda de Valls e Renzi e de vários outros, o poder dos mercados não se discute devido ao modo como as grandes empresas mundiais e o sistema financeiro que lhes está associado gerem o mundo. Mas para ser poder institucional, há mais a fazer do que ajustar as leis eleitorais de modo a garantir a bipolaridade, dominar instrumentos de propaganda e fazer de tudo para desacreditar o que seja realmente esquerda e social; é preciso sobreviver quando se governa. Por isso, Renzi, Valls, com uma ajudinha clandestina dos social-democratas alemães e, transportando Rajoy e o seu governo como contrapeso, vão dar batalha à ortodoxia da Sra. Merkel em defesa do BCE à sua medida".
O BCE, pela mão de Draghi, tem feito alguns movimentos, tem comprado dívida, é considerado o obreiro das "saídas limpas" da Irlanda e de Portugal das tutelas da troika de credores internacionais. "Pobre Portugal, pobre Irlanda, sobretudo pobres portugueses e irlandeses com tais saídas limpas", comenta Pierre Blanc.
"Mas isso não chega para os objetivos de crescimento econômico e de combate ao desemprego que motivam os governos com maiores dificuldades, convictos de que não existe risco de inflação no horizonte. Eles querem um BCE mais à moda da Reserva Federal americana", explica o funcionário do BCE.
As coisas, porém, não nasceram assim. O euro forte e um BCE à imagem do Bundesbank são inerentes à criação da moeda única europeia. "É aqui que a batalha tende a travar-se", prossegue o nosso interlocutor de Frankfurt, "e tal teria que ter implicações em tratados europeus, normas e procedimentos instalados. Mudanças, só se existir mesmo inquietação no poderoso tecido econômico alemão quanto a um excesso de peso do euro". Caso contrário, acrescenta o funcionário do BCE, que não é alemão, não é a Sra. Merkel que continuará inamovível; é a Alemanha que continuará inamovível, ancorada na sua obra: o Tratado de Maastricht e o euro. Onde a marca dos social- democratas também lá está, inteira".
Fonte: Jornalistas sem Fronteiras