Bertolucci, mestre do máximo e do mínimo
Atualmente leva tempo, ao contrário do que ocorria no passado, mas quando o bom cinema italiano se faz presente, e em especial quando o filme vem pelas mãos de um dos mestres sobreviventes ao naufrágio cultural e político da nave de Berlusconi, só pode ser bem-vindo.
Por Léa Maria Aarão Reis, na Carta Maior
Publicado 16/01/2014 16:21
É o caso de mais esta pérola de Bernardo Bertolucci, Eu e Você (Io e Te) um comovente retorno ao trabalho do cineasta que há cerca de dez anos não filmava, preso a uma cadeira de rodas (na qual permanece) por causa de uma cirurgia mal sucedida na coluna vertebral. “Eu era um travelling ambulante”, ele diz, agora já podendo fazer humor com sua nova condição física e refeito de um compreensível período de muito sofrimento e grande depressão.
Aos 73 anos, mais uma vez Bertolucci escolhe o minimalismo, volta-se para dentro, para o interior do ser (no caso, o porão do apartamento de uma família burguesa de Roma) e, introspectivo como seu personagem Lorenzo, aprecia a juventude dos meninos e das meninas com a generosidade e o afeto de quem sabe que deles depende os caminhos que o futuro vai nos destinar.
O grande mestre e poeta do cinema, exímio no manejo dos grandes espaços – como nos seus inesquecíveis filmes O conformista, 1900, O céu que nos protege (baseado noinquietante romance de Paul Bowles), o monumental O pequeno Buda e o excepcional O último imperador (clássico restaurado ano passado também para o formato 3-D) – está em plena forma.
Mas ele continua sendo também o maestro do cinema intimista e dos duelos e duetos dramatúrgicos transcorridos nos exíguos espaços de apartamentos/arenas, ações confinadas em O último tango, Os sonhadores, no belo e requintado – e também meio esquecido – Assédio sexual e, em trabalhos mais extrovertidos. O corajoso La Luna onde mostra como nasce o incesto entre uma bonita mãe narcísica, estrela cantora de ópera e o filho adolescente apaixonado por ela, e o delicado Beleza roubada, uma verdadeira “pastoral toscana” na feliz expressão do crítico paulista Luiz Zanin Oricchio.
Eu e Você é baseado em livro de Niccoló Ammaniti, premio Stregga de 2007 (publicado no Brasil pela Bertrand Brasil), e conta com outro escritor, Umberto Contarello, como um dos co-roteiristas – ele é o mesmo roteirista de A grande beleza).
O filme é mais que a história entre um adolescente de 14 anos, Lorenzo, assustado com a inevitável e iminente entrada no mundo (extrovertido) adulto e a meia-irmã de 20, Olivia, filha rejeitada e enjeitada, viciada em heroína, mas procurando recompor-se para iniciar uma (improvável?) nova vida.
Ele, não querendo se machucar – participar. Ela, um vulcão de vitalidade, super exposta e embora muito jovem, já “cheia de hematomas” como diz, rindo. Os dois se encontram por acaso – são ótimos os atores até aqui desconhecidos, jovens e belos, Jacopo Olmo Antinori e Tea Falco – convivem e se descobrem na convivência forçada no porão do apartamento dos pais onde Lorenzo se esconde em busca de um pouco de paz, longe da mãe chata. E onde Olivia, não tendo abrigo, procura refugio e atravessa uma dolorosa síndrome de abstinência
O que Olívia oferece a Lorenzo: “Você tem que começar a viver. Se levar umas pancadas não faz mal”, diz ao caçula. E completa com uma observação que Bertolucci extraiu da própria Tea no primeiro dia de teste com ela, ao perguntar à jovem atriz em que pensava naquele instante e ela respondeu: ”Que seria ótimo não ter opinião sobre nada para não termos que discutir”. No filme Olívia acrescenta, dirigindo-se ao meio-irmão: ”Ser indiferente não é uma boa coisa”.
Na tocante sequência final, Lorenzo mostra o que ganhou da irmã: “Não tenha medo,” ele diz a Olívia quando saem do porão para a rua ao nascer do dia, deixando para trás a segurança do pequeno espaço para enfrentar o grande risco do exterior. Por um instante ela sente medo. “Eu não vou conseguir”, a garota hesita. E Lorenzo: ”Não tenha medo. Eu estou aqui”.
Nascido em Parma, norte da Itália, filho de um poeta, Bertolucci sempre manteve uma estreita ligação com o Brasil desde os anos 60 através de sólida amizade com Paulo Cesar Sarraceni. Embora Paulo Cesar fizesse um cinema distante dos cânones daquele do seu grande amigo Bernardo, os dois se encontravam, não apenas no ideário ideológico, mas também no amor comum pelo cinema americano dos anos 50, pelos grandes musicais, dos tempos da formação, adolescência e juventude de ambos.
Enquanto no Rio de Janeiro Sarra se divertia nas festas da Ipanema do cinema novo imitando com perfeição Fred Astaire em Picolino e dando shows memoráveis dançando na casa dos amigos, na Itália, Bernardo, aos 12 anos, se olhava no espelho e se imaginava John Wayne. Anos mais tarde dançava nas calçadas, ao lado de um hidrante imaginário como fazia Gene Kelly em Cantando na chuva. (Acabou sendo o excelente roteirista de Era uma vez no oeste, monumental filme de Sergio Leone.)
Do cinema americano da época (hoje ele se diz desapontado com Hollywood e com o baixo nível do cinema produzido lá) vem a economia dos diálogos nos seus filmes, nunca problemáticos, nem verborrágicos, sempre enxutos, objetivos. A narrativa é imagem a imagem, plano a plano, cada um deles uma consequência do outro. Cinema puro sangue.
E há também um ar de nostalgia estética em muitos desses filmes de Bertolucci realizados no seu país onde não filmava há 30 anos. O recall que vem-e-vai nas fachadas de edifícios, na arquitetura, figurinos e cenários, tudo de rigoroso bom gosto, visitando o belo art decôitaliano – como ocorre em Eu e você.
O Bertolucci político não poderia deixar passar em branco seu recado com Io e te. Diz que seu filme é sobre dois jovens que aprendem a ser irmãos. “Não deixa de ser o meu comentário sobre a Itália: precisamos voltar a ser solidários”. Certamente: em meio às ruínas deixadas por Silvio.
Solidariedade, participação e engajamento dos meninos e meninas italianos e dos meninos e meninas de toda parte. Precisa-se de sua energia; dos moços. Bertolucci entende disto quando diz: “Eu continuo, tendo virado os 70 anos de idade, ainda intrigado com os personagens jovens e como que desafiado a capturar a sua vitalidade e a sua curiosidade.”
Em Eu e você como em todo o cinema de Bertolucci a música é um comentário fundamental – herança das comédias musicais americanas que o encantavam na juventude. No filme de agora a trilha musical é mais uma vez de primeira: The Cure, Red Hot Chili Peppers, Arcade Fire e, em especial, David Bowie cantando a belíssima versão italiana de Mogol, de Space Oddity, transformada em canção romântica e cheia de significados.
”Garoto solitário, garota solitária, por que tanta dor? Garoto solitário, garota solitária para onde você vai?”