As políticas públicas agropecuárias no Brasil
No Brasil, a agricultura sempre esteve ligada a alguma forma de financiamento. Com o fim do modelo de financiamento do Ciclo do Café, em 1930, foi iniciada a constituição de uma estrutura pública com esta finalidade, com a criação de programas de crédito rural, a destinação de recursos públicos e a participação do sistema financeiro.
Por Dayvid Souza Santos, Movimento de Luta Pela Terra – MLT
Publicado 04/11/2013 10:10
Assim sendo, os marcos da edificação da estrutura institucional do crédito rural brasileiro foram, respectivamente, a criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI), em 1937, a Comissão de Financiamento da Produção (CFP), em 1943, a reforma da CFP, em 1952, e, finalmente, em 1965, a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR). Em se tratando das políticas públicas agropecuárias brasileiras, no século XX, elas podem ser agrupadas em quatro fases principais:
A primeira fase engloba o período de 1965/1976, podendo ser caracterizada pelo crédito público, subsidiado, uma plataforma para concentração de riqueza nas mãos dos agricultores capitalistas; é o período em que a rede bancária passa a participar do crédito rural, beneficiada pela crescente oferta de recursos no mercado, alocada pelo governo federal, cujos principais privilegiados foram os maiores produtores ou os “mais aptos a receberem tecnologia moderna (RÜCKERTT, 2003, p. 113).
Segundo RÜCKERTT (2003), somente a partir de 1977 é que os pequenos produtores passaram a ter acesso às linhas de crédito, no entanto, o volume de recursos acessado era muito pequeno devido às exigências bancárias e em função do seu limitado patrimônio, excluindo vários setores da agricultura, inclusive a familiar, tendo vários efeitos negativos, pois contribuiu para o processo de elevação dos preços da terra e desestimulou a absorção de mão-de-obra.
A segunda fase – 1976/1980 – foi marcada pela diminuição da oferta do crédito e a inclusão dos ramos da agricultura até então excluídos, como a agricultura familiar. Pode ser caracterizada pelo crédito dirigido preferencialmente para o custeio do que para o investimento. A necessidade de fazer investimentos em máquinas, implementos, benfeitorias, infra-estrutura de produção, já haviam sido atendidos no primeiro período. Surgia a necessidade crescente de investir no processo produtivo mediante a adoção dos novos pacotes tecnológicos que surgiam com a revolução verde, significando gastos com insumos agrícolas.
A partir de 1978, a economia brasileira passou a enfrentar um período de dificuldades, retraindo o volume de recursos disponíveis para a agricultura, causado por uma inflação disparada, pela crise do petróleo (1979), fazendo com que o Brasil decretasse a moratória da sua dívida externa. Esses fatos agravaram a crise econômica brasileira e se estendeu por toda a década de 1980-1990. Em 1986, o encerramento da Conta Movimento do Banco do Brasil marcou definitivamente o fim deste período do crédito agrícola, refletindo sobremaneira no crédito agrícola, onde houve “um corte generalizado nos gastos governamentais; cortes nos subsídios; limitação quantitativa de expansão do crédito bancário e da liberação da taxa de juros” (RÜCKERT, 2003, p. 118).
A terceira fase teve início a partir de 1980, caracterizando-se pela eliminação progressiva do subsídio governamental e a retirada do Estado do financiamento agrícola. RÜCKERT (2003) caracteriza essa fase do crédito agrícola como “o resultado das estratégias adotadas pelo governo, para administrar a crise: arrocho de crédito, contenção do fundo público e manutenção dum patamar mínimo de modernização da produção agropecuária”. Como alternativa a essa redução no volume de recursos e a saída do Estado do financiamento agrícola, os interesses organizados em torno dos encadeamentos produtivos da agropecuária lograram constituir e consolidar linhas paralelas e exclusivas de apoio às suas atividades (BELIK e PAULILLO, 2001, p. 96).
Como conseqüência, houve uma migração do crédito público para o crédito privado, os planos econômicos implantados no país nesse período, como o Plano Cruzado I, trouxe consigo uma elevada inflação, refletindo negativamente na agricultura por meio da elevação dos custos de produção e queda de preços pagos ao produtor, houve maior endividamento e aumento das falências que se tornaram problemas sérios que afetaram principalmente os ramos menos dinâmicos.
Nesse sentido, contraditoriamente, alguns setores acumularam, principalmente as agroindústrias. Os grupos empresariais, bancários e produtores capitalizados continuaram concentrando a terra e o capital, ao mesmo tempo em que muitas pequenas propriedades foram aglutinadas e anexadas a outras maiores.
Sobre essa fase, BELILK e PAULILLO (2001, p. 98) dizem que:
As estatísticas indicam que mesmo com a redução e posterior retirada do Estado no fomento do crédito rural, houve um aumento da produção agropecuária brasileira. Isso atesta que o espaço deixado pelo Estado foi ocupado por agentes privados integrados com a indústria.
A quarta fase tem início em meados da década de 1990, podendo-se afirmar que é uma seqüência do período anterior, porém, com a criação de uma linha de financiamentos específica direcionada à agricultura familiar. A agricultura familiar passou a ser beneficiada com um maior volume de crédito, com uma maior facilidade do acesso ao crédito, com taxas de juros equalizadas pelo governo federal, de acordo com a faixa de renda e extensão dos prazos para pagamento. Outra característica marcante é a consolidação de um sistema de financiamento privado da agricultura brasileira, principalmente nos segmentos mais organizados e estruturados, com formas de governança privada e alavancadas principalmente por grupos de interesse não agrários. (BELIK e PAULILLO, 2001).
Diante do exposto, chega-se à conclusão de que, no Brasil, a história das políticas públicas para a agricultura evidencia a prioridade inicial usufruída pela agricultura comercial. Apesar do enorme volume de recursos destinados ao crédito rural, na maior parte dos vinte anos referidos, os pequenos agricultores tiveram pouco acesso a estes financiamentos. Historicamente, as políticas públicas brasileiras foram direcionadas para a agricultura comercial, a exemplo da Lei de Terras (1850), que consolidou a concentração fundiária; o latifúndio e o Estatuto da Terra (1964) legitimaram a empresa rural; os financiamentos subsidiados, que por décadas foram restritos aos grandes proprietários, permitiram a capitalização desses agricultores; a capitalização da agricultura conduziu à modernização do campo. As suas conseqüências agravaram ainda mais os problemas agrários no Brasil, o êxodo rural, a expulsão da população rural do campo.
Assim sendo, durante várias décadas, a agricultura familiar e todas as demais formas de produção semi-capitalistas tiveram a sua extinção prevista por teóricos e pesquisadores, afirmando que as formas de produção capitalistas avançariam e extinguiriam as demais formas de produção. Isso não ocorreu. Pelo contrário, a agricultura familiar e demais formas de produção semi-capitalistas tiveram uma ampliação, para tanto, tiveram que se adaptar às novas realidades. Isso mostra que, ao mesmo tempo em que se dava preferência à agricultura comercial, direcionando-a para a produção capitalista e para o mercado externo, outras formas de agricultura se desenvolviam em paralelo.
A redefinição do Estado, a democratização, a descentralização administrativa pós-1985, favoreceram os agricultores familiares, a população remanescente de quilombos, a população indígena, a população extrativista, o movimento de Luta Pela Terra, os atingidos por barragens, os agricultores de subsistência, etc., dando a eles espaço para reivindicação de políticas públicas adequadas à sua classe. A origem de formas diversas de produção, incluindo a agricultura familiar, está na transição do sistema de produção feudal para o sistema capitalista de produção. Portanto, são produtos originários do próprio sistema capitalista. “Diríamos até que esse camponês, livre da servidão, produtor de mercadorias, é produto das transformações que a agricultura feudal sofreu na sua transição para o capitalismo”. (OLIVEIRA, 1990, p.67-68). E acrescenta o autor:
De qualquer maneira, a transição do feudalismo ao capitalismo gerou no campo um conjunto muito grande de formas de produção não especificamente capitalistas, o que, particularmente, resultou na aparição de uma volumosa massa de camponeses proprietários individuais que, na lógica geral do desenvolvimento capitalista, deveriam posteriormente desaparecer, em função da chamada superioridade técnica da grande produção capitalista. Entretanto, a sua persistência e crescimento, dos séculos passados até hoje, têm solicitado dos estudiosos uma resposta a essa questão.
Por fim, vale acrescentar que o desenvolvimento paralelo do setor agropecuário está consolidado na história brasileira. Historicamente há a manutenção institucionalizada desse desenvolvimento contraditório e ambíguo. Um exemplo é a necessidade da criação do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), em 1995, numa estrutura paralela ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Ao primeiro ficou a incumbência de desenvolver políticas voltadas para a agricultura familiar e reforma agrária, enquanto que o segundo mantém as suas políticas voltadas para o agronegócio. Embora o tratamento desigual, os interesses diferenciados, no contexto geral, houve avanços importantes após a criação de um Ministério específico para cuidar das demandas da agricultura familiar.