Os incríveis tesouros saqueados pelos nazistas
O agente secreto britânico James Bond (com seu mais famoso e melhor intérprete, Sean Connery) se aproxima do arquivilão Auric Goldfinger (Gert Fröbe). Provoca-o para uma partida de golfe, em que está em jogo, na aposta, uma barra de ouro nazista (com a cruz gamada e tudo) retirada do fundo do lago Toplitz. A partida segue, Bond ganha depois de quase perder, prenúncio do que acontecerá no fim do filme 007 Contra Goldfinger, dirigido por Guy Hamilton em 1964.
Por Flávio Aguiar, da Rede Brasil Atual
Publicado 25/01/2014 12:50
O lago existe de fato, e fica nos Alpes austríacos, perto da cidade de Salzburg – berço do compositor Wolfgang Amadeus Mozart. E é verdade que os nazistas o usaram como base para vários experimentos, incluindo torpedos e futuras minas submarinas. E é verdade também que ao fim da guerra ali foram jogadas milhões de notas falsas – libras britânicas – produzidas por 142 falsários de elite, selecionados pelos nazistas em campos de concentração, inclusive o de Auschwitz, e levados para o campo de Sachsenhausen.
A produção dessas notas fazia parte da Operação Bernhard, que leva o nome de seu idealizador, o major da SS Bernhard Krüger. O plano inicial era o de inundar a Grã-Bretanha com as notas falsas – consideradas até hoje como perfeitíssimas –, provocar uma inflação incontrolável e desestabilizar a economia. O plano jamais foi posto em prática por várias razões técnicas, entre as quais a dificuldade de fazer as notas chegarem à Grã-Bretanha, pois a Luftwaffe alemã jamais teve a supremacia sobre a Royal Air Force, nem a Marinha nazista conseguiu a hegemonia no mar. O dinheiro de araque tivera, porém, vários usos: de pagar suprimentos e matérias-primas comprados no “mercado paralelo” continental, até o de custear salários de agentes e espiões no estrangeiro.
Depois da guerra, mergulhadores ousados conseguiram retirar muitas dessas notas do fundo do lago. E elas chegaram a ter uso no mercado, a tal ponto que a Grã-Bretanha, em 1957, decidiu substituir todas as notas de mais de 5 libras em circulação por novas emissões do seu Tesouro.
Essa é apenas uma das inumeráveis histórias – misturando verdade e ficção – sobre os enigmáticos, misteriosos, sinistros e em alguns casos fantasiosos, em todo caso fantásticos, tesouros nazistas. A principal fonte de alimentação das histórias – reais muitas, fantasiosas outras, até hoje não se sabe exatamente em que percentual, embora se saiba com certeza que existem as dos dois tipos – foi o verdadeiro saque, em ouro e moeda, a que os nazistas submeteram os territórios e os povos ocupados.
Pé-de-meia
O saque começou antes da guerra nos países do leste da Europa, como Polônia, República Tcheca (que entre 1918 e 1993 foi Tchecoslováquia) e também a Áustria, e depois da guerra em países do oeste, como a Holanda e a Bélgica. Há uma estimativa de que tais aportes trouxeram às finanças nazistas, na época, mais de US$ 600 milhões apenas em ouro. Além disso, houve o saque mais sinistro ainda praticado nos campos de extermínio, sobretudo dos prisioneiros judeus, que compreendiam desde objetos como armações de óculos, joias, cigarreiras, até os dentes de ouro das vítimas assassinadas.
Parte desse ouro foi parar em bancos suíços, de onde trafegava também para Portugal, a fim de pagar suprimentos de tungstênio, matéria-prima para o revestimento das bombas fabricadas. Diante de boatos de que os nazistas estavam fabricando dinheiro falso, a partir de certo ponto o governo português passou a exigir pagamento em ouro. A esse propósito, também no campo da ficção, há o excelente romance de Robert Wilson "A Small Death in Lisbon", de 1999, que junta tramas que vão desde a Segunda Guerra até o período posterior à Revolução dos Cravos em Portugal.
No caminho desse ouro, havia também, estima-se, toda a sorte de desvios, provocados por nazistas que, à medida que compreendiam que a derrota na guerra se aproximava, cuidavam de fazer seu pé-de-meia, até sob a forma de propinas para autoridades envolvidas nesse “war business”. Houve também acusações de que parte do ouro tenha ido parar nos cofres do Banco do Vaticano com a ajuda da Ordem dos Franciscanos, sob a forma de barras ou de francos suíços. Hoje, a principal fonte de tais suspeitas é um relatório do agente do Tesouro norte-americano Emerson Bigelow, tornado público em 1997. As acusações foram sempre negadas e – é bom que se ressalte – jamais comprovadas. Há estimativas de que a parte desse ouro que pegou os vários “desvios” possíveis poderia chegar ao equivalente a US$ 300 milhões – e uma parcela poderia, inclusive, ter acompanhado nazistas que fugiram para a América do Sul. É verdade que a falta de informações precisas a respeito aumenta o furor imaginativo.
Mas havia outra forma – igualmente rica em valores – assumida pelo “saque nazista”. Trata-se das obras de arte que eles tomaram por onde passavam, subtraindo acervos de museus, confiscando de famílias judias ou de outros perseguidos, ou simplesmente comprando-as a preço vil de pessoas que desejavam escapar à perseguição. Uma das formas mais conspícuas desse “confisco” foi a promovida pelo desejo de eliminar o que os nazistas consideravam como “arte degenerada” – notadamente a de muitos artistas de vanguarda do começo do século 20. Chegaram a promover uma famosa exposição dessa “arte inferior” em Munique, em 1937, com 650 peças de variada procedência.
Quase todos os dirigentes nazistas gostavam de ser reconhecidos como amantes das artes e da cultura. Mas a começar pelo Führer e seus ministros Joseph Goebbels (Propaganda) e Hermann Göring (comandante da Luftwaffe e ministro sem pasta) esse gosto era, em primeiro lugar, seletivo. Os “degenerados” – por seu estilo, origem étnica ou posição política – não tinham vez na seleção, a não ser como objeto de curiosidade – assim como num museu se pode ter, por exemplo, exemplares de cascavéis ou animais daninhos.
Museu do Fürher
Hitler desejou criar um “Führersmuseum” em Linz, na Áustria, perto de sua cidade natal, Braunau am Inn. Uma das principais seções do museu seria dedicada à “arte decadente”. Com a eclosão da Segunda Guerra, a construção do museu foi suspensa. E com a derrota nazista, postergada para sempre. Entretanto, a projetada construção desse museu deu margem a um dos casos mais curiosos da construção do “acervo nazista” – fosse da arte “degenerada”, fosse da simplesmente “saqueada” ou “confiscada”. Trata-se do caso Gurlitt, trazido à luz neste final de 2013.
O caso veio a público na semana em que se lembrava o 75º aniversário da Krystallnacht, o pogrom contra sinagogas e lojas judaicas de 1938, em que perderam a vida 91 judeus e mais de 30 mil foram aprisionados. A revista Focus foi a primeira a revelar que algum tempo atrás as autoridades policiais haviam descoberto cerca de 1.500 pinturas guardadas secretamente num apartamento na cidade, na casa de um certo Cornelius Gurlitt, um cidadão que vivia completamente isolado, como um ermitão, sem família nem amigos.
Cornelius Gurlitt, de 81 anos, carregava somas em dinheiro que não batiam com sua declaração
de imposto de renda (Foto: Grosby Group)
Ao inspecionar seu apartamento, já em 2012, as autoridades descobriram nada menos que 1.280 obras de arte, entre pinturas a óleo, aquarelas, desenhos e litografias, cuidadosamente armazenadas e em bom estado, por trás de montes de embalagens tetra de suco e de comida enlatada dos anos 1980. Os autores das obras deixaram policiais e perícia atônitos: Matisse, Picasso, Chagall, Renoir, Dürer, Toulouse-Lautrec, Canaletto, Beckmann, Munsch, entre muitos outros. Acredita-se que Gurlitt teria vendido alguns dos quadros para se manter, já que não tinha outra fonte de renda.
A origem do acervo está na atividade de seu pai, Hildebrand Gurlitt. Usando seus conhecimentos no mundo das artes, tornou-se um dos encarregados de amealhar peças de arte para os nazistas, fossem elas “saudáveis”, para as coleções, ou “degeneradas”, para o museu. Ele o fez com dedicado empenho. Levou o acervo para Dresden, no leste da Alemanha, mas de lá o retirou, conforme a guerra se aproximou do fim, e declarou que grande parte fora destruída no bombardeio que arrasou o centro da cidade, em 15 de fevereiro de 1945.
Hildebrand morreu em 1956, em acidente de carro. O acervo passou para sua mulher, até sua morte, em 1967, quando ficou para seu filho, Cornelius, que o guardou ciosamente. Agora, depois da descoberta, discute-se o que fazer – tanto com o acervo como com o próprio Cornelius. Das 1.280 obras (que serão objeto de estudo por parte de uma comissão de peritos), estima-se que 590 faziam parte do “saque” nazista. Existe uma política de devolução, adotada internacionalmente, a herdeiros ou a instituições saqueadas. Outras 390 deveriam ter sido vendidas no exterior, para capitalização do regime, e não o foram. E 310 seriam da coleção comprovada do próprio Hildebrand. Esse processo vai, certamente, durar anos, e será objeto de ações judiciais.
Mais urgente é decidir o que fazer com Cornelius Gurlitt, que completou 81 anos em dezembro. Ele tinha 12 anos quando a guerra terminou, em maio de 1945; e 23 quando seu pai morreu. Até o momento, não pode ser acusado de crime, a não ser, talvez, de sonegação, o que a essa altura é um crime menor diante do quadro histórico. E ele quer pelo menos os “seus quadros”, os de que ele seja legitimamente herdeiro, de volta. O caso – que pode acabar virando livro – dá ideia da complexidade das histórias em torno dos “tesouros nazistas”.