As mulheres na luta contra o extrativismo na América Latina 

Do norte ao sul, as veias latino-americanas seguem sangrando. Projetos mineiros extrativistas, hidrocarbônicos ou agroindustriais se multiplicam por todo o continente nas mãos de empresas multinacionais, com a crescente presença de companhias estatais nos últimos anos.

As mulheres na luta contra o extrativismo na América Latina - Miriam Gartor

Se existe algo em comum entre governos progressistas e neoliberais da região, é a consolidação de um modelo neo-desenvolvimentista com base extrativista. E a outra cara desse processo de extração e exportação de matérias primas em grande escala se firma na tomada de posse dos territórios e violação de direitos das populações afetadas.

Mesmo as mulheres tendo estado presentes na resistência socioambiental contra os projetos extrativistas, suas lutas nem sempre são visíveis. Porém, nas últimas décadas, a massiva presença feminina e seu papel de protagonismo na defesa do território têm atraído visibilidade na medida em que o processo de remoções se aprofunda.

Suas vozes, que partem da pluralidade de enfoques e posicionamentos, revelam o impacto que as atividades extrativas produzem nas relações de gênero e na vida das mulheres. Algumas se encaixam nos feminismos populares e comunitários, outras vêm do eco do feminismo, e muitas não se identificam como feministas de forma explícita. Porém, todas elas, diante de sua diversidade, compartilham o horizonte de uma luta pós extrativista, descolonizadora e antipatriarcal, e ganham poder com o marco das resistências. Sua principal contribuição: trazer à tona os estreitos vínculos entre extrativismo e o patriarcado.

Tratam-se de mulheres e garotas

Os blocos petroleiros na Amazônia Equatoriana, a exploração mineira de Cajamarca no Peru ou a rota da soja na Argentina compartilham de uma realidade. Em todos esses lugares, afetados pelas atividades extrativistas, a massiva chegada de trabalhadores provocou um crescimento no mercado sexual. O álcool, a violência, e o uso de mulheres e garotas para fins de exploração sexual se estabelecem no cotidiano dos povoados como expressão de uma forte violência machista. Uma pesquisa realizada no aniversário do Encontro Latino-Americano Mulher e Mineração, que aconteceu em outubro de 2011 em Bogotá, indica que “existem situações críticas que afetam diretamente as mulheres, tais como a servidão, maus tratos, migração para prestação de serviços sexuais (…) e a estigmatização das mulheres que exercem a prostituição”.

Por outro lado, o modelo extrativista traz consigo a militarização dos territórios, e as mulheres enfrentam formas específicas de violência por conta de seu gênero. Isso inclui, em muitas ocasiões, agressões físicas e sexuais por parte das forças de segurança públicas e privadas.

Nessa perspectiva, tanto a terra como o corpo da mulher são concebidos como território sacrificável. A partir desse paralelo, os movimentos feministas contra os projetos extrativistas construíram uma nova imaginação política e de luta que coloca o corpo da mulher como o primeiro território a ser defendido – a recuperação do “território corporal” como um primeiro passo indivisível da defesa do território terrestre. Uma reinterpretação na qual o conceito de soberania e autodeterminação dos territórios se amplia e se vincula aos corpos das mulheres.

Foram as mulheres Xinkas, resistentes à mineraria na montanha de Xalapán (Guatemala) que, a partir do feminismo comunitário, construíram esse conceito. Afirmam que defender um território terrestre da exploração sem levar em conta os corpos femininos violentados é uma incoerência. “A violência sexual é inadmissível dentro deste território, porque, senão, para que o defendo?”, questiona Lorena Cabnal, integrante da Associação de Mulheres Indígenas de Santa María de Xalapán.

“Nós, mulheres, somos uma economia em resistência”

A penetração das indústrias extrativistas nos territórios remove e desarticula as economias locais. Rompe com as formas anteriores de reprodução social da vida, que se reorientam em função da presença central da empresa. Esse processo instala nas comunidades uma economia produtiva altamente masculinizada, acentuando a divisão sexual do trabalho. O resto das economias hegemônicas – a economia popular, de cuidados etc -, que até aquele momento haviam tido um certo peso nas relações comunitárias, passam a ser secundárias.

Em um contexto no qual os papeis tradicionais de gênero estão profundamente institucionalizados e o sustento da vida é subordinado às dinâmicas de acumulação da atividade extrativista, os impactos socioambientais, como a contaminação de fontes de água ou o aumento das doenças, incrementam a carga de trabalho doméstico e de cuidados diários que as mulheres realizam.

“Há milhares de experiências produtivas e econômicas das mulheres que a partir de hoje reconhecemos e renomeamos como economias em resistência.” Por meio dessa ideia, adotada coletivamente no Encontro Regional de Feminismos e Mulheres Populares, celebrado no Equador em junho de 2013, as mulheres planejam outra forma de fazer economia. Uma economia baseada na gestão dos bens comuns que garante a reprodução cotidiana da vida. Tal e qual, a socióloga e pesquisadora argentina Maristella Svampa assegura que a presença das mulheres nas lutas socioambientais tem impulsado uma nova linguagem de valorização dos territórios baseada na economia de cuidado. Por trás dessas lutas, portanto, emerge um novo paradigma, uma nova lógica, uma nova racionalidade.

O extrativismo e a reconfiguração do patriarcado

“A presença de homens de outro lugar, que ocupam as ruas, começam a beber e assediar as mulheres, faz com que estas não podem nem sair pra tomar um café porque são tratadas como putas”, contam as mulheres em Cajamarca, uma das regiões mais afetadas pelas atividades mineradoras no Peru.

Em um contexto de masculinizarão acelerada do espaço, o extrativismo rearticula as relações de gênero e reforça os estereótipos da masculinidade hegemônica. Nas áreas onde as indústrias extrativistas se assentam, consolida-se o imaginário binário baseado na figura do homem provedor, no qual o masculino se associa ao domínio. Nesta recategorização dos esquemas patriarcais, o pólo feminino se encontra na ideia da mulher dependente, objeto de controle e abuso sexual.

Definitivamente, tal como aponta um estudo publicado por Acsur-Las Segovias, as aspirações coletivas que giram em torno das atividades extrativas estão fortemente influenciadas por padrões masculinos, por imaginários masculinizados. Neste sentido, as experiências feministas permitem que o extrativismo se coloque como uma etapa de atualização do patriarcado. A pesquisadora e ativista Mexicana Raquel Gutiérrez sustenta que “extrativismo e patriarcado têm uma ligação simbiótica. Não são a mesma coisa, mas não podem existir um sem o outro”.

Protagonistas da resistência

Quando a empresa Yanacocha adquiriu o projeto de mineração Conga, em 2001, nunca imaginou que uma só mulher poria em risco suas aspirações. Máxima Acuña enfrenta com firmeza um dos gigantes da mineração. Nega-se a entregar suas terras, situadas em frente à Laguna Azul, na região peruana de Cajamarca, a uma companhia que já foi denunciada várias vezes pela aquisição irregular de terrenos privados. Desde o ano de 2011, Máxima e sua família têm sido vitimas de tentativas violentas de despejo por parte de funcionários da mineradora e da polícia estatal. Entre ameaças, intimidações e hostilidades, resiste a um processo judicial instaurado com irregularidades pela Yanacocha, com o intuito de usurpar terras.

Em junho de 2008, Gregoria Crisanta Pérez e outras sete mulheres da comunidade de Agel, em San Miguel Ixtahuacán, na Guatemala, sabotaram o painel elétrico, interrompendo o abastecimento da mineradora Montana Exploradora, subsidiária da canadense Goldcorp Inc. Durante quatro anos, houve uma ordem de captura das mulheres por sabotagem do funcionamento da mina. Finalmente, em maio de 2012, os indiciamentos penais foram levantados e elas conseguiram recuperar parte das terras de Gregoria, que vinham sendo utilizadas irregularmente pela empresa.

As mulheres do povoado de Sarayaku, na Amazônia Equatoriana, encabeçaram a resistência contra a petroleira argentina Compañia General de Combustibles (CGC), e conseguiram expulsá-la de suas terras em 2004. O Estado equatoriano havia feito uma concessão de 60% do território para a empresa, sem realizar nenhum processo informativo ou de consulta prévia. Foram as mulheres, desde o princípio, que tomaram a iniciativa. Quando o exército fez uma incursão em seu território, militarizando a área em favor da petroleira, elas roubaram seu armamento. O exército quis negociar a devolução das armas de forma secreta. O vilarejo de Sarayaku, empurrado pelas mulheres, convocou toda a imprensa do Equador pra trazer o caso à luz pública. No ano de 2012, depois de uma década de litígios, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos declarou o Estado equatoriano responsável pela violação dos direitos humanos do povo de Sarayaku.

Estes e outros casos ilustram o panorama anti-extrativista latino-americano no qual mulheres sobressaem como protagonistas da resistência, incorporando novos mecanismos de luta e reivindicando seu próprio espaço. Em seu comunicado, as mulheres amazônicas, que em outubro de 2013 caminharam por mais de 200 quilômetros contra a XI Ronda Petroleira em Equador, proclamaram: “defendemos o direito das mulheres de defender a vida, nosso territórios, e falar com nossa própria voz”.

Fonte: La Marea
(Tradução: Ítalo Piva, no Brasil de Fato)