O Golpe de 1964 e as políticas de memória da Comissão de Anistia

A Comissão da Verdade constitui uma das maiores vitórias de nossa sociedade, rompendo com a lógica da transição controlada e do silêncio imposto que o regime de 1964 tentou fazer prosperar. Sua instalação é um passo determinante para a consolidação e o aprofundamento democrático.

Por Paulo Abrão*, Marcelo Torelly** e Egmar de Oliveira***

Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, e Embaixador, Antonio Patriota, entregam certificados de homenagem a militantes que auxiliaram exilados e combateram a ditadura brasileira desde os EUA (Nova Iorque, out/2013)

Primeiro de abril de 2014 é uma data excepcional na vida do nosso país, e por isso merece registro. Em 1964, há meio século, acontecia um dos mais duros golpes de nossa história. Os militares derrubavam o governo democrático e legítimo do presidente João Goulart, interrompendo um ciclo de reformas populares e dando início a uma violenta ditadura, caracterizada pelo uso da repressão, tortura, mortes e desaparecimentos, exílios, restrições às liberdades políticas e de imprensa, concentração de renda e desorganização de entidades sociais. Era o Estado de terror interrompendo sonhos e projetos de milhares de brasileiros. A oportunidade dos 50 anos do Golpe nos permite refletir e contextualizar de maneira forte e incisiva sobre a necessidade de fomentar políticas de reparação, memória e verdade que “unam as pontas” entre os projetos interrompidos do passado e as lutas e utopias do presente, reconstruindo o tecido social e fortalecendo a estrutura política de nossa democracia.

A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça foi estabelecida no ano de 2001 com o objetivo de promover reparação moral e econômica aos afetados por atos de exceção entre os anos de 1946 e 1988. Boa parte de seus mais de 62 mil pedidos já analisados pela Comissão refere-se ao período da ditadura militar. Muitos destes casos foram apreciados nos locais onde as violações ocorreram, as chamadas Caravanas da Anistia, permitindo combinar os processos de reparação e esclarecimento histórico com uma ampla reflexão, junto aos atores locais, sobre o impacto que o autoritarismo teve em cada comunidade. As quase oitenta Caravanas realizadas desde então em dezenove estados das cinco regiões do país são uma das várias políticas de memória que a Comissão passou a empreender a partir do ano de 2007.

Medidas de grande impacto, como a construção do Memorial da Anistia Política do Brasil, um sítio nacional de memória e homenagem constituído por um museu e um centro de documentação, são complementadas por iniciativas focais. Desde 2008, a Comissão anualmente seleciona e fomenta uma série de projetos da sociedade civil, cujo alcance pode ser nacional, regional, ou local, por meio do projeto Marcas da Memória. Em parceira com associações de perseguidos, universidades, fundações e entidades sem fins lucrativos, o projeto promove registros de história oral, edição de livros, festivais de cinema, restauração e produção de audiovisuais, produção de exposições artísticas, instalação de monumentos em logradouros públicos em homenagem à resistência e à luta pela anistia, digitalização de acervos históricos, apresentações culturais de música e teatro, entre outras ações.

Testemunhos em homenagem a ex-perseguidos políticos durante a 61ª Caravana da Anistia, agosto de 2012,
PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2012

O conceito que orienta estas políticas públicas é muito simples: assim como o processo de reparação ao reconhecer as violações promove o direito à verdade, a afirmação das memórias sobre a repressão e resistência constitui, também, um mecanismo de reparação simbólica, dirigido não apenas ao perseguido político, mas à sociedade toda. Com iniciativas voltadas ao fomento de projetos de memória a Comissão da Anistia procura afastar-se de uma perspectiva unitária do passado, focada na ideia de que uma única verdade permitirá uma única memória. Trabalha, em sentido oposto, com a pluralidade de leituras do passado e a necessidade de sua insurgência para a vitalização do presente democrático.
 

Com isso não se quer dizer, como podem pensar alguns apressados, que o trabalho de busca da verdade não seja relevante. A Comissão da Verdade constitui uma das maiores vitórias de nossa sociedade, rompendo com a lógica da transição controlada e do silêncio imposto que o regime de 1964 tentou fazer prosperar. Sua instalação é um passo determinante para a consolidação e o aprofundamento democrático, tendo como objetivos tanto desmascarar versões falseadas do passado, como aquelas apresentadas pela ditadura quanto à morte de um sem números de cidadãos por ela assassinados, quanto permitir um amplo esforço concentrado de busca e revelação de informações que de outro modo jamais chegariam ao grande público.

A Comissão da Verdade não tratará apenas de promover o conhecimento da história – trabalho arduamente empreendido há anos pela historiografia brasileira –, mas também de promover a identificação dos mecanismos que tornaram possíveis as violações praticadas contra os Direitos Humanos reconhecidas pela Comissão de Anistia e pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, propondo medidas de não repetição que fortaleçam a agenda de aprofundamento democrático e luta pelos direitos humanos.

O direito à verdade enquanto direito ao acesso à informação, ao conhecimento do passado e, em última análise, à transparência do Estado quanto aos atos de seus agentes não se confunde com o direito à memória. A memória é um produto humano complexo e multifacetado, que se metamorfoseia em diversos planos: a memória individual, a memória coletiva, social, institucional, geracional… Ainda, pode variar desde a lembrança objetiva, quase numérica, até a lembrança mais afetiva, absolutamente subjetiva, conectada talvez mais ao “eu de que lembra” que ao próprio objeto da lembrança.

As políticas de memória são fundamentais para permitir o desabrochar destas sutilezas. Para compreender não apenas os macroprocessos, mas também seus microefeitos. Para verificarmos como o funcionamento do aparato repressivo impactou de distintas maneiras a vida de diferentes pessoas. Se a busca da verdade pode nos levar a conhecer os sítios onde funcionaram centros de torturas, somente a memória pode nos permitir acessar, em alguma medida, as experiências subjetivas que estes locais produziram em seus afetados diretos e indiretos.

Os direitos à memória e à verdade são distintos, mas complementares. Daí a comum referência a um direito à memória e à verdade uno, composto por essas duas dimensões que se inter-relacionam. Todo cidadão tem direito à memória – consequência de nosso direito à identidade e à verdade. Aqui tratamos não apenas da memória individual, mas também das memórias social e coletiva. É dever do Estado garantir meios para que todos os cidadãos, quer tenham ou não vivido um passado repressivo, possam acessar este passado em sua dupla dimensionalidade: enquanto verdade e enquanto memória.

Temos como premissa que os regimes repressivos violam não apenas o direito à verdade, produzindo documentos com informações errôneas, estabelecendo falsas versões ou, simplesmente, censurando informações, mas também o direito à memória. A ditadura opõe-se à pluralidade e se vale do medo para tentar impor uma cultura monolítica, que passa pela afirmação de uma longínqua origem comum e uniforme do povo – tipicamente fascista – chegando à negação do direito à divergência de opinião, base pluralista da democracia.

Superar o legado autoritário significa não apenas regressar à democracia em termos institucionais, mas também permitir que as memórias reprimidas possam insurgir, sabendo-se a priori que estas memórias serão distintas no campo e na cidade, entre homens e mulheres, jovens e velhos, resistentes e opressores.

Estudantes de ensino médio e fundamental assistem encenação da peça "Fllha da Anistia"
no Teatro Nacional – Brasília, set/2012

É assim que, por meio de políticas de memória, se constitui um mecanismo de efetivação do direito à memória e à verdade, mas também de fortalecimento democrático. Embora não se possa, por evidente, contemplar a totalidade dos sujeitos (pretensão que só uma visão monolítica da sociedade teria), as políticas de memória permitem jogar luz sobre um conjunto de experiências individuais e coletivas sob o autoritarismo e, partindo desta dimensão subjetiva, reconstruir parcialmente o passado que nos une. Permite, assim, efetivar o direito à memória daqueles que foram vítimas a um só tempo em que igualmente garante o direito às memórias de todos nós, vítimas diretas ou não do regime de arbítrio.
 
 

Por meio de suas políticas de memória a Comissão de Anistia tem prestado contribuição à sociedade brasileira com absoluta segurança de que a sua tarefa histórica não se limita em reparar e indenizar os danos que o Estado de exceção causou aos perseguidos políticos, mas também em fazer da memória um elemento de reparação a toda a sociedade, lesada em sua autodeterminação, em suas liberdades públicas, em seu desenvolvimento econômico, social e político.

As políticas de memória atendem não apenas ao interesse subjetivo daqueles que lembram, nem se restringem à dimensão individual daqueles que perderam seus entes queridos para a repressão. Elas atendem também ao interesse de toda a sociedade, funcionando como elemento de alargamento de nossa cultura democrática e de nossas identidades (locais, grupais, nacionais…). Promover tal direito é mais do que uma obrigação do Estado, reconhecida em inúmeros documentos e leis domésticas e internacionais, sendo, sobretudo, um imperativo ético de uma sociedade que pretende reconstruir-se em bases democráticas.

*Paulo Abrão é professor universitário, secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. Doutor em Direito pela PUC-Rio e autor, com Tarso Genro, da obra Os Direitos da Transição e a Democracia no Brasil (Belo Horizonte: Fórum, 2012).

**Marcelo D. Torelly é pesquisador visitante na Universidade de Oxford (Inglaterra). Coordenador-Geral de Memória Histórica da Comissão da Anistia (2007-2013). Autor da obra Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito (Belo Horizonte: Fórum, 2012).

*** Egmar José de Oliveira é advogado e presidente da Comissão da Verdade da OABGO. Conselheiro (2004-2013) e vice-presidente (2008-2013) da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

****Matéria publicada no Portal Fundação Maurício Grabois