Publicado 25/04/2014 10:15 | Editado 04/03/2020 16:27
O surgimento de Cem anos de solidão, no final dos anos sessenta, causou um furor editorial inusitado. Gabriel García Márquez, o autor, contava quarenta anos e subia ao panteão dos latino-americanos que se distinguiam com uma literatura inovadora: narrativa fantástica marcada com raízes na história e no folclore. As feras: Julio Cortázar, Eduardo Galeano, Mário Vargas Lhosa, Miguel Angel Astúrias, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Jorge Amado e outros.
O livro não chegou para quem quis, fenômeno só comparado ao lançamento de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. Logo vieram as dificuldades ao leitor apressado, o emaranhado genealógico assemelhável aos romances de cavaria surgidos na Europa quando o Novo Mundo ainda era criança. A aparição vezeira, feito homenagem, das graças dos Arcádios e Aurelianos da linhagem dos Buendía fez muitos desses desavisados leitores por de lado o calhamaço e sair por aí arrotando o supérfluo das resenhas literárias.
De nossa parte devemos confessar que temos certa ojeriza a badalações em torno dos sucessos editoriais e só quando arrefecem os arroubos lisonjeiros, excessivamente laudativos, é que nos dispomos a enfrentar o aranzel, destrinchar o catatau. Assim ocorreu com O nome da rosa (Umberto Eco), A insustentável leveza do ser (Milan Kundera), as alegorias de Saramago, as ousadias insondáveis de Joyce. Havia um companheiro nosso, publicitário, que, tão logo pintava no Sul Maravilha um best-seller, lia-o em primeira mão e saía comentando pelos bares culturais a grande descoberta como se de tal livro tirara-se um único exemplar. O seu. Engolíamos a seco, deixávamos passar a onda, e depois enfrentávamos o monstro com um pé atrás.
Com García Márquez fomos avisados, de antemão. Vimos o Cem anos de solidão na mesa do jornalista Nonato Albuquerque (Rádio Iracema de Fortaleza) e manifestamos vontade de encará-lo, recebendo do companheiro o sábio conselho: ler antes os outros livros do colombiano, assim estaríamos iniciados em seu estilo para percorrer, sem atropelos, este século fabuloso. Assim procedemos, devoramos O enterro do Diabo, Funerais de Mamãe Grande, O veneno da madrugada, Ninguém escreve ao Coronel, Olhos de cão azul, A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada e alguns contos isolados. Deste modo perpassamos gerações de revolucionários, vidas e mortes anunciadas ou não, amores e desilusões até a destruição apocalíptica.
García Márquez foi, talvez, o escritor da América Latina que mais influenciou a nossa geração. Porque o mais parecido conosco, o mais angustiado pelos fantasmas ancestrais nesta nesga de terra entre o Pacífico e o Atlântico. Sua Aracataca podia ser o Tamboril do Pedro Salgueiro, a Baturité de Nilto Maciel e Almir Gomes, a Limoeiro do Norte de Jorge Pieiro, a Sobral de Lustosa da Costa. Os entes e as gentes pareciam ter saído do mesmo embrião. O registro das tradições, a documentação da oralidade, os mitos e os ritos, o cotidiano, os sonhos e os fantasmas; tudo no mesmo gabarito, o bom-bocado moldado na mesma forma e assado no mesmo forno.
Lá como cá, avós mandavam, nós meninos, chamar o eletricista pra consertar o fusível avariado e as pardas mariposas se transmutavam em milhares de borboletas coloridas. Tanto em Macondo como em Palma, na Caiçara ou, modéstia à parte, em Campanário. A América é igual. E foi bom para todos que García Márquez tenha vindo ao planeta nestas eras e nestas geografias. Para mostrar que nos cafundós do Terceiro Mundo ninguém mandava alvíssaras, aumentavam-se desmedidamente o corpo dos afogados, comiam-se beldroegas; os caudilhos eram acometidos da solidão do poder, os homens amavam as putas e as mulheres cumpriam ordens. E em geral, a humanidade promovia e alimentava uma interminável guerra civil. A América era um imenso navio desnorteado, pra riba e pra baixo, como os amantes nos tempos do cholera-morbus.
E visto que o genial Gabo se foi, ficamos a tracejar essas lucubrações continentais, ameríndias, brasileiras, nordestinas. Passando em revista marcantes personagens como se almas penadas a voltear o velório, repassando as diversas versões do infausto acontecimento na hora do enterro do Diabo. Essa vadia entidade que descia os píncaros da fria e pedante Bogotá para se misturar, com os saltimbancos, marujos e mulheres do cais de Barranquilha e Cartagena; pilantras e gigolôs da boca do Caribe e mar adentro até a ilha do comandante Fidel ou o encantado chão asteca de Zapata e Rivera. A Cidade do México, onde morreu, em cuja praça principal perderam-se ao vento as primeiras páginas do dito Cem anos de solidão quando a mulher, Mercedes, levava o cartapácio à editora.
Um século a sugerir milênios, eras; toda uma vida passada e futura por sobre estes chãos consagrados palmilhados por solados incas, astecas, maias, guaranis, tupis, xingus. Todos irmanados no texto bíblico anunciador de Gabriel, escorrendo fervente pelas veias abertas, o labirinto outonal deste povo especialíssimo.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: O Povo