Flávio Arruda: Sobre meninos, marchas e fuzis
“Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade nos olhos de um pai
Quero a alegria, muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país.”
(Milton Nascimento, em Coração Civil)
Publicado 03/04/2014 10:00 | Editado 04/03/2020 16:27
Cidade da Criança, centro de Fortaleza, setembro de 1977. Era dia da Independência, data de celebrar o orgulho nacional nos quatros cantos do Brasil, sil, sil. As crianças que estudavam na escolinha que funcionava no local corriam de um lado para o outro, agitadas pelos pais, mães e professoras que tentavam ordená-las em forma de exército mirim. Muitas empunhavam cataventos feitos de papel verde e amarelo, dupla de cores predominante em tudo naquele (s) dia (s). As mesmas que se exibiam nas braçadeiras dos homens perfilados logo em frente ao prédio principal. Diante daqueles seres em suas fardas e capacetes imponentes, sérios, intimidadores, toda gente prestava um respeito quase silencioso. Quase, porque sempre havia um: “Mãe, o que é isso que o homem tá segurando?”. “Cala a boca, menino. A marcha vai já começar!”
“Ordinário, marche”, entoava a voz de comando. A fala da autoridade faz a banda assumir a posição de sentido e os instrumentos marcarem o trote, representando o poder que silenciava bocas de todas as idades em nome da ordem e do progresso na versão da época. As radiadoras do local repetiam sem cessar os hits ufanistas do momento. Balões com as onipresentes cores nacionais também compunham os adereços que meninos e meninas carregavam com orgulho inocente. De vez em quando algum ganhava os ares, para tristeza de suas donas de momento e alegria do céu iluminado em azul acinzentado.
No meio daquelas crianças, um menino. Todo vestido de branco, no punho uma espada pintada pela irmã mais velha para esconder o plástico e imitar a lâmina imperial de combate. Faixa nas cores da República cruzando o peito, sem saber aludia Dom Pedro a bradar às margens do Ipiranga. Tinha menos de cinco anos, mas já fora apresentado ao papo que dava ao brado o solene título de Grito da Independência. Em homenagem ao centenário do fato propensamente libertador da nação, o local onde o pequeno cursou o jardim de infância passou a ser denominado Parque da Independência meio século e meio antes. Foi em 1922, mesmo ano da Semana de Arte Moderna, do levante do Forte de Copacabana e da fundação do Partido Comunista do Brasil. Mudou de nome quatorze anos depois, quando ganhou o epíteto de Cidade da Criança. Nomeação dada na administração de Raimundo de Alencar Araripe, primeiro prefeito eleito pelo voto popular em Fortaleza. Mais doze anos se passaram até que o nome original fosse resgatado: Parque da Liberdade. Isso ocorreu em 1902, marcando o protagonismo do Ceará na libertação de seres humanos de pele negra, escravizados por quase quatro séculos e vítimas de uma tragédia nacional ainda por reparar. A redenção estadual foi oficializada no dia 25 de março de 1884, pouco mais de quatro anos antes da Princesa Isabel assinar a Lei Áurea e data de fundação do partido comunista vinte o oito anos depois.
Em 7/9/1977, portanto, a Escola Municipal de Educação Infantil Alba Frota funcionava em um parque público cujos nomes homenageavam a Liberdade, a independência e as crianças. “Justo, muito justo, justíssimo”, não fosse um detalhe muito importante. Desde 31 de março de 1964, o Brasil, sil, sil vivia sob o domínio de uma ditadura perversa, que fez a mentira que vitimou a democracia de então ser elevada à enésima potência ao amanhecer do dia primeiro de abril. Já eram mais de treze anos de uma longa e terrível noite de terror e toda sorte de arbítrio, inicialmente promovida por uma articulação cívil-militar que teve o cearense Humberto de Alencar Castelo Branco como um de seus líderes. Tenente com participação no golpe que depôs Washington Luis, impedindo a posse de Júlio Prestes e colocando Getúlio Vargas no comando de um “Governo Provisório” em 1930, o veterano general havia sido nomeado chefe do Estado-Maior do Exército pelo então presidente da República, João Goulart. Assumiu em 1963 e foi um dos líderes militares do golpe que depôs o governo legitimamente eleito pelo povo brasileiro no ano seguinte. Faleceu em um desastre aeronáutico ocorrido em Fortaleza, em julho de 1967, quatro meses depois de ‘dar baixa’ da presidência do primeiro governo golpista deixando um rosário de quatro Atos Institucionais, a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), a edição da Lei de Imprensa, uma grande onda de desemprego e queda dos salários. Entre os quatro tripulantes que também perderam a vida no acidente estava a jornalista, cronista e poetisa Alba Frota. Por sugestão da escritora Raquel de Queiroz, a escola localizada na Cidade da Criança foi batizada, em outubro de 1967, com o nome daquela que foi sua professora e diretora durante muitos anos.
As crianças que marchavam naquele dia de aparente celebração e alegria tinham até sete anos de idade. Elas faziam o Jardim I, o Jardim II, a Alfabetização e eram submetidas à doutrina “Esse é um país que vai pra frente”. Aprendiam a ler e escrever na cartilha o Sonho de Talita e se formavam Doutoras do ABC, enquanto o país em que viviam sofria na cartilha da repressão, da tortura, dos desaparecimentos, das mortes, da censura e da pilhagem nacional. Talvez alguns de seus pais, suas mães, seus parentes, seus irmãos mais velhos tenham padecido com as letras mórbidas ditadas à ponta de fuzil. Talvez alguma tenha sido arrancada de seu lar pelos censores de opinião ou servido aos objetivos de covardes ensandecidos, como os sádicos que torturaram barbaramente a jovem militante Gilse Cosenza e usaram sua filha recém-nascida em joguetes macabros que pretendiam destruí-la também psicologicamente.
Orgulhoso em sua roupa branca, de faixa e espada o menino marchou. Muitos (as) também marcharam, sem que soubessem o real significado daquela ordem unida. Nem ele e nem as demais crianças do exército mirim lembrariam, mas não seria estranho se o prefeito Evandro Ayres de Moura estivesse entre as autoridades presentes. Graças a um dos Atos Institucionais cometidos no governo Castelo Branco, o alcaide não precisou do voto popular para ocupar a cadeira. Assim como o então governador do estado, o coronel Adauto Bezerra. No tempo do “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”, prefeito e governador estavam juntos na Arena. Ambos pertenciam ao partido do “Sim”, cuja existência era permitida por outro AI. Havia mais um partido abençoado, o do “Sim, senhor”.
Militar – como verbo ou como substantivo – em outra organização política era simplesmente ilegal, totalmente proibido, podendo causar sérios danos a quem ousasse infringir mais um Ato daqueles tempos sombrios. O mais nefasto deles – se é que houve algum menos odioso – foi editado em 1968 e levou o número 5, desmascarando de vez a ditadura e legalizando o governo arbitrário em cada um de seus artigos. Antes da edição do AI5, em 28 de março daquele ano, o estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto havia sido barbaramente assassinado pelas forças golpistas com um tiro no peito. O jovem paraense cometeu o erro fatal de estar no meio dos estudantes que protestavam contra o aumento do preço nas refeições do restaurante Calabouço, na cidade do Rio de Janeiro. A escalada de repressão ampliou os protestos em todo o país, como a histórica passeata dos 100 mil, ocorrida em julho também no Rio. Estudantes de Fortaleza – como Bergson Gurjão, Custódio Saraiva, Teodoro de Castro, Messias Pontes, Carlos Augusto Diógenes, Mariano de Freitas, Francisco Monteiro, Helena Serra Azul, Ruth Cavalcanti e tantos outros – ocuparam as ruas da cidade e enfrentaram a repressão várias vezes, inclusive naquele que passou para a história como “O Ano que não Terminou”. Era o governo Costa e Silva e muitos anos de chumbo ainda viriam.
Para escapar sem avarias ao arbítrio disfarçado de lei, o candidato a infrator deveria ter poderes como aqueles do protagonista de uma série de televisão que estreou na TV brasileira naquele 1977: O Homem de Seis Milhões de Dólares. Se, na real não fosse um tipo de Steve Austin, o perigoso militante poderia ser eleito indiretamente pelos coturnos profissionais para os cargos de bandido ou terrorista. Preso, quando não torturado ou morto como foram muitos, o herói da sobrevivência poderia ser vítima de um famigerado Inquérito Policial Militar (IPM), fichado, muito provavelmente condenado, perder o emprego, a matrícula na escola ou na universidade, cair na ilegalidade ou seguir para o exílio forçado. Mesmo diante de tanta perversidade, foi a oposição ao regime que carimbou alguns dos sem votos da fuzilaria com um apelido que lembrava o seriado norteamericano. Eram os biônicos.
O menino em marcha adorava os programas, desenhos animados, séries e filmes da televisão. Seus pais, irmãos e irmãs haviam deixado a condição de televizinhos desde meados dos anos 70. No embalo dos incentivos dados pela ditadura para a compra de aparelhos de TV, a sala modesta da casa ostentava um poderoso eletrodoméstico do tipo Preto e Branco, intensamente assistido quando não cismava de fechar a imagem ou apresentar os inconvenientes chuviscos.
As preferências do temporão eram quase sempre respeitadas, ao lado de unanimidades como a novela, o telejornal e outra novidade de 77: Os Trapalhões. Quarteto liderado pelo cearense Renato Aragão, o hilário Didi Mocó, a trupe só foi assistida em cores pelo menino em 1979, pois um dos jovens irmãos passou em um concurso público e comprou a desejada TV em cores logo nos primeiros salários. As imagens coloridas do fim de agosto e dos meses seguintes exibiam um monte de gente gritando de alegria. Recepcionavam outros tantos homens e mulheres vindos do exílio no exterior, beneficiados por outra notícia daqueles dias: a Lei da Anistia. Tal legislação havia anistiado igualmente perseguidos e perseguidores, mesmo que os primeiros já tivessem sofrido punições aplicadas por um poder ilegítimo ao exercerem o direito de rebelião e os segundos tenham sido agentes do terrorismo praticado em nome do Estado.
Antes de anistiados, aqueles homens e mulheres das imagens assistidas pelo menino eram sobreviventes. Anos antes, mesmo anos depois, foram cassados e caçados. Suas figuras eram exibidas na mídia cúmplice como terroristas procurados, criaturas perigosas, infratores da ordem marchadora. Muitos (as) têm suas fotos exibidas até os dias atuais, mas em cartazes de desaparecidos (as) ou em semblantes que lembram os mortos na grande treva nacional. Suas muitas lutas e histórias não foram em vão.
Já naqueles tempos, o recado que os fez buscar vencer os canhões que disparavam contra a liberdade foi ouvido por muitos. Juntos aos tantos outros que permaneceram resistindo à duras penas, estes ousaram organizar o povo, os trabalhadores da cidade e do campo, a juventude. Os irmãos e irmãs mais velhos do menino também ouviram o chamado. Enquanto a criança ia à escola, passeava em livros infantis e revistas em quadrinhos, brincava, esfolava os dedos dos pés e os joelhos tentando jogar futebol na rua e assistia TV, os jovens se inquietavam com o que viviam, viam e ouviam.
Moravam em um bairro cercado por quartéis. O do exército recebeu presos políticos, podendo ter ‘hospedado’ o militante comunista, funcionário público e professor Francisco Lopes da Silva. Também Francisco Lopes, o patriarca da família era funcionário do outro quartel das imediações, o da aeronáutica. Trabalhar na Base Aérea era motivo de orgulho para o “Sêo” Lopes, sertanejo de pouca educação formal e muita disposição para a lida. Era dono de uma casa modesta, um quintal com fruteiras onde podia cultivar pequenas safras de subsistência, alimentava, vestia e tinha os filhos e filhas estudando às custas do seu trabalho. Se faltasse comida, sempre podia contar com o “merol” servido pelo rancho da Força. E ainda tinham as ‘mangas fardadas’, os jatobás, os muricis, as azeitonas, os cocos-babões e outras frutas que podiam servir de merenda em caso de aperto. Não sem risco para quem não trabalhasse por lá, porque rezava a lenda que a PA e a PE raspavam a cabeça de quem fosse pego nas dependências federais sem permissão.
Permitidos pela filiação, os seis filhos e filhas mais velhos do orgulhoso servidor estudaram na escola pública conveniada com a Base e até frequentaram o cinema que funcionava no casario construído ainda na Segunda Guerra. Também era na Base que buscavam água junto com o pai quando o líquido faltava em casa, pois no bairro não havia rede pública, saneamento nem quase nenhum serviço público. Eis uma das lembranças mais fortes do caçula: era o último da fila puxada pelo pai e pelos irmãos quando marchavam na vereda de ida e volta em busca de água. Muitas vezes a jornada em terras militares terminava já de noitinha, e o menino lembrava a cena do filme Branca de Neve onde se viam as sombras dos anões a caminhar enfileirados com baldes nas mãos. Caminhavam e cantavam…
O menino também gostava das festas na Base. Esperava ansioso o dia de passar pelo portão da frente, observar os soldados empunhando Fuzis Automáticos Leves (Fals) e ganhar as dependências da FAB. Adorava quando chegavam o dia das crianças e o natal, datas onde as portas finalmente se abriam e as crianças filhas de civis e militares brincavam a valer, lanchavam, chupavam picolés, participavam de sorteios e ainda ganhavam presentes. Um dos mimos mais frequentes era um tipo de kit com caderno, lápis e borracha. O caderno trazia imagens variadas com motivos militares na capa e hinos da caserna na contracapa. A mãe, sempre desconfiada com a conversa dos militares, se enchia de orgulho ao ouvir o menino cantar os hinos ‘cívicos’ que lia nos impressos e ouvia tanto na televisão da casa quanto no rádio do pai. Assim as crianças da época eram educadas, cheias do mais puro e inocente civismo. Mais fácil um tanque passar no fundo de uma agulha do que aqueles meninos e meninas terem acesso a outro amor ao país que não aquele.
Mas o menino também adorava observar os irmãos e irmãs. Uma o levava e trazia da escolinha na Cidade das Crianças todos os dias. Indo e vindo do bairro ao centro da cidade, a janela do ônibus e os passageiros do coletivo foram os primeiros contatos do garoto com a realidade sofrida do seu povo. Foi ela que fez o retrato dele vestido de branco, faixa e espada nas comemorações da independência em 77. A primogênita o ensinou a ler e escrever antes mesmo de entrar na Alba Frota. Tinha dezessete anos quando ele nasceu. Era a primeira de duas mulheres e quatro homens cujo mais novo já contava nove verões. No ano da marcha do caçula, a maioria dos seis já era jovem e dois quase adolescentes. Como sempre tiveram de conciliar algum tipo de atividade para ajudar em casa com os estudos, buscavam melhores condições de vida, questionavam, conversavam com os amigos, trilhavam novos caminhos.
Foi numa dessas conversas com os amigos do bairro em busca de uma vida melhor que veio a ideia: fundariam um grupo de jovens. Assim fizeram. Realizaram várias atividades culturais e esportivas, arrecadaram finanças de muitas formas, ousaram fundar uma biblioteca, conversaram muito sobre como viviam a juventude e o povo da região. E as muitas conversas indicaram que era preciso fazer mais, superar os limites da ação apenas no local de moradia, ganhar outros espaços, conversar mais. Conversando, encontraram na vizinhança outros lutadores que os indicaram novos caminhos. Encontraram um padre católico que praticava os ensinamentos do Cristo libertador. Nessa jornada de encontros e descobertas, ajudaram na fundação da Associação de Moradores. Nos muitos papos com outros lutadores e lutadoras, tomaram partido.
Onde quer que os irmãos fossem, o menino caminhava atrás deles. Se não estivesse na escola, brincando ou assistindo a televisão, quase certamente seria encontrado no rastro dos mais velhos. Às vezes ouvia gritos que o mandavam voltar para casa, ameaças de ‘cascudos’ e outras gentilezas juvenis, mas conseguia ficar ao lado dos seus ídolos na maioria das tentativas. Mais do que o Zorro, o Batman, os Três Mosqueteiros ou o Capitão Nemo, os heróis do garoto eram seus irmãos. Com eles ouviu a trilha sonora da juventude de então. Para alegria da moçada que participava do grupo de jovens, até imitava o jeito da galera balançar o esqueleto ao som da música Disco, da Jovem Guarda, dos Beatles e de outros sucessos do momento. A ‘radiola’ da casa não tardaria a chegar, trazendo a preferência da rapaziada por MPB, Bossa Nova e o Pessoal do Ceará. Acompanhava a moçada nos jogos, nas atividades da biblioteca, observava tudo. Se os mais velhos iam para o dia de recreação na Escola Técnica, onde passaram a estudar alguns anos depois, o fim de rama não podia faltar. Os anos passavam. Sob o manto da tranquilidade, muita coisa acontecia.
As irmãs também não escapavam a tarefa de dar atenção ao menino. Além de levar e trazer o pequeno da escola de segunda a sexta, sempre o levavam à praia, aventura que o pequeno simplesmente adorava. Foi a Irmã mais velha que o levou pela primeira vez ao cinema, para enorme espanto do pequeno diante da tela grande. Também foi ela quem primeiro entrou na Universidade, escolhendo um curso na área da saúde e depois se engajando em campanhas que visavam melhorar a vida da população. Talvez tenha herdado a vocação da mãe, cujas prendas incluíam a aplicação de injeções e outros cuidados curativos quando a vizinhança não contava com o atendimento de um Posto de Saúde. Com a matriarca não tinha tempo ruim. Desempenharia quantas tarefas fossem necessárias para garantir que a prole tivesse o mínimo necessário e pudesse sobreviver naqueles anos tão difíceis para quem, como os seus, pertencia ao povão. Da sua saga de retirante da cerca e da seca, os filhos e filhas tiraram inspiração para praticar a solidariedade.
No bairro faltava quase tudo, menos vontade de dias melhores. Caminhões de suprimentos entravam e saiam do quartel que existia ali, enquanto a vizinhança só via a prosperidade apregoada pela fuzilaria quando algum representante da ordem dava as caras na TV ou o noticiário amestrado falava que de um misterioso bolo que precisava crescer. Se chegou a crescer, ao povo só sobraram as migalhas. Lá, como em tantos outros lugares, o fermento da massa se chamava luta. Foi a luta que fez surgir mobilizações como a Passeata da Panela Vazia, dia em que o povo saiu às ruas para reclamar da carestia, da falta de água, de comida, de liberdade e de dignidade. Sempre seguindo os irmãos, o menino estava lá. Descobriu que o povo também podia marchar.
Não perdia uma. Estava de novo com os irmãos, irmãs, companheiros (as) e camaradas deles no comício das Diretas Já, ocorrido na Praça José de Alencar no dia 29 de janeiro de 1984. Milhares de pessoas, muitas crianças como ele, ouviram canções e falas que clamavam pelo retorno das liberdades e do voto direto para presidente. Bandeiras com as cores nacionais eram agitadas ao lado de outras vermelhas, novamente exibidas para além do peito de seus militantes. Tinha pouco mais de onze anos. Não sabia bem o motivo, mas estava muito feliz naquele dia. Mudado pelas experiências precoces, marcharia novamente em setembro, já como integrante da banda do colégio onde estudava desde que recebeu o honroso título de Doutor do ABC.
Quase três meses depois do comício no centro de Fortaleza, assistiu em casa a matéria sobre a derrubada pela Câmara dos Deputados da Emenda Dante de Oliveira, que resgataria o direito ao voto para presidente a partir daquela data. Na sala da morada, um silêncio cortante. Ficou muito triste naquele dia.
As conversas sobre eleições faziam parte dos papos que o menino ouvia desde 1978, ano em que estavam em disputa um terço das cadeiras para as Assembleias Estaduais, a Câmara Federal e o Senado – o resto era dos biônicos. As eleições para Governador permaneceriam indiretas e o povo poderia votar em candidatos da Arena ou do MDB. Era o governo Geisel e estava em curso uma propensa abertura “lenta, gradual e segura”. A moçada de casa e seus colegas já haviam decidido voto e campanha nos candidatos da oposição, abrigados no MDB. O menino assistia o Mandrake, personagem dos desenhos animados de habilidades que podem ter inspirado os governantes misteriosos que carregavam a abertura na cartola. Voltando ao pleito arrumado, foram os eleitos parlamentares que votaram a Lei da Anistia, em 1979, e o retorno ao pluripartidarismo, em 1980. Naquele ano, o último preso político da ditadura foi libertado no Ceará, estado que havia sido o primeiro a cassar parlamentares que se opunham ao golpe.
Em 1982, repetindo a estratégia do pleito anterior, o Partido Comunista do Brasil lançou candidatos a vereador sob a legenda oposição. Contudo, o partido dos irmãos do garoto em marcha só voltou a ser legalizado em 1985, logo após a eleição indireta no Colégio Eleitoral, ocorrida em janeiro daquele ano, que deu vitória a Tancredo Neves e selou o fim da ditadura. Mas o presidente eleito não chegou a tomar posse, pois adoeceu pouco antes do ato e faleceu em 27 de março de 1985, dias antes do golpe civil-militar completar exatos 21 anos.
Novamente pela televisão, o menino acompanhou o drama do mineiro e viu o pranto tomar conta das cidades. Ainda ia completar 13 anos e chorou junto com seu povo. No colégio onde estudava, o padre que dirigia o local reuniu os estudantes para hastear a bandeira e cantar o hino nacional. Abraçado ao diretor, naquele dia o menino chorou novamente. Sabia o motivo das lágrimas. Só não sabia que o momento em que vivia era apenas o início de outra grande caminhada: a democracia que voltava a dar seus primeiros passos.
Naquele ano, os irmãos e irmãs do menino continuavam os estudos, trabalhavam e eram jovens militantes do movimento comunitário, sindical, juvenil, de mulheres e outras lutas populares. Conquistada a democracia, era hora de novas mobilizações para mantê-la e ampliá-la. Ainda era preciso derrotar por completo os aliados locais do arbítrio, mobilizar o povo para restaurar as conquistas golpeadas mais de duas décadas antes e abrir caminho rumo aos novos tempos. Estimulado pelos mais velhos e pelos ares do momento, o menino quis ser parte do bom combate. Entrou para o movimento estudantil. As marchas ficaram para trás.
Passados cinquenta anos do assalto ao país em março/abril de 1964, os garotos e garotas que marcharam antes e depois daquele dia no Parque da Liberdade cresceram. Fazem parte das crianças e jovens que viveram naquele período e tiveram condições de sobreviver nas cidades e no campo. São homens e mulheres que devem lidar de forma diferente com suas lembranças, com as relações entre as suas histórias individuais e os percursos que fizemos até aqui. É possível que nem todos sintam que lhes falta algo. Mas falta a plena liberdade, tomada sem aviso do presente e do futuro. Falta resgatar a verdade para desanuviar a (s) memória (s). Falta que a gente nunca esqueça, para que algo do tipo jamais aconteça. Falta lembrar o medo da paz mantida por fuzis. Falta fazer das reformas de ontem as necessidades atualizadas de agora. Falta mais democracia, mais povo, mais desenvolvimento, mais Brasil. Falta recordar a canção e dizer: “Os meninos e o povo no poder, eu quero ver”.
*Flávio Arruda é publicitário, ex-presidente da UJS/CE e filiado ao PCdoB. Nem sempre de espada em punho e catavento na mão, marchou um bocado quando menino. Desde muito novo prefere as passeatas.