SP: movimento luta pela preservação de patrimônio histórico

O micro-ônibus para na rua Urutu, bairro Vila Jacuí, zona leste de São Paulo. Ao descer, o guia avisa os participantes da excursão: “Prestem muita atenção no que estão vendo, porque vocês podem ser os últimos a observar isso”. Depois das reações dos passageiros, ele enfatiza: “Aliás, tudo o que viram hoje pode não existir amanhã”.

Patrimonio - Rede Brasil Atual

O autor do alerta, dado no último dia 15 de março, era o pesquisador Danilo Morcelli, que desenvolveu uma tese de mestrado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each-USP) sobre o patrimônio histórico da zona leste paulistana.

Ao longo do dia, foram vistos testemunhos do passado da região, quando a ZL era destino de veraneio de famílias abastadas da capital. Igrejas, caminhos entre palmeiras, chaminés industriais da história mais recente, tudo monumental. Apesar da precariedade, imagens que passavam a mensagem de patrimônio.

Depois do aviso de Danilo, a expectativa era de que surgisse algo grandioso, mesmo que degradado. Mas não. Espremido entre o trânsito da movimentada Dr. Assis Ribeiro, na Vila Jacuí, e a via férrea, havia só um terreno irregular, gramado, com restos de uma construção. As ruínas eram de 1750, anteriores à maioria das construções antigas do centro da capital.

Ali, no passado, erguia-se a sede do Sítio Mirim, uma casa bandeirista, onde se plantou cana, mandioca e se criou gado, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1973, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat), em 1982, e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), em 1991.

A sede integrava outro sítio, o Piraquara, tombado e destombado em função do desaparecimento da edificação que o caracterizava. O local hoje é vigiado por seguranças privados que tentam impedir ocupações de sem teto.

No passado, a localização do Sítio Mirim era estratégica. Do alto de uma colina, era possível ver, ao longe, a Capela de São Miguel, que fica no bairro de São Miguel Paulista, cuja construção é datada de 1622 – a mais antiga de todo o estado de São Paulo, que continua de pé e está restaurada.

Dali também era observável a movimentação de embarcações no rio Tietê, às margens da propriedade. Hoje, a vista é obstruída pela paisagem urbana de prédios, pontes e viadutos que ligam o bairro à rodovia Airton Senna. O cenário atual, além de esconder a capela, tira o rio do alcance da visão.

Desde 2007, há um projeto assinado pelo escritório Apiacás Arquitetos e Marcos Cartum, autor da Praça das Artes, no centro da capital, para a criação de um centro de memória no Sítio Mirim. A ideia é proteger as ruínas e criar mecanismos arquitetônicos, como a reconstrução da altura original e exposição de veios de água, objetivando que voltasse a ter significado para a comunidade, que atualmente não vê sentido em preservar um “terreno baldio”. “A ideia é proteger contra o esquecimento, a falta de sentido, de significado”, afirma Cartum.

Liderados por Antonio Luiz Marchioni, o padre Ticão, um dos principais articuladores do movimento pró-universidade federal da zona leste e outras questões relativas à região, os moradores encaminharam uma carta pedindo recursos para a execução do projeto de recuperação do Sítio Mirim ao atual secretário municipal de Cultura, Juca Ferreira. A correspondência foi enviada em uma grande folha de cartolina. “A gente fez bem grande para ele não poder guardar em nenhuma gaveta”, brinca o padre.

Memómia e Preservação

O passeio pela ZL é só uma parte de uma série de esforços empenhados por Danilo Morcelli, morador da zona leste. O pesquisador luta para dar visibilidade ao patrimônio local. Em conjunto com outros habitantes da região que tomaram a memória como causa, ele acredita que há edificações mais antigas e heterogêneas do que as do centro da cidade, que é foco privilegiado de atenção e investimento do poder público. “Sem conhecer o passado, a gente não reflete o presente e não planeja o futuro”, defende.

A zona leste teve ocupação concomitante com o centro da capital. A paisagem, tomada pelas planícies alagáveis do rio Tietê, fez com que a cidade caminhasse com mais intensidade para lá. Ainda assim, está repleta de construções antigas ameaçadas pelo esquecimento, pela ausência de políticas públicas e a especulação imobiliária que, nos últimos anos, recebeu mais um estímulo com o advento da Copa do Mundo.

No bairro da Penha, por exemplo, ao lado da primeira padaria da zona leste, na rua Gabriela Mistral, uma casa com traços da década de 30 do século passado foi demolida poucas semanas antes do passeio, segundo Danilo. Os escombros ainda estavam no terreno e eram avaliados por pessoas que os reaproveitam e vendem a lojas de materiais de demolição, tipo de estabelecimento comum nas imediações.

A padaria atualmente está fechada e não é reconhecida por nenhum órgão que cuida de patrimônio. Os registros sobre a história foram levantados por memorialistas do bairro, que estimam que tenha sido construída antes de 1930, no que era um antigo caminho de barqueiros, numa espécie de porto no rio Tietê, hoje uma avenida movimentada.

“As políticas de preservação não chegam na zona leste”, aponta a historiadora Patrícia Freire de Almeida, do Movimento Cultural da Penha (MCP) que, desde 2001, luta para preservar, entre outros projetos, a memória da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, cujos registros remontam a 1802, e que pode ser ainda mais antiga. A construção simples, sem adornos, foi erguida por escravos para cultos, em uma época quando eles não eram bem-vindos na igreja de brancos, a poucos metros dali.

Segundo os pesquisadores, a Igreja dos Homens Pretos é uma das únicas de São Paulo que conseguiu resistir às diversas tentativas de demolição ou remoção para um local menos valorizado. “A gente considera isso aqui uma referência de resistência dos negros da região”, explica Patrícia.

Desde 2001, todo ano, no mês de junho, o grupo Recado dos Nossos Ancestrais, do qual o MCP faz parte, realiza uma festa como a que os escravos faziam, mas o mês não é dos santos padroeiros Expedito ou Nossa Senhora do Rosário. É o mês do reconhecimento do valor histórico do local pelo Condephaat, o que ocorreu em 1982. “A ideia é buscar nessas memórias a identidade da região”, conta Patrícia.

Agora, o grupo quer que o Plano Diretor da Cidade, em debate na Câmara Municipal, garanta mecanismos que preservem o entorno: um centro comercial vibrante, mas que ainda ostenta prédios antigos, alguns já completamente modificados, para aumentar a proteção contra o apagamento dessas memórias, já que a área enfrenta e resiste ao assédio constante para ser transformada em estacionamento de um shopping próximo.

“Não interessa para eles (a especulação imobiliária) o tombamento, porque isso limita a verticalização. E, para quem vê desenvolvimento como sinônimo de verticalização, isso é ruim”, afirma Patrícia. “É muito mais fácil derrubar três casas 'velhas' e fazer um prédio do que ter um outro olhar, que pense em receber turistas, ter bens culturais”, avalia.

“Hoje, Itaquera está no centro do mundo em função da Copa. Todo dia, um viaduto, uma rua nova aparece. É quase uma ficção científica”, lembra a coordenadora do curso de História da Unicastelo, sediada em Itaquera, Maria Candelária, que tem direcionado os trabalhos de conclusão de curso dos alunos para a memória da região. “A primeira coisa é a educação patrimonial. Educação favorece a identidade das pessoas.”

Ameaça e reconhecimento

O especialista em gestão púbica e arquiteto da unidade de preservação do patrimônio histórico do Condephaat, Antonio Zagato, aponta que a falta de dinâmica econômica é um dos elementos que facilitam a preservação ao longo da história – e é justamente quando há o aquecimento da atividade produtiva que o patrimônio fica mais ameaçado. Contudo, ao mesmo tempo, ganha visibilidade. “Porque estão economicamente desvalorizadas, mas simbolicamente valorizadas”, explica.

Governos federal, estadual e municipal, todos possuem um órgão responsável pelo patrimônio. Eles fazem o reconhecimento e deveriam cuidar da fiscalização dos bens tombados. No entanto, não são os responsáveis pela preservação efetiva. Isso é tarefa dos proprietários dos imóveis que, em 95% dos casos, são particulares.

A diretora do Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e presidente do Conpresp, Nádia Somekh, em seminário no bairro da Penha para tratar das questões da zona leste, ressaltou que, na capital paulista, existem 16 técnicos para cuidar do assunto – seis dos quais se aposentam este ano. O quadro, que já é insuficiente, não deve ser recomposto.

Além da falta de recursos, a própria concepção de patrimônio no país, visto como ônus e não bônus para o proprietário, é um problema. “Queremos transformar isso em bônus”, declara. Entre as ideias estão dar incentivos fiscais e isenção de impostos a proprietários de bens privados que sejam tombados: “Patrimônio é uma herança. É uma questão de valorização social”.

O seminário também contou com a participação do arquiteto Ruy Ohtake, que tem projeto de recuperação da Celosul, unidade das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. Inaugurada em 1941, em Itaquera, era a maior fábrica da América Latina à época. O plano, além de um centro de memória, prevê moradias e uma universidade do trabalho.

Também esteve no evento a presidenta da superintendência do Iphan-SP, Anna Beatriz Ayroza Galvão, que enfatizou a necessidade de estimular o envolvimento da população nas questões de patrimônio. “É impossível falar de preservação sem a participação da comunidade”, defendeu.

Fonte: Rede Brasil Atual