Expedição no Araguaia relembra fragmentos da guerrilha
Quando o Curió pulou em cima da Dina, ela, mesmo ferida, no chão, apenas com uma bala no revólver, atirou e acertou a boca do major. E ainda teria dito: Você pode me prender que voltaremos daqui a 20 anos.
Publicado 21/04/2014 16:16
O dia chegou. Por volta das 9h30 do dia 18 de abril de 2014, pouco mais de 40 jovens embarcaram em nove voadeiras (pequenos barcos) de Xambioá, no Tocantis, rumo à Vila Santa Cruz dos Martírios, localizada a duas horas do outro lado do Rio Araguaia, já no Pará. Ali, junto aos moradores locais, começaram a reviver também Osvaldão, Valquríria, Juca, Grabois, os irmãos Petit, Arroyo, Amauri, Doca, Duda, Cristina, Rosa, Joca, Peri, Ari, Sônia e muitos outros guerrilheiros.
Santa Cruz dos Martírios é um local de difícil acesso, com uma população cuja vida está irremediavelmente ligada ao seu meio. São camponeses, lavradores, pescadores e vaqueiros dentre as 47 famílias e 150 pessoas registrados pela Agência Municipal de Saúde. A escolha do Partido Comunista do Brasil em se fixar nessa terra, no entorno do vale do baixo Araguaia e curso médio de Tocantins se deu por alguns fatores: o militar – uma região coberta de mata fechada, onde as Forças Armadas teriam muita dificuldade para usar meios militares avançados, como canhões, tanques e aviação de segurança e, também, uma região “não queimada”, com fraca presença da repressão; e o político – a região tenderia a se tornar bastante povoada por camponeses pobres, pois levas e levas de lavradores expulsos de outros lugares já rumavam para o Araguaia, sendo assim, os guerrilheiros poderia elaborar um trabalho político e social junto à população.
Não é a toa que em Santa Cruz do Martírio é fácil encontrar pessoas de outros estados, como Minas Gerais, Bahia e Maranhão. A faixa etária que predomina na região é a idosa, o que significa que muitos moradores fotografaram com as próprias retinas a Guerrilha do Araguaia. Até hoje, o conflito é profundamente marcado e enraizado no coração dos moradores da região. Muitos camponeses sofreram torturas ou perderam suas vidas por apoiarem, mesmo que sentimentalmente, os guerrilheiros. Outros foram obrigados a caminhar com o exército para ajudá-lo no reconhecimento da região.
Tudo é ainda tão presente que as primeiras instruções dadas aos jovens quando pisaram em Santa Cruz foram as de que em nenhuma circunstância se deveria pressionar os moradores sobre o episódio. Se quiserem contar, irão contar. Se não quiserem, não irão. Outra instrução coincide com a data exata da caravana no local: era uma sexta-feira da Paixão e a comunidade é religiosa. Bebida alcoólica, por exemplo, só depois da meia noite.
Encontro com a Guerrilha
A primeira atividade do dia foi uma aula com dois moradores da região. Abel Pojo é turismólogo e gerente do Parque Estadual da Serra dos Martírios/Andorinhas e Paulo César é professor de educação básica na escola estadual de Xambioá. Ambos passaram uma perspectiva mais particular de quem mora e conviveu com camponeses presentes durante a Guerrilha do Araguaia.
Abel, estudante de turismo e agente da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA), explicou que a presença da guerrilha impactou até a nomenclatura do parque estadual na região. O local sempre foi conhecido como Serra das Andorinhas, devido ao grande número do pássaro no local. Mas, conta a história que na área da serra, às margens do rio Araguaia, perto da Vila Santa Cruz, no município de São Geraldo do Araguaia, foram descobertas centenas de gravações rupestres, feitas por povos pré-históricos. Essas inscrições, encontradas por navegadores portugueses por volta de 1590, receberam o nome de “Martírio” porque os marinheiros, homens rústicos, consideraram os desenhos semelhantes à coroa dos martírios de Cristo. A partir de então, o lugar ficou conhecido como Parque Estadual Serra dos Martírios/Andorinhas. “No entanto, com o término da guerrilha, o governo rebatizou a Serra dos Martírios como Serra das Andorinhas, para não associar o nome com o confronto sangrento da Guerrilha do Araguaia. Só muito tempo depois, já com a Lei de Anistia, que o nome voltou a ser o que era”, explicou.
Já Paulo Cesar apontou uma perspectiva muito interessante do ponto de vista dos moradores locais: “Em uma noite, a cidade de três mil habitantes foi tomada por milhares de militares. De repente, eles acordaram e viram na porta do mercado que estavam acostumados a ir cartazes com a foto dos ‘paulistas’, como os guerrilheiros eram chamados. Dina era a melhor parteira da região e Murilo tinha uma farmácia. Eles transmitiam segurança. Aquelas pessoas de confiança, de repente, foram taxados de terroristas e tiveram preços fixados para quem os encontrassem vivos ou mortos. Todos ficaram confusos porque não havia ali informação nem havia interesse por parte dos militares de posicionamento sobre o outro lado da história. A população era totalmente desinformada e, por isso mesmo, ficou com medo de tudo aquilo”.
Após os destacamentos se reunirem e fazerem suas respectivas perguntas aos convidados, eles se dividiram em grupos para conhecerem os igarapés de águas cristalinas e fazerem pesquisa de campo com os moradores de Santa Cruz.
Relatos
Com o respeito e a admiração do povo do lugar, os comunistas da Guerrilha do Araguaia conseguiram levar benefícios para aquele parcela excluída e manter uma relação até mesmo de amizade. Dona Geralda, moradora de Santa Cruz, deu seu depoimento para um dos destacamentos: “Eles davam remédio e conquistavam o pessoal. Conquistavam assim, dizendo que o pessoal tinha uma cegueira de falar. Eles eram todos do bem, o problema eram os militares. Quando o helicóptero passava tinha que levantar meu filho de seis meses pra cima, pra dizer que eu estava ali desarmada, sem esconder ninguém”.
Seu Paçoca, outro morador local que convivia com os guerrilheiros na vila, acrescentou para outro destacamento: “Dina era a melhor parteira e visitava a gente aqui. Ari tinha a farmácia e falava de hospital, escola. Depois que o Ari desapareceu, a farmácia dele sumiu e nunca mais tivemos esse tipo de assistência”. De fato, em Santa Cruz dos Martírios não há sequer posto médico. Há uma ambulância fluvial para casos extremos.
Seu Domingos, que chegou em dezembro em Santa Cruz, mas sempre viveu pela região, ainda concluiu: “Eles convidavam o povo para a democracia e foi isso que eles nos ensinaram. Eles nos conquistaram, anos depois, a liberdade, mas tiveram que pagar o preço. E nós também pagamos, pois perdemos tudo que tínhamos”.
Cinema sagrado
Após as atividades, lá para as nove horas da noite, os jovens socialistas presenciaram uma cena emocionante. A caravana levou, pela primeira vez à comunidade, o filme “Araguaia: Campo Sagrado”, do diretor Evandro Medeiros. A ideia do documentário é abordar a Guerrilha a partir de narrativas de camponeses que sofreram tortura e violência por parte do exército. São ouvidos também camponeses que, muitas vezes por falta de opção e obrigados, ajudaram os militares nas rondas pelas matas à procura dos focos da Guerrilha.
Muitos desses camponeses são moradores da região e familiares dos moradores. Aparecia algum semblante conhecido, pronto: era risada, burburinho e emoção. Dona Geralda, a camponesa que concedeu entrevista aos moradores, chegou a perguntar se ainda estava viva, pois nunca havia sentido seu coração bater tão forte.
“São muitas as consequências desse período na vida da população local. Muitos ainda sofrem perturbações psicológicas. Por muito tempo, houve um silêncio entre os camponeses, mas hoje as coisas já estão começando a mudar. Mais importante do que fazer esse documentário, é voltar depois aqui e presenciar o rosto de cada um que participou. Tenho muito a agradecer essa caravana”, explicou Fábio, um dos produtores do filme.
Próxima parada: Xambioá (TO)
A caravana do projeto “Lutas que construíram o Brasil” seguirá pela manhã do dia 19 de abril, em dois carros “pau de arara” rumo à cidade de São Geraldo do Araguaia, do lado paraense do Rio. Serão 39 quilômetros de estrada de chão. De lá, pegam novamente os pequenos barcos voadeiras para Xambioá, cidade do Tocantins muito conhecida por todos militantes da UJS e que serviu de ponto de apoio tanto para o exército como para a Guerrilha.
Araguaianas – notas de uma viagem
1. 2.200 quilômetros rodados e muitas horas – Se tomarmos o ponto de partida sendo São Paulo, a caravana do Araguaia já percorreu cerca de 2.200 quilômetros. Saiu de avião no dia 16 de abril às 9h50, chegando em Palmas às 15h30, uma distância de pouco mais de 1.700 km. Após dois dias na capital do Tocantins, os jovens partiram à meia noite, de ônibus, rumo a Xambioá (TO), rodando mais 482 km em nove horas e trinta minutos. Em Xambioá, atravessaram o Rio Araguaia de barco até chegaram à Vila Santa Cruz dos Martírios (PA). A próxima parada é em São Geraldo do Araguaia (PA).
2. Campo sagrado – Filme de 2011, com 50 minutos e direção de Evandro Medeiros. A narrativa aborda os duros acontecimentos da invasão militar ao sul do Pará para sufocar o mais importante evento de resistência ao regime dos generais, organizada na clandestinidade pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), entre 1972 a 1975. A película é contundente pelos depoimentos de camponeses, ex-mateiros e soldados que atuaram naquele episódio. A justificativa para o título [campo sagrado] tem três explicações: primeiro, o “solo sagrado”, porque até hoje muitos corpos de guerrilheiros mortos ainda não foram encontrados na região; segundo, o “tema sagrado”, porque há muita gente que evita falar sobre o ocorrido, tratando a Guerrilha com certo medo e cuidado. Por último, a “sagrada festa da vida” expressa por festejos religiosos que muitos camponeses realizam, até hoje, como forma de pagar promessas por graças alcançadas, entre elas, ter sobrevivido à violência do exército na época da Guerrilha. É a Festa do Divino Espírito Santo, que ocorre desde 1980, na Serra das Andorinhas.
3. Causos – Na Vila Santa Cruz dos Martírios os mitos, lendas e verdades que rodam as histórias sobre a Guerrilha do Araguaia começaram a ganhar vida. Em bate papos com os moradores, contam que Osvaldão, de tão ágil, virava cupinzeiro, e a Dina guardava arma na própria pele. Sobre a Dina, um morador disse que ela podia estar nua, que sacava uma arma sabe-se lá de onde.
Fonte: União da Juventude Socialista