Publicado 26/03/2014 10:52 | Editado 04/03/2020 16:27
Certa feita discordei fortemente de uma professora com quem debatia sobre um filme. No início de sua réplica ela dirigiu-se à plateia: ‘entendam que estamos discordando, mas somos amigas’ enquanto me enlaçava o braço. Nunca nos tínhamos visto até ali. Depois de desvencilhar-me esperei o momento da tréplica, tentando compreender por que ela mentira. Ao ouvir algumas falas dos ouvintes amornando a controvérsia, compreendi. Em minha tréplica disse-lhes: ‘Não temamos a polêmica. Temos visões contrárias, como se tivéssemos assistido a filmes distintos. Uma de nós está errada, ponto. Expomos nossa argumentação e caberá ao público escolher que percepção lhe soa mais coerente.’ Nunca mais a vi.
Esse episódio me veio à memória, em função da polarização por conta da efeméride dos 50 anos do golpe civil-militar. Recentemente, rompi com um grupo de profissionais liberais, classe média que se colocaram a favor do golpe, e mais, justificaram assassinatos e torturas de opositores do regime. A conversa havia chegado a essa terrível inflexão por conta dos jovens mascarados e violentos nas ruas e dos trâmites da ‘lei antiterrorismo’: o governo da presidente ‘terrorista’ deveria reeditar as medidas do arbítrio. Eu lhes contrariei com veemência. Um deles tentou me abraçar: ‘deixa pra lá’.
Aspectos distintos da transição que não se completa. Os 50 anos do golpe contêm 25 anos de democracia incipiente onde há livre expressão, mas não o cultivo de debates públicos, restritíssimos quando ocorrem. Fora isso, ‘debatemos’ com quem concordamos e partimos para o ataque pessoal se encontramos um oponente com contra-argumentos objetivos. Teme-se o debate, não pela civilidade, mas para ocultar a ignorância que sustenta boa parte das posições reacionárias-fundamentalistas de todos os credos.
A não-revisão da Lei de Anistia e punição dos torturadores, a leitura da ordem-do-dia nos quartéis, enaltecendo a ‘Revolução’ no 31 de março, até há pouco, a manutenção dos ‘autos de resistência’, a ausência do pedido de perdão formal das Forças Armadas e da classe empresarial brasileira ao seu povo, incluído o setor das comunicações, esse ‘mergulho retido’ de nossa democracia enche-nos de estranhas câimbras que dizem que o passado não passa enquanto a ‘livre-expressão’ for exercício de má-fé do ‘direito de opinião’, esquivando-se de qualquer polêmica por conta do ‘relativismo’ dos pontos de vista.
Aos 25, nossa jovem democracia titubeia diante do passado, crendo-se mais forte que é, como qualquer mocinha dessa idade. Cabe a nós ajudá-la a chegar aos 50, adequada às duras condições de seu nascimento e afirmação, exigindo o reconhecimento de sua memória e verdade, sem concessões de seus princípios basilares, punindo seus ofensores, para que jovens gerações sejam guardiãs de seu legado. Sem aceitar falsas cordialidades nem mentiras de reconciliação acovardada. Como qualquer mulher de 50 que se preze.
*Sandra Helena de Souza é professora de Filosofia e Ética da Unifor
Fonte: O Povo
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