Andressa Pellanda: Cheiro de rua no Fórum de Direitos Humanos
Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, explica que os direitos humanos podem ser classificados em direitos civis, políticos e sociais. “Os primeiros são aqueles que dizem respeito à personalidade do indivíduo (liberdade pessoal, de pensamento, religião, de reunião e liberdade econômica), através da qual é garantida a ele uma esfera de arbítrio e de liceidade, desde que seu comportamento não viole o direito dos outros.
Por Andressa Pellanda*, no blog Outras Palavras
Publicado 18/12/2013 16:07
Os direitos civis obrigam o Estado a uma atitude de impedimento, a uma abstenção. Os direitos políticos (liberdade de associação nos partidos, direitos eleitorais) estão ligados à formação do Estado democrático representativo e implicam uma liberdade ativa, uma participação dos cidadãos na determinação dos objetivos políticos do Estado. Os direitos sociais (direito ao trabalho, à assistência, ao estudo, à tutela da saúde, liberdade da miséria e do medo), maturados pelas novas exigências da sociedade industrial, implicam, por seu lado, um comportamento ativo por parte do Estado ao garantir aos cidadãos uma situação de certeza”.
A luta pelos direitos humanos remonta há muitos séculos atrás. Grandes declarações de direitos humanos foram o cume de grandes revoluções – como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, após a Revolução Francesa, em 1789 – ou de grandes guerras – como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, logo no final da Segunda Guerra Mundial, em 1948. O fruto das primeiras, para fazerem valer o direito reivindicado; o das segundas, para impedir que sejam novamente cometidas atrocidades e violações desses direitos.
O Fórum Mundial de Direitos Humanos, que se encerrou na última sexta[13 de dezembro], em Brasília, mostrou que vivemos, hoje, ambas as situações. O mundo respira ainda, 61 anos depois da Declaração dos Direitos Humanos, guerras, estados de exceção, graves violações. Ao mesmo tempo, na era da comunicação, da internet e, principalmente, das redes, os povos olham para os sistemas políticos e percebem a necessidade iminente de mudança, de maior participação. E o Brasil não foge à lógica.
A questão indígena no país é um dos casos de grave violações de direitos sociais e civis, que não tem recebido o devido olhar do governo brasileiro. No segundo dia de evento, durante a conferência que tratava dos direitos humanos como bandeira de luta dos povos, com a presença da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, um grupo de indígenas da etnia Tuxa, da Bahia, juntamente com outros índios, da Aldeia Maracanã, fizeram um protesto, carregando cartazes até o palco principal. Neles, podíamos ver escritos: “Não à PEC 215” (PEC que transfere para o Congresso a prerrogativa de demarcar as terras indígenas e facilita a revisão das terras já demarcadas, em tramitação no Congresso Nacional); “500 anos de genocídio”; “A Aldeia Maracanã resiste”; entre outros.
Um dos indígenas do grupo levantava energicamente os braços, enquanto gritava pelo seu povo: “é genocídio! Meu povo está morrendo! Tem gente morrendo todos os dias! Todos os dias! Morrendo!”. A palavra “morrendo” ecoava nos ouvidos de cada presente naquele auditório cheio. A plateia se levantou, um silêncio atingiu o ambiente e, além dos clamores do índio, só se ouviam os sons dos cliques das dezenas de câmeras profissionais apontadas para eles. Seguranças da organização do evento foram fortemente vaiados quando se aproximaram para retira-los do palco.
No dia seguinte, em outra sala, estavam todos esperando para começar uma atividade intitulada “o papel da Polícia Militar na defesa dos direitos humanos”, proposta pelo Comando Geral da PM do Distrito Federal. Começou com o hino nacional e, em seguida, praticamente não houve atividade. O que se ouvia no lugar eram palavras de ordem, com força, “não a-ca-bou, vai acabar, eu quero o fim da polícia militar!”. Era quase impossível entrar na sala, lotada. Ao passar no corredor, muitos estavam exaltados. “Como eles acham que defendem os direitos humanos?! A polícia mata todo dia! Todo dia!”. O burburinho da atividade se estendeu pelos espaços do Fórum chegando a, minutos depois, levantar uma manifestação pelos corredores pela desmilitarização da polícia militar: “Acabou a alegria, a polícia mata pobre todo dia!”, gritavam. A semelhança com os clamores indígenas talvez não seja mera coincidência. Ambos os protestos mostram não só que queremos ter nossos direitos mais básicos garantidos, mas que queremos ser ouvidos.
(Foto: Ministra Maria do Rosário, no encerramento: “não há caminho sem diálogo”)
De fato, foi possível perceber a luta forte pelos direitos sociais e civis no Fórum Mundial. Como já abordado, indígenas clamavam pelos direitos cultural e religioso, mas também pelo direito à vida. Muitas outras atividades também entram nesse escopo, como debates pró direito de grupos LGBTT, da mulher, pela educação, saúde etc. Ao mesmo tempo, porém, em todos os dias de Fórum, inúmeras atividades se propuseram a tratar dos direitos políticos e, nesse caso, a palavra “participação” foi a bola da vez. Em entrevista coletiva pouco antes da cerimônia de encerramento do Fórum, inclusive, a ministra Maria do Rosário, afirmou que o evento “marca um caminho que é irrenunciável para a democracia, que é o caminho do diálogo”.
“O direito à participação não se efetiva somente com a oferta de participação, se faz necessário o reconhecimento social do grupo que almeja participação”, defendeu Bruno Vanhoni, Secretário Nacional da Juventude, em uma atividade do Unicef sobre participação cidadã de adolescentes e jovens. A reflexão aqui presente, mas também em diversas outras atividades sobre o tema, foi a de que a participação é um direito político e a cidadania é o fruto, o conteúdo desse direito. Foram uníssonas as mais diversas vozes na defesa de novos canais capazes de captar essas tão reclamadas novas formas de participação.
O Fórum Mundial de Direitos Humanos, assim, foi mais um símbolo dos mecanismos formais de reconhecimento dos direitos humanos dos povos pelo globo. Ele foi marcado também pela presença, cada vez mais contundente e vigorosa, do clamor pela efetivação desses direitos nas mais variadas esferas sociais, civis e políticas. O Fórum, que reuniu cerca de 9 mil pessoas de diversas partes do mundo, mostrou que o mundo ainda tem fome, ainda tem sede, e ainda tem medo. Não só de alimento, mas de igualdade; não só de água, mas de direitos; não só da morte, mas da opressão. O índio pede voz. O pobre pede escolha. E a sociedade pede participação.
*Jornalista, correspondente do blog Outras Palavras