Flávio Aguiar: O caça sueco e seu impacto tecnológico
Quando fui para a Suécia, em abril de 2010, a pedido da revista Inova ABCD, jamais me passou pela cabeça que estaria documentando a abertura de uma nova página na aviação brasileira. Para mim, tratava-se de documentar a existência de um avião militar, o Gripen da Saab-Scania – existência que fora posta em dúvida por uma afirmação do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, de que ele nunca sairia do papel.
Por Flávio Aguiar, na Revista do Brasil
Publicado 31/03/2014 09:44
É verdade que uma parte do projeto ainda estava no papel, mas sua realização dependia também da decisão do governo brasileiro sobre a compra de 36 caças para a FAB. Os concorrentes eram o F18-Super Hornet, da Boeing norte-americana, e o Rafale, da Dassault francesa, a preferida de Jobim.
O projeto Gripen não era apenas o de importação de um tipo de avião. A parte mais importante seria a da transferência imediata de tecnologia, inclusive mediante a fabricação de parte das peças da fuselagem do avião no Brasil, para o fornecimento em escala mundial – o Gripen já era o preferido em países como a África do Sul, República Tcheca, Hungria, além, é claro, da própria Suécia.
Sei que pensar em aviões militares e transferência de tecnologia nessa área pode não parecer muito bonito. Ainda mais para quem participou de marchas pacifistas desde os tempos da Guerra do Vietnã. Mas sei também que não vivemos num mundo paradisíaco onde o lobo vai beber água tranquilamente ao lado do cordeiro. E o Brasil – esperemos que jamais se torne um país imperialista ou agressivo do ponto de vista militar – tem de se defender e tem o que defender. Além das nossas gigantescas fronteiras, há o “território” do pré-sal, o que significa nosso “território” virtual no futuro, por meio do controle soberano dos investimentos e rendimentos. E – esperemos também que isso se concretize – da reversão destes para educação e saúde.
Desde aquela visita de 2010, muito chão passou debaixo do Gripen. Dizem os especialistas na área que quando a presidenta Dilma Rousseff assumiu, sua preferência iria para o avião da Boeing, na linha de maior aproximação com os Estados Unidos. Dizem os mesmos especialistas que o que congelou e reorientou essa preferência foi o episódio Snowden/NSA (envolvendo Edward Snowden, ex-técnico da Agência Nacional de Segurança norte-americana, e denúncias de espionagens contra cidadãos brasileiros, inclusive a presidenta). Se tal aconteceu, a reconversão foi rápida como um avião a jato.
Contra o Rafale da Dassault havia um argumento de peso, até para um leigo na matéria. O Brasil já negociava submarinos nucleares com a França (e negociou). E recomendam os sacerdotes, bispos e cardeais da área que no caso de um país como o Brasil, que não é autônomo em matéria de tecnologia militar, deve-se diversificar o universo dos fornecedores. De modo que também dessa perspectiva o voo do Gripen se encaixava.
Definida a escolha pelo Gripen, levantaram-se alguns argumentos contrários, sem muita base lógica nem real. Como o de que a escolha brasileira se dera por “razões ideológicas”, contra os Estados Unidos, preferindo a opção vinda de um país “socialista”, a Suécia. É argumento coirmão daquele que acusa a diplomacia dos governos Lula e Dilma de ser “ideológica”, em contraposição à tradição “técnica e pragmática” de nossas diplomacias anteriores. A tese fura em dois aspectos: em primeiro lugar, a Suécia está longe de ser “socialista”. Em segundo, não há razão para criar um laço de dependência tão estreito com a águia norte-americana.
Um argumento colateral a esse é o de que haveria uma diferença aviltante nos preços, que o Brasil, “por razões ideológicas”, estaria pagando mais caro pelo Gripen do que pagaria pelo F-18 Hornet. O Brasil vai gastar US$ 4,5 bilhões, quando o preço unitário do Hornet é de US$ 55 milhões. Ou seja, o gasto total seria de US$ 1,98 bilhão, menos da metade.
Esse argumento também não se sustenta. O custo unitário de um Hornet, hoje, é de US$ 66,9 milhões. Em 2009, já era US$ 57 milhões. Em segundo lugar este é o custo chamado de fly away. Ou seja, é o preço para tirar o avião do hangar e pô-lo na pista pronto para decolar. Se a este custo acrescermos a munição, mísseis, metralhadoras etc., o custo já sobe para US$ 80,4 milhões. E ainda não falamos de combustível, manutenção, contratos colaterais etc. Ou seja, é um argumento baseado ou na ignorância, ou na má-fé.
Já pela esquerda, apareceu a crítica de que o Brasil deveria ter escolhido um modelo russo ou chinês. Citava-se inclusive a Venezuela como exemplo, uma vez que este país tem vultosos contratos de cooperação militar com a Rússia. Só que as perspectivas brasileiras são bem outras. Dita o bom senso que não nos tornemos dependentes dos Estados Unidos. Mas também dita o bom senso que o Brasil não crie um clima de guerra com o vizinho. Já basta a China ser nosso principal parceiro comercial.
Uma queixa colateral a essa é o de que o Gripen nos tornaria tão dependentes dos Estados Unidos quanto do Super Hornet, pois aquele usa peças de fabricação norte-americana. Bom, os especialistas consultados na fábrica sueca garantiram que os três modelos, o Hornet, o Rafale e o Gripen, são verdadeiros híbridos, usando peças de várias procedências tecnológicas, ainda que de fabricação própria, o mesmo ocorrendo com os protótipos da Rússia e da China.
Mas há ainda as ponderações de “centro”, daqueles que se querem “imparciais”. Por que não aplicar as verbas gastas nos Gripen em saúde e educação? É um argumento parecido com os que se manipula para dizer que o dinheiro “gasto” nos estádios para a Copa do Mundo deveria ser revertido para saúde e educação. Quem assim raciocina demonstra ignorar conceitos de elaboração e de natureza de um orçamento público.
E dribla a verdadeira questão, para gáudio dos capitais rentistas: o que vai garantir mais verbas para educação e saúde é cortar os juros da dívida pública, cortar no superávit primário, domar a especulação financeira, combater a sonegação, introduzir melhores medidas para tornar o nosso sistema de impostos mais progressivo do que regressivo.
Além disso, existem repercussões imediatas da fabricação de peças do Gripen no Brasil na criação de empregos diretos e indiretos, pela cadeia produtiva que isso implica. Esse legado – palavra que está na crista da onda – vem do compromisso da Saab-Scania de investir em instalações em São Bernardo do Campo. O projeto é implementar no ABC um polo de incubação tecnológica, nos moldes do que existe em Linköping, cidade sueca onde está o Centro de Pesquisa Tecnológica da companhia. Autônomo, mas anexo à empresa.
A Saab-Scania, em cooperação com as áreas governamentais da educação e da pesquisa, também financia outros projetos independentes, inclusive para estudantes em formação. Conversei com um jovem brasileiro que, na época, desenvolvia algo na área de pesquisa de mercado na internet, visando a otimizar a possibilidade de maior informação e poder de decisão de quem usa esse tipo de ferramenta. Seu projeto envolvia a abertura para que internautas pudessem “passear” e “ir às compras” coletivamente.
Embarquemos no Gripen, portanto. E não é demais repetir: torcendo para que jamais tenha de ser usado pra valer.
A costura política para a escolha dos caças que seriam comprados pelo Brasil demorou mais de uma década, com muitas reviravoltas. A definição saiu em 18 de dezembro passado, quando o governo brasileiro anunciou a compra de 36 Gripen NG suecos, da Saab, vencedora da concorrência do Ministério da Defesa que era disputada ainda pela norte-americana Boeing e pela francesa Dassault. O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, afirmou durante o anúncio que a escolha foi feita com base apenas em detalhes técnicos, sem considerar, por exemplo, denúncias de espionagem da inteligência dos Estados Unidos no Brasil. E destacou o fato de o acordo garantir propriedade intelectual ao país, além de domínio da tecnologia.
Em janeiro, durante visita de executivos da Saab à prefeitura de São Bernardo do Campo, foi feito o anúncio de investimentos iniciais de US$ 150 milhões em uma fábrica naquele município do ABC paulista. A unidade deve começar a sair do papel ainda este ano, e a expectativa é de que nela trabalhem aproximadamente mil pessoas. Em torno de 80% da estrutura do Gripen será produzida no Brasil.
O secretário de Desenvolvimento Tecnológico, Trabalho e Turismo de São Bernardo, Jefferson José da Conceição, estimou em aproximadamente 5 mil o número total de empregos diretos, entre montagem e desenvolvimento. “Empregos qualificados, com muita tecnologia envolvida”, observou, em entrevista à TVT, em dezembro.
Ele destacou a possibilidade de envolver instituições de ensino da região, como a Universidade Federal do ABC, a Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e o Instituto Mauá de Tecnologia, entre outras. O modelo sueco tinha preferência do prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, que viajou para conhecer todos os concorrentes. Em 2011, ele articulou a criação de um Centro de Pesquisa e Inovação Sueco-Brasileiro, para desenvolvimento de projetos.
A escolha final do governo também contava com apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Ainda em 2010, o sindicato assinou uma declaração conjunta de apoio ao projeto da Saab, juntamente com a Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNM-CUT) e o sindicato nacional da categoria na Suécia, o IF Metall. Em fevereiro, essas entidades voltaram a se reunir, para trocar informações sobre a indústria e as relações de trabalho no Brasil e no país europeu. Segundo os sindicalistas, o modelo de relações de trabalho praticado pela empresa também pesou na decisão de apoiar o projeto por fim escolhido.
O presidente do IF Metall, Anders Ferbe, afirmou que o papel da fábrica é garantir, tanto do Brasil como da Suécia, condições e relações de trabalho dignas. Segundo o presidente da CNM-CUT, Paulo Cayres, a expectativa é de que a transferência de tecnologia possibilite também a qualificação dos trabalhadores brasileiros.
*Vitor Nuzzi é jornalista.