El Salvador: A terceira vida do comandante Leonel
A Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMNL), partido da esquerda salvadorenha, conquistou a presidência da República, pela primeira vez, há cinco anos. O candidato vitorioso, que chegará ao final de seu mandato no próximo dia 1º de junho, foi o jornalista Maurício Funes.
Por Breno Altman*, na Opera Mundi
Publicado 25/04/2014 12:24
O governo Funes, além de ter alcançado forte popularidade graças a políticas sociais e de redistribuição da renda, ajudou a neutralizar parte da guerra psicológica permanente contra a FMLN. Muitos eleitores foram se dando conta de que o cenário de caos e violência anunciado pelo conservadorismo não passava de golpe midiático.
Essa fase de transição, na qual o governo de esquerda era conduzido por um aliado político, não de uma liderança orgânica do partido, revelou-se fundamental para a segunda vitória presidencial, ocorrida no último dia 9 de março, dessa vez levando à chefia do país um dirigente histórico, o professor Salvador Sánchez Cerén, outrora comandante Leonel González, atualmente vice-presidente.
O presidente eleito foi protagonista da luta guerrilheira nos anos 80, encabeçando uma das cinco formações político-militares que deram origem a FMLN. Sua organização, as Forças Populares de Libertação, era considerada a mais influente e numerosa pela maior parte dos estudiosos. Durante 12 anos, entre 1980 e 1992, na montanha e na clandestinidade, Salvador foi Leonel, em uma época na qual a política e o fuzil caminhavam juntos.
A resistência armada tinha irrompido depois do assassinato do monsenhor Óscar Romero, em 24 de março de 1980, por um atirador de elite do Exército salvadorenho, enquanto rezava uma missa. Era o sinal da brutal reação de direita às lutas populares, restabelecendo a tutela militar sobre governos fantoches que se subordinavam à oligarquia local e à política de guerra fria dos Estados Unidos, empenhados em isolar as revoluções cubana e nicaraguense.
Mais tarde veio à tona que a ordem para matar o sacerdote progressista partira do major Roberto D’Aubuisson, um dos caciques dos esquadrões da morte envolvidos em ataques contra as mobilizações sociais e seus representantes. Esse oficial, falecido de causas naturais em 1992, fundaria o partido Aliança Republicana Nacionalista, que governou o país durante vinte anos. Até hoje seu busto decora a entrada da sede partidária e todas as campanhas areneiras começam com uma homenagem a esse prócer anticomunista.
A guerrilha unificada na FMLN resistiu, sem jamais ser derrotada, à coalizão entre o Exército nacional, os bandos clandestinos de extermínio e a intervenção indireta dos norte-americanos. Ao não ser batida, venceu. O governo, incapaz de dobrá-la, perdeu. A própria Casa Branca, no início dos anos 90, percebendo que seria impossível um triunfo militar sobre a esquerda, aceita abrir negociações de paz e obriga o governo salvadorenho a sentar na mesa de negociação.
Os acordos que colocaram fim à guerra civil acabaram assinados em 16 de janeiro de 1992, no castelo de Chapultepec, no México. Um dos signatários era Leonel, que voltaria a ser Salvador Sánchez Cerén. Ao lado de Schafik Handal, então secretario-geral do Partido Comunista de El Salvador, além de outros quadros importantes da luta armada, o líder das FPL começou sua segunda vida, com o objetivo de transformar a FMLN em um grande partido de massas e capaz de se constituir como alternativa institucional de poder.
Por quase duas décadas, do pacto de redemocratização até a vitória de Funes, a esquerda salvadorenha se reinventou. Derrotadas as tendências que apostavam na transformação da FMLN em uma agremiação que se despojasse do programa socialista e da ação organizada dos trabalhadores como centro da estratégia, o partido de Schafik e Salvador foi construindo seu próprio caminho.
Uma das providências mais relevantes foi a dissolução das cinco organizações fundadoras, medida que permitiu a superação do formato frentista e o estabelecimento de um comando único. Outras decisões importantes se seguiram. Merecem destaque, por exemplo, a proibição de tendências internas permanentes e a manutenção de uma estrutura celular na qual a militância pudesse se manter organizada por local de trabalho e moradia.
Essas questões organizativas se subordinaram a escolhas políticas: a oposição intransigente contra o neoliberalismo impulsionado pela Arena, a combinação entre disputa eleitoral e lutas sociais, a articulação entre experiências de poder municipal e o fortalecimento da FMLN como partido com nítida identidade cultural e ideológica.
Ao longo do tempo, a esquerda foi aumentando seu cacife eleitoral e alicerçando um bloco de forças políticas e sociais que permitiu repetir, na democracia, o que havia sido possível na guerra: dividir o país em duas metades que se equilibram, em uma situação na qual a FMLN poderia almejar a conquista do governo da república.
A movida tática que permitiu a primeira vitória presidencial, em 2009, foi inteligente. O objetivo era atrair os votos que rejeitavam a Arena, mas ainda temiam a FMLN. A candidatura de Funes foi a peça que decidiu o jogo de então, derrotando a direita, no primeiro turno, com 51,2% dos votos válidos.
Além de administração bem sucedida, a primeira gestão de esquerda ajudou a aprofundar divisões no campo conservador, com o descolamento de um setor que lançaria, para as últimas eleições, o ex-presidente Tony Saca. Essa dissidência se movimentou para ocupar espaço ao centro, se afastando da direita representada pela Arena e facilitando a governabilidade parlamentar.
Nem tudo foram flores, a bem da verdade, na relação entre Funes e a direção da FMLN. Mais que divergências pontuais, sempre amplificadas pela pouca convivência do presidente com o partido, o principal ponto de tensão esteve nos ensaios do núcleo palaciano em compreender o triunfo de 2009 como a possibilidade de criar um terceiro agrupamento, com perfil de centro-esquerda, eventualmente aliado às correntes que se dissociavam da Arena, como estratégia para superar o equilíbrio bipolar.
A FMLN respondeu com firmeza a essa alternativa, indicando Salvador Sánchez Cerén, que acumulava a vice-presidência e a titularidade do Ministério da Educação, como seu candidato para liderar a república. Fazia-se, assim, um giro tático em relação a 2009, optando-se por claro protagonismo frentista, no qual a hipótese principal era forçar o centro a girar ao redor da esquerda. Esse raciocínio respondia, em certa medida, à opção de deslocar as forças progressistas para posições mais moderadas através de alguma fórmula eleitoral com maior taxa de diluição.
Filiado à agremiação sem ter participado na guerra, mas com robusta trajetória progressista, seu nome transformou-se em opção triunfante ao atrair setores que ainda estavam contaminados pela campanha do medo impulsionada durante 20 anos pela direita e seus meios de comunicação.
Salvador iniciou a campanha, ainda em 2013, com expressivo índice de rejeição. Aos poucos, no entanto, essa barreira foi sendo reduzida, através do esforço para ampliar alianças e se colocar como vértice da construção de uma nova maioria nacional, somado à defesa dos feitos da gestão Funes e a um trabalho publicitário que, destacando esses avanços, transferia o campo de disputa eleitoral do confronto ideológico para o debate de propostas concretas. O candidato da FMLN, por esse caminho, foi associando sua radicalidade histórica à amplitude programática, ascendendo nas pesquisas.
O desenvolvimento do processo eleitoral acabou por contar com o presidente Funes somando energias à agremiação que o elegera. Tanto ele quanto sua companheira, a brasileira Vanda Pignato, muito popular por seu trabalho pelas mulheres e os setores mais pobres, arregaçaram as mangas e contribuíram para a consolidação do ex-líder guerrilheiro.
Quando terminou a apuração do primeiro turno, realizado dia 2 de fevereiro, a esquerda havia conquistado quase 49% dos votos, contra 39% da Arena e 11% da Unidade (partido de Saca), com 1% destinado a partidos conservadores nanicos. Sequer o surgimento de uma terceira via tinha dissipado votação da FMLN, que conquista a maior diferença de sua história em relação à direita.
O segundo turno, dia 9 de março, foi um capítulo diferente. O fato é que as fileiras conservadoras conseguiram mobilizar seus simpatizantes e unificá-los contra a FMLN, através de uma campanha marcada pelo medo e terror, no velho estilo da guerra fria. Revelaram possuir reserva eleitoral de razoável porte, cujos reflexos provavelmente continuarão a influenciar o xadrez político salvadorenho nos próximos anos.
Quase 350 mil novos sufrágios foram registrados, carreando o comparecimento eleitoral de 55% para 62%. Apesar da FMLN ter agregado 190 mil votos se feita a comparação com o primeiro turno, superando o próprio resultado de Maurício Funes em 2009, a direita teve capacidade de voltar a seu patamar anterior, arrastando 450 mil votos adicionais. A fórmula de esquerda obteve 50,11% da escolha popular, contra 49,89% do direitista Norman Quijano.
Parte do conservadorismo apostou na tensão contra o resultado das urnas. Mas as instituições, incluindo as Forças Armadas, rechaçaram tramas golpistas e referendaram a eleição de Salvador Sanchez Cerén, celebrada em gigantesca manifestação no centro da capital, uma semana depois do voto. Anunciava-se, na praça pública, que está para começar a terceira vida do comandante Leonel.
Quando tomar posse no primeiro dia de junho, o presidente Salvador Sánchez Cerén não terá como missão apenas a continuidade e o aprofundamento das reformas iniciadas em 2009. Sua agenda estará marcada pela necessidade de fundir políticas sociais exitosas com um modelo de desenvolvimento que suavize os efeitos da dolarização, da dependência de remessas da diáspora e da subordinação à dinâmica econômica norte-americana. O processo de mudança dessa base material, através de uma potente renovação produtiva, é indispensável para continuar gerando empregos e renda, em novos patamares de justiça e bem-estar social.
Até para realizar essas tarefas, no entanto, precisará resolver o cenário de equilíbrio paralisante entre esquerda e direita, dotando a FMLN de instrumentos e alianças que permitam a construção de uma nova hegemonia no interior do Estado e da sociedade, ainda amplamente controlados por interesses oligárquicos e corporativos.
Como é sabido, seu trabalho, de fácil, nada terá. Precisará da mesma paciência e tenacidade de suas duas vidas anteriores, na montanha guerrilheira e na planície institucional.
* Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi e da Revista Samuel