Mario Miranda de Albuquerque: Repressão no Ceará

Por *Mario Miranda de Albuquerque

Uma pesquisa sobre um quadro geral de como se deu a repressão policial-militar no Ceará, durante a ditadura 1964-1985, mereceria tratamento de tese de mestrado ou doutorado e em muito contribuiria para que nossa sociedade se visse com nitidez pelo espelho, premissa básica para as mudanças reais e não meramente cosméticas. Uma pesquisa desse vulto certamente provocaria incômodos. como, aliás, é de praxe nos processos históricos. Basta ver os cacos de vidro em que até hoje se cortam os povos europeus quando enfrentam seu passado nazifascista e de resistência a ele.

Uma pesquisa que servisse a esse papel transformador revelaria que a repressão policial-militar no Ceará, como de resto em todo o País, foi apenas a ponta de um iceberg composto não só da estrutura estatal em todos os níveis, como também de setores sociais significativos, desde o empresarial ao cultural, e em que nem a tão decantada família escapou da baixaria. Porque os momentos de ruptura institucional e de predomínio do arbítrio da envergadura da qual o Brasil viveu de 1964 a 1985, em particular após o AI-5, faz aflorar o que há de mais sublime, mas também de mais abjeto na estrutura social e pessoal de que é formada a sociedade. E se os que foram responsáveis pela abertura da caixa de pandora buscaram depois fechá-la para recolher os demônios mais demoníacos que estavam ganhando resistência à luz do dia, fica claro, hoje, que muitos desses demônios não só não tiveram a madeira cravada no peito – como manda o bom receituário – como proliferaram e, por outras vias, ameaçam o festim geral (que o diga o caso Amarildo e a matança diária em nosso estado).

Como no Brasil todo, no Ceará também pessoas e grupos de pessoas se assenhoraram ilegalmente do poder de estado, e à sombra de uma violenta repressão à consciência jurídica e democrática de parcelas ponderáveis que nunca deixaram de resistir, disso se aproveitaram e ergueram poder pessoal e econômico, em alguns casos apropriando-se desavergonhadamente de empresas e fortunas construídas honestamente por outras famílias. Sem falar nas demissões ilegais geradoras de viúvas de maridos vivos e famílias submetidas ao estigma público, prisões, assassinatos e desaparecimentos de prisioneiros e torturas que até hoje trazem consequências geracionais.

Abordagens como essas suscitam, como se tem visto, críticas gerais por enfrentar o que certa historiografia tacha de padrão geral, mas que na verdade trata-se de um certo padrão classista, que, em um grotesco processo modernizante conservador, vem dominando o poder do país há séculos, expresso no reagir cheio de melindres e salamaleques ao ver expostos seus crimes e vergonhas. Daí partem para acusações de revanchismo a quem assim procede, pelo risco, real mesmo, que isso venha a levar à desconstrução de esmeradas biografias (oficialmente autorizadas) e estátuas públicas (que se derreteriam como manteiga a um simples olhar crítico). Pois, para isso o poder dominante sempre haverá de ter seus intelectuais orgânicos, protegendo falsas reputações, em arquivos públicos, ou simplesmente sumindo com documentos e restringindo acessos (sempre dentro da lei, fique claro). Com as exceções que de praxe confirmam a regra.

E assim o padrão é mantido intacto e atuando sob disfarce, até a próxima irrupção de sua cara mais feia e demoníaca. O remédio? Ele é mais que conhecido: exponha-se o demônio à luz do sol da democracia. E se sobrevivem é porque a luz da democracia tem sido insuficiente, necessitando que seus raios luminosos e dissecadores estendam-se por todos os recantos de nossa estrutura social, e não apenas na estrutura política.

*Mario Miranda de Albuquerque é Presidente da Comissão Especial de Anistia Wanda Sidou, Conselheiro da Comissão Nacional de Anistia/Ministério da Justiça

Fonte: O Povo


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