Dilermando Toni: Guerra cambial, vulnerabilidade e resistência
Neste final de semana em Sydney na Austrália, encerrou-se mais um capítulo da guerra cambial que os países ricos, especialmente os EUA, movem contra os países em desenvolvimento a fim de livrar-se da crise.
Por Dilermando Toni*
Publicado 25/02/2014 19:46
Os fatos desenrolaram-se na reunião do G-20 que reuniu os representantes da área econômica dos governos dos países participantes, tais como ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais. O Brasil foi representado pelo o secretário Ministério da Fazenda Carlos Conzendey e por Alexandre Tombini, presidente do Banco Central. Ademais, lá estava Madame Lagarde, diretora-gerente do FMI. Tradicionalmente, esta reunião precede a dos chefes-de-estado dos países membros que se realiza alguns meses depois.
O G-20 reúne exatamente os países ricos e os principais países em desenvolvimento[i] e é, portanto uma caixa de ressonância das relações entre estes países. E qual é o diagnóstico de que partem os países ricos para pressionar os outros países?
1) De que a crise nos centros capitalistas está sendo superada e está levando a um novo crescimento da economia mundial. De um fator de atraso, os países ricos passam a puxar o desenvolvimento. Concretamente, espera-se que os EUA cresçam 2,6% em 2014, o que se repetiria em escala mais reduzida com a Europa e o Japão;
2) Por isto, já se permitiriam começar a fazer flexões na política monetária praticada retirando gradualmente (tapering) as injeções maciças de dinheiro na economia, tanto nos EUA, como na Europa e no Japão. Nos EUA, por exemplo, o FED passa sucessivamente de estímulos mensais de US$ 85 bilhões a US$ 75 bilhões e a US$ 65 bilhões o volume do dinheiro com o qual o governo americano compra títulos dos bancos privados;
3) Que as economias em desenvolvimento, vulneráveis, passam a enfrentar desacelerações e crises, bem como o crescimento da volatilidade nos mercados financeiros e nos fluxos de capital. Muito se ressalta a “desaceleração chinesa” que, depois de ter crescido 7,6% em 2013, cresceria “apenas” 7,3% em 2014, segundo o FMI. O Brasil seria um caso típico de vulnerabilidade, constatada tanto a partir de critérios subjetivos estipulados pelo Federal Reserve dos EUA, como de uma conhecida agência de classificação de risco, e divulgados dias antes da reunião do G-20.
É a partir deste diagnóstico, ou seja, da “nova” situação que economia mundial estaria vivendo é que os círculos dominantes da oligarquia financeira passam a sua receita para os países em desenvolvimento. Seriam necessários reformas e ajustes nos países em desenvolvimento no sentido de garantir o prosseguimento da retomada do crescimento do mundo desenvolvido. Para tanto é fundamental salvaguardar a estabilidade financeira (safeguard financial stability, FMI/Lagarde), adotando ações relativas à política monetária para combater a volatidade “natural” advinda da mudança da política monetária dos ricos. Uma turbulência muito grande poderia vir a prejudicá-los. Aliás, nas palavras de Lagarde, o Fundo estaria disposto a ajudar com conselhos ou com dinheiro, a quem estiver em dificuldades.
Seria, portanto, de bom alvitre “fazer o dever de casa”, ou seja, nada de arroubos que não estivessem nas conhecidas e fracassadas receitas neoliberais. Juros nas alturas para atrair de todas as maneiras os investidores (especuladores) internacionais, câmbio totalmente flutuante ao sabor do mercado, sem qualquer administração estatal, conta de capital escancarada para permitir ao capital entrar e sair de qualquer lugar sem quaisquer constrangimentos, novas privatizações, gordos superávits para garantir o pagamento das dívidas etc, etc. As pressões neste sentido são feitas às escâncaras, particularmente em vésperas de eleições.
A primeira coisa a examinar é por que existe volatilidade, que passou a ser fenômeno permanente em um mundo globalizado, financeirizado e hegemonizado pelo imperialismo. O sistema monetário internacional está baseado em uma única moeda que não tem correspondente material e sim está lastreada em títulos da dívida dos EUA. O dólar é, ao mesmo tempo, a principal moeda de reserva internacional e moeda de crédito de uma economia nacional. Só poderia haver estabilidade se esta moeda internacional fosse desconectada das condições econômicas e dos interesses soberanos de um único país. A vigência de tal sistema só traz instabilidades e incertezas para a economia internacional.
Ao adotarem o padrão dólar flutuante (1971/1973), os EUA se livraram de amarras que o referencial independente, o ouro, lhes impunha e passaram a exercer uma hegemonia avassaladora sobre o sistema monetário internacional. Têm condições de expandir sem limites, unilateralmente o volume de moeda, isto é, de emitir dívida pública, e fazer sua moeda circular mundo afora, com as taxas de juros que lhes forem mais convenientes. Com isto provocam mudanças programadas segundo seus interesses nacionais nos fluxos de capitais internacionais, ora para dentro, ora para fora dos outros países. Este fenômeno foi agravado mais recentemente com o advento da crise capitalista, aumentando a instabilidade e a volatilidade nos mercados de câmbio dos países em desenvolvimento. Ora eles estão inundados de dólares e suas moedas nacionais se valorizam; ora os dólares “fogem” e suas moedas perdem valor.
É, portanto, extremamente contraditório e insustentável que os EUA altamente endividados (inclusive com pesada dívida externa líquida), com grandes déficits, que se desindustrializam seguidamente, com enormes gastos militares, terem tal poder sobre os destinos do sistema monetário internacional. Do ponto de vista estrutural não há saída para esta situação que não seja a adoção de outra arquitetura, mais equilibrada, sem hegemonias.
Em conclusão, as turbulências nos mercados financeiros e cambiais dos países em desenvolvimento nada têm de “natural”. Ao contrário, têm como causa primária os desequilíbrios e contradições do sistema monetário internacional dominado pelos EUA. Hoje em dia, o dólar, a política monetária e cambial dos EUA tem sido um instrumento fundamental para que este país exerça sua hegemonia imperialista.
O que há de realmente novo na economia mundial é a ascensão de grandes e médios polos econômicos e políticos a partir da periferia do sistema. Esta é uma tendência estrutural que, apesar dos percalços, não deve esgotar-se tão cedo. Estes países, de todos os continentes, especialmente a Ásia, tem mostrado grande dinamismo, capacidade de articulação e resistência, tendo como objetivo central o desenvolvimento nacional. Eles têm altos volumes de reservas internacionais em dólar e, ao mesmo tempo têm procurado insistentemente formas alternativas de comércio em que colocam o dólar de lado. Particularmente a China tem assumido acordos com dezenas de países com esta configuração[ii]. Há também iniciativas visando à criação de fundos e bancos de fomento ao desenvolvimento entre eles.
Estreitar a relação entre os países em desenvolvimento é uma questão de sobrevivência nacional para cada um deles. Só se pode efetivamente alcançar o desenvolvimento com a defesa das economias e moedas nacionais, a exemplo do que fizeram os representantes brasileiros em Sydney.
(primeira parte)
[i] O G-20 reúne além do tradicional G-7 – EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá – os assim chamados emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics), a Arábia Saudita, Turquia, Indonésia, Coréia do Sul, Austrália, Argentina e México. Além destes 19 países participam também representantes da União Europeia.
[ii] Para aprofundar conhecimentos nesta matéria sugiro a leitura do rico artigo On the “bombshell” dropped by China on 20 November 2013, de Valentin Katasonov, 29/11/2013.
*Dilermando Toni é economista e membro do Comitê Central do PCdoB.
Fonte: Blog do Renato Rabelo