Revista encontra objeto ilícito em 0,03% de visitas a presídios
Mulheres que têm vagina e ânus revistados, crianças que precisam ficar nuas na frente de adultos desconhecidos e idosas que superam os limites físicos da idade para conseguir abaixar e levantar sem roupa íntima, em cima de um espelho.
Publicado 07/04/2014 10:50
Essas práticas, apesar de soarem, no mínimo, humilhantes, fazem parte da rotina semanal das famílias de pessoas encarceradas no país. Os métodos de revista são adotados em pelo menos 19 estados brasileiros e são considerados ineficazes por movimentos sociais ligados à defesa dos direitos humanos.
Das visitas realizadas entre fevereiro e abril dos anos de 2010 a 2013, em São Paulo – que tem a maior população carcerária do país – houve tentativa de adentrar as unidades com drogas ou celulares em apenas 0,03%. Nenhuma pessoa tentou levar armas para os internos, segundo pesquisa da Rede Justiça Criminal, a partir de dados fornecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária. Entre os internos de nove presídios paulistas analisados, apenas 2,61% foram acusados de possuir algum objeto ilícito.
Em 2012, das quase 3,5 milhões de pessoas que foram submetidas a revistas vexatórias em São Paulo, apenas 0,02% foram flagradas com alguma quantidade de droga ou componente eletrônico, de acordo com dados cedidos pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo à Defensoria Pública, publicados na pesquisa da Rede Justiça Criminal. O número de apreensões de objetos ilícitos feitas dentro dos presídios é quatro vezes maior que as realizadas com visitantes.
“A revista íntima é muito humilhante. As funcionárias querem que coloquemos as mãos em partes íntimas do nosso corpo. O normal é abaixar três vezes de frente e três vezes de costas, mas as funcionárias nos fazem até abaixar dez vezes”, diz a mulher de um dos presos de São Paulo, em carta envida para a organização social Conectas Direitos Humanos. Os nomes não foram divulgados para preservar as identidades. “Se eu estiver muito fechada, a funcionária diz que não posso entrar e me manda voltar para casa (…) Mulheres que fazem tratamento vaginal não podem entrar na visita.”
“A revista íntima é a pior coisa que já vi no mundo, sofro e choro com a discriminação sofrida, elas (…) pedem para eu abaixar diversas vezes e cada vez que abaixo pedem para eu me limpar e fazer força, faço o que elas mandam, pois me sinto coagida”, diz a familiar de outro interno, também por carta. “Meu filho de 3 anos tem medo delas e me pede para eu parar de chorar (…) entristecido pela humilhação que a mãe dele passa.”
Além de se agachar, as visitantes relatam que precisam abrir os órgãos genitais com as mãos e fazer força como se estivessem dando à luz. Em casos de maior suspeita ocorrem também as revistas manuais. “Todos, inclusive crianças e idosos, ficam juntos, nus, tendo que agachar várias vezes, com alguém olhando os órgãos genitais e os abrindo. Depois, todos sentam, em um mesmo banquinho”, conta o advogado Bruno Shimizu, do Núcleo de Assuntos Carcerários da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. “Nunca fizemos uma inspeção em que esse assunto não tenha aparecido. Ele consta em todos os relatórios. É absolutamente generalizado e as pessoas não sabem que é ilegal.”
A Secretaria de Administração Penitenciária afirmou, em nota, que “revista aos familiares de presos são rigorosas, não sendo constrangedoras, nem vexatórias” e que “não há violação de nenhum dispositivo legal”. O órgão considera que graças ao rigor nos procedimentos de revista “não há apreensões de armas nas prisões” e a quantidade de celulares, entorpecentes e tentativas de fuga reduziu.
A advogada Vivian Calderoni, da organização não governamental Conectas, discorda. “Não há uma relação direta entre os objetos ilícitos que entram nos presídios e as revistas íntimas. O que acontece é que muitas vezes os familiares deixam de visitar os presos e isso é péssimo para a ressocialização. Além disso, na maioria das vezes, são as famílias que mantêm contato com os advogados e levam notícias do andamento do processo, e tomam conhecimento de alguma novidade que pode mudar o processo.”
A prática não está prevista na lei. O regimento padrão da Secretaria de Administração Penitenciária apenas diz que a revista deve ser feita por pessoa do mesmo sexo e, a de menores, na presença dos responsáveis. “O que acontece, na prática, é o que está nos manuais dos agentes penitenciários. Eles estão cumprindo uma ordem que é dada pelas autoridades superiores sem respaldo legal. Eles mesmo não gostam dessa situação”, comenta o defensor Bruno Shimizu. “O correto seria que as pessoas passassem, como no aeroporto, por um detector de metais e um scanner corporal.”
Em São Paulo, foi realizada, no último sábado (29), uma audiência pública para debater o tema, promovida pela Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária do órgão. Participaram defensores públicos, movimentos sociais ligados à defesa de direitos humanos e à questões carcerárias, além de parentes de internos.
Problema nacional
A Constituição Federal garante o direito à intimidade, assegurando indenização pelo dano decorrente da violação. Tendo isso em vista, a Conectas Direitos Humanos e mais sete organizações sociais irão lançar uma campanha nacional para exigir o fim da revista vexatória. Atualmente, apenas sete estados proíbem a prática: Paraíba, Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Tramita na Comissão de Constituição e Justiça do Senado o Projeto de Lei PLS 480/2013, de autoria da senadora Ana Rita (PT-ES), que prevê proibir a prática em todo o país. Ele tem o apoio do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. “É um constrangimento. Você distancia a família do interno e esse não é o objetivo da passagem pela penitenciária”, avalia a senadora. “Você transfere para a família uma espécie de punição. Nós já temos meios tecnológicos avançados para fazer o controle do que entra nos presídios.”
Uma resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, de 12 de julho de 2006, já recomendava a utilização de equipamentos eletrônicos para a revista em presídios, visando preservar a honra e dignidade da pessoa durante as revistas. “Somos obrigadas a colocar a perna em cima do balcão e ainda colocar o dedo e ficar de quatro”, denunciou a parente de um interno em presídio à Conectas Direitos Humanos, também por carta.
A prática de revista vexatória foi denunciada pela ONG aos países membros do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, durante a 25ª sessão ordinária do órgão, realizada em março, em Genebra, na Suíça. A organização pedirá ainda às Nações Unidas, que recomende o fim imediato da prática no Brasil. O relator especial da ONU para a tortura, Juan Mendez, chegou a afirmar para a entidade que as revistas vexatórias são “cruéis” e “desumanas”.
A ONU, no relatório “Proteção de Mulheres Contra a Tortura”, de 2008, aponta que “nudez, revistas invasivas do corpo, insultos e humilhações de natureza sexual constituem violência contra as mulheres” e que “o exame vaginal com dedo constitui violação e que, devido aos efeitos da prática, constitui tortura”.
O Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU, em relatório sobre o Brasil no ano de 2012, recomenda que “o Estado assegure que as revistas íntimas cumpram com os critérios de necessidade, razoabilidade e proporcionalidade (…) duma maneira compatível com a dignidade humana e respeito pelos direitos fundamentais. Revistas intrusivas vaginais ou anais devem ser proibidas pela lei”.
As Regras de Bangkok, que estabelecem critérios para o tratamento de mulheres presas, determinam que devem ser desenvolvidos métodos de revista que substituam exames invasivos e que os funcionários da prisão deverão ter “competência”, “profissionalismo” e “sensibilidade” para revistarem crianças.
Em 1996, a Argentina foi condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por revista vexatória de uma mulher e a filha dela, uma adolescente de 13 anos. A Convenção Americana de Direitos Humanos garante o direito à integridade pessoal e o direito da proteção da honra e da dignidade.
Fonte: Rede Brasil Atual