Ocidente assume parceria com fascistas para cercar Putin
"Na Ucrânia, fascistas, oligarcas e a expansão ocidental estão no coração da crise. O que nos dizem sobre os protestos em Kiev tem pouca relação com a realidade". Por Seumas Milne, no diário britânico Guardian, em 29 de janeiro de 2014.
Publicado 21/02/2014 14:52
Já estivemos aqui antes. Nos últimos meses os protestos de rua na Ucrânia foram descritos na mídia ocidental de acordo com um script bem ensaiado. Manifestantes pró-democracia batalham contra um governo autoritário. Os manifestantes exigem o direito de participar da União Europeia. Mas o presidente russo Vladimir Putin vetou a oportunidade deles terem liberdade e prosperidade.
É uma história que ouvimos de uma forma ou de outra, de novo e de novo — por exemplo na revolução Laranja da Ucrânia, uma década atrás. Mas essa história tem uma relação muito tênue com a realidade. A integração à União Europeia nunca foi — e nunca será — oferecida à Ucrânia.
Como no Egito no ano passado, o presidente que os manifestantes querem derrubar foi eleito em uma eleição julgada justa por observadores internacionais. E muitos dos que estão nas ruas não gostam nada da democracia.
Você nunca saberia pela maioria das reportagens que nacionalistas de extrema-direita e fascistas estão no coração dos protestos e dos ataques aos prédios públicos da Ucrânia. Um dos três principais partidos de oposição liderando a campanha é o partido direitista antissemita Svoboda, cujo líder Oleh Tyahnybok alega que uma “máfia judaica de Moscou” controla a Ucrânia.
Mas o senador dos Estados Unidos John McCain estava feliz ao dividir um palanque com ele no mês passado em Kiev. O partido, que governa a cidade de Lviv, liderou uma marcha com tochas, de 15 mil pessoas, em memória ao líder fascista ucraniano Stepan Bandera, cujas forças lutaram com os nazistas na Segunda Guerra Mundial e participaram de massacres de judeus.
Assim, na semana em que a libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho foi comemorada no Dia da Memória do Holocausto, apoiadores daqueles que ajudaram a provocar o genocídio são saudados por líderes ocidentais nas ruas da Ucrânia.
Mas o Svoboda agora foi ultrapassado nos protestos por grupos ainda mais extremistas, como o Setor da Direita, que demana uma “revolução nacional” e ameaça com “uma guerra de guerrilha prolongada”.
Não que se preocupem com a União Europeia, que tem pressionado a Ucrânia a assinar um acordo de associação, oferecendo empréstimos em troca de austeridade, como parte de uma campanha liderada pela Alemanha para abrir a Ucrânia para empresas ocidentais. Foi o abandono do presidente Viktor Ianukovitch da opção da UE — depois de um empréstimo de U$ 15 bilhões de Putin — que deu origem aos protestos.
Mas os ucranianos estão profundamente divididos sobre a integração europeia e os protestos — num eixo que separa o leste e o sul do país, onde se fala russo (e onde o Partido Comunista ainda tem apoio significativo) do ocidente tradicionalmente nacionalista da Ucrânia. A indústria do leste é dependente dos mercados russos e seria esmagada pela competição com a União Europeia.
É essa a disputa histórica no coração da Ucrânia que o Ocidente está tentando explorar para reduzir a influencia russa desde os anos 90, inclusive com uma tentativa de incluir a Ucrânia na Otan. Os líderes da revolução Laranja foram encorajados a mandar tropas ucranianas ao Iraque e ao Afeganistão para adoçar o acordo.
A expansão da Otan em direção ao leste foi suspensa pela guerra na Geórgia em 2008 e pela eleição de Ianukovitch na Ucrânia, mais tarde, com uma plataforma de não alinhamento. Mas qualquer dúvida de que a tentativa de atrair a Ucrânia faz parte da estratégia militar do Ocidente foi desfeita hoje pelo secretário-geral da Otan, Anders Fogh Rasmussen, que declarou que o pacto abortado com a Ucrânia seria “um grande incentivo à segurança euro-atlântica”.
O que ajuda a explicar porque políticos como John Kerry e William Hague tem sido tão dedicados a condenar a violência da polícia ucraniana — que deixou muitos mortos — enquanto mantém uma neutralidade estudada sobre a mortalidade de milhares de manifestantes no Egito desde o golpe do ano passado.
Não que Ianukovitch possa ser confundido com algum tipo de progressista. Ele tem apoio de oligarcas bilionários que assumiram o controle de recursos e de empresas privatizadas depois do colapso da União Soviética — oligarcas que financiam políticos da oposição e manifestantes ao mesmo tempo.
Na verdade, uma das interpretações para os problemas do presidente ucraniano é que os oligarcas estabelecidos estão fartos dos favores concedidos pelo presidente a um novo grupo, conhecido como “a família”.
É a raiva contra a corrupção e a desigualdade grotescas, além da pobreza e da estagnação da Ucrânia, que levaram muitos cidadãos comuns a se juntarem aos protestos — assim como a ultrajante brutalidade policial. Como a Rússia, a Ucrânia foi empobrecida pela terapia de choque do neoliberalismo e pela privatização em massa nos anos pós-soviéticos. Mais de metade da renda nacional foi perdida em apenas cinco anos e a Ucrânia ainda não se recuperou completamente.
Mas nem os líderes da oposição, nem os dos manifestantes oferecem qualquer alternativa genuína, nem desafiam o controle da oligarquia sobre a Ucrânia. Ianukovitch fez grandes concessões aos manifestantes: demitiu o primeiro ministro, convidou líderes da oposição a se juntar ao governo e abandonou leis contra os protestos que haviam sido aprovadas no início do mês.
Se isso vai acalmar ou alimentar os protestos ficará claro em breve. Mas o risco de espalhar o conflito — figuras políticas importantes falam em guerra civil — é sério. Há outros passos que poderiam ser tomados para desarmar a crise: a criação de um amplo governo de coalizão, um referendo sobre relações com a União Europeia, a mudança de um sistema presidencial para um sistema parlamentar e maior autonomia regional.
A divisão da Ucrânia não seria uma questão puramente ucraniana. Além do desafio emergente da China à dominação dos Estados Unidos no leste da Ásia, a questão ucraniana tem o potencial de atrair poderes externos para um confronto estratégico. Só os ucranianos podem superar sua própria crise. A interferência externa é ao mesmo tempo provocadora e perigosa.
Fonte: Vi o Mundo