Publicado 03/04/2014 10:33 | Editado 04/03/2020 16:27
Das trevas pode brotar um luminoso horizonte para o Brasil caso seja vivo e consistente nosso aprendizado diante da dura experiência do longo período de intervenção militar. É necessário pensar nossa História à luz das lições da luta de classes e da atenta observação de sua trajetória, marcada pela generosa rebeldia do nosso povo, por um lado, e pela ação sobretudo truculenta das elites coloniais e de sua herança em 514 anos de vivência de uma jovem nação, do lado oposto.
Além de evitar que se repita a sombria experiência, por que devemos pensar o regime militar 50 anos após sua instalação quando o golpismo antidemocrático persiste, assumindo novas formas, num fenômeno de iniciativas cotidianas? Para que servem mesmo os golpes e por que eles ocorrem? Como tratar a insaciável fome do capital pela acumulação e seu contágio no processo político? Qual é mesmo a relação entre o golpe militar de 1964 e o golpe do Plano Real, de 1994?
Diante de tantas perguntas que rondam o imaginário e a febril produção intelectual e documental sobre o golpe de 1964, neste primeiro de abril (sua data real, abominada pelos militares golpistas), lembrei de um episódio pelo menos curioso. Certa vez, Márcio Pochmann, ainda presidente do IPEA mas sempre solícito, proferiu uma sentença comum à sua cultura de convivência: “sem tergiversar”. Afirmativo, recolhio bordão com um sorriso e um forte aperto de mão.
Lembrei da sua ênfase quando lia “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. Surpreendi-me ao verificar que o autor, em sua genialidade para alguns deterministas, pouco se referia às rebeliões populares, como elementos ponderáveis na produção de transformações revolucionárias no Brasil. E valorizava seu “homem cordial” a um padrão cultural e social balizado pelas mais recatadas mudanças. Ainda não voltei à fonte para ampliar essa reflexão; imagino que seria razoável repensar a convicção de que ele, de fato e não obstante os fatos, tergiversou.
A mão de ferro do conservadorismo
Pois, nenhuma análise da história colonial ou republicana no Brasil deve ignorar —enquanto fio condutor — seu fundamento na permanente e articulada tessitura política das suas classes dominantes. Estas, diante do visível e ululante fenômeno da luta de classes, e a partir de uma lógica natural de autopreservação dos seus interesses, alternaram a cada momento os instrumentos do processo de dominação, passando da repressão violenta ao trato político, ou adotando formas mistas, de acordo com as circunstâncias de cada levante em torno dos dilemas e contenciosos que agitaram a vida do país nas diversas épocas, com a evidente ênfase ao período republicano.
Não cabe aqui o minucioso resgate dos precedentes remotos da nossa formação colonial, da proclamação da Independência ou da República, mas nessa percepção é plausível que se pense, em linhas bastante gerais: a História do Brasil nada mais foi até hoje do que uma luta de opostos formulada pelo pensamento hegemônico no prumo de assegurar ao conservadorismo — defendido por suas elites com mão de ferro — sua estabilidade e perpetuação.
Em dadas ocasiões, nas raízes da cultura das transições negociadas, prevaleceria, à base das concessões ou avanços graduais, a ideia de “entregar os anéis para não perder os dedos”. Ou, noutra bitola, de reter a roda da História de forma turbulenta, arbitrária e truculenta, não raro sangrenta.
Tudo isso num processo subjacente à férrea e determinada defesa do monopólio da propriedade, em princípio a territorial, e dos direitos do imperialismo sobre este território, sua economia e seu povo — especialidade triunfante no embate interno do Exército brasileiro, inaugurado como guarda pretoriana da propriedade extensiva do solo e dos muito ricos, até hoje inimigo confesso de organizações como o MST.
Golpismo na veia
Um processo que, num resumido salto histórico, advoga, desde o período pós-1930, a sobrevivência e reciclagem das estruturas da Velha República ao lado do surto de industrialização conduzido por Getúlio Vargas, que se manteve, com um rito de passagem pelo golpe do Estado Novo, na crista do jogo político das díspares forças encapeladas no enigma que o devorou em agosto de 1954.
E que, após o trânsito “desenvolvimentista” de Juscelino Kubistchek, culminou numa crise marcada pela renúncia de Jânio Quadros, pela iniciativa de barrar a posse de João Goulart, de garroteamento pela via parlamentarista e finalmente do brutal golpe militar, quando, ao lado do povo, o Presidente eleito marchava para liberar o ímpeto reformista socialmente represado e mais recatado do getulismo.
Neste prumo, é recomendável interpretar, no caso do golpe militar, algo que vai além das suas razões articuladas às metas geopolíticas dos EUA, dos interesses da modernização conservadora e da acumulação ostensiva do capital no Brasil; seu percurso, desde o planejamento do desastroso golpe à saída palaciana honrosa para o desmoralizado regime, sob a inspiração do núcleo ideológico do regime, sob o comando do general Golbery do Couto e Silva, o estrategista por excelência dos oficiais da direita; enfim, do princípio da articulação golpista em 1955 à “abertura lenta, gradual e segura”.
Naquele ano, Golbery, à frente de um grupo militar, já tentara impedir que JK e Jango, seu vice, fossem empossados na Presidência, uma ação frustrada pelo então ministro da Guerra, marechal Henrique Batista Teixeira Lott, que se opôs ao golpe e desencadeou um movimento militar de "retorno ao quadro constitucional vigente".
Atraso histórico e transição negociada
Na linhagem da tradição golpista das elites brasileiras, formulou-se uma estratégia que produziu seus efeitos no processo político que se seguiu ao desfecho, em 1985, da saída conservadora e da transição negociada do Colégio Eleitoral, defenestrando o clamor popular das multidões na Campanha das Diretas.
Uma solução liberal que facultou às elites a interferência em todas as eleições presidenciais sucessivas e um novo golpe, o do Plano Real, em 1994, que aprofundou os laços da subordinação ao imperialismo e ao capital financeiro internacional.
Esta sobrevida à ditadura, submeteu, de modo recorrente, o país às novas regras da extorsão rentista, legando mais uma vez ao povo brasileiro a missão de ruptura deste ciclo enquanto condição indispensável à efetiva conquista da democracia, do desenvolvimento soberano, justo e igualitário.
Formalmente, quem subscreveu o arranjo final foi o último dos generais da linhagem golpista, João Batista Figueiredo, que entrou para a História como autor de uma frase lapidar: “Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo”. A esse povo, a ditadura legaria, além de seu trágico e descomunal saldo em tragédias políticas e sociais, uma dívida externa atualizada de 1,2 trilhão de dólares e uma inflação indexada superior a 300 por cento (uma das razões alegadas para o golpe seria a de uma suposta inflação de 80 por cento), beneficiando e encorpando a acumulação dos banqueiros articulados ao grande capital internacional e seus dóceis aliados nacionais que financiaram a tortura e o aparato repressivo da ditadura.
Assim grosseiramente, sem tergiversar.
(Num próximo artigo, verificamos como a intervenção foi planejada, na cúpula militar da Escola Superior de Guerra, para atender ao alinhamento com o imperialismo e como se realizou num novo patamar da acumulação privada do capital, o real objetivo dos golpes).
*Luiz Carlos Antero é mestre em Sociologia, escritor e jornalista.