Jandira Feghali: "E o artista, o infinito"
A História está nos livros e na oralidade. Ela flutua pela poesia, na música popular, passando também pelo som ritmado dos contadores de estórias em rincões do Brasil. É do nosso povo. O conhecimento produzido sobre algo ou alguém é a forma de relatar nossa existência pelo cenário político, econômico e social. É a interpretação de nossos tempos.
Por Jandira Feghali*
Publicado 23/10/2013 11:25
Informações dependem de fatores importantes de pesquisa e apuração; é como recolher pedaços de uma flor espalhados num imenso jardim. O escritor precisa ser, antes de tudo, um bom jardineiro. Deveria ser assim na construção de uma biografia, gerando uma flor completa com todas as suas pétalas.
Remontar trajetórias históricas é uma possibilidade que ilustra perfeitamente o espírito da nossa Constituição. A liberdade de expressão, em plenos 25 anos de nossa Carta Magna, é um direito máximo de todos os brasileiros. Direito esse conquistado à base de muita luta de milhares de militantes contrários à ditadura incluindo nossos artistas todos fundamentais em suas formas de reagir à opressão.
Chamo a atenção para o truculento debate estabelecido no Brasil sobre biografias não autorizadas, onde setores da grande mídia e conservadores impõem a desqualificação e agressão pessoal àqueles que, com base na própria liberdade de expressão, querem estabelecer o diálogo sobre um tema tão complexo. Não é paradoxal que determinados veículos de comunicação rotulem como “censores” aqueles que expressam suas dúvidas ou opiniões, traduzidas, momentaneamente, em visão contrária?
O parlamento não desempenhou seu papel da melhor forma ao aprovar o Código Civil de 2002 sem maior discussão sobre o intrincado conflito potencial que separa liberdade de expressão, de um lado, e, de outro, os direitos à privacidade, à honra e à imagem. Ao contrário da Constituição Cidadã, que emprestou a mesma estatura à todos estes direitos, o Código optou por uma redação atrasada – aqui, lembre-se que o Código Civil dormia nos corredores do Congresso desde o início da década de 70 e foi aprovado às carreiras em 2002.
O arremedo de solução trazido por um Código oriundo, como vimos, de tempos ditatoriais – condicionar a exposição da imagem à aprovação da pessoa – não atende à necessidade de um povo contar e conhecer sua História. Pior, deu origem a uma interpretação equivocada cujo pior efeito colateral foi o frontal ataque às biografias não-autorizadas.
Entre as soluções debatidas para resolver este impasse destacam-se duas. O setor editorial moveu ação na qual pede ao Supremo Tribunal Federal que seja declarada a inconstitucionalidade da interpretação que condiciona às biografias a uma autorização prévia. Já no âmbito do Congresso, há o Projeto de Lei (PL) 393/2011, cujo texto viabiliza a divulgação de informações biográficas de personalidades públicas. Como presidenta da Comissão de Cultura da Câmara, sem prejuízo do que o Supremo venha a decidir, entendo que é primordial corrigirmos o equívoco de 2002, voltando a tramitar com celeridade o projeto mencionado.
A tramitação desse projeto deve ser rápida, mas também ter uma redação precisa. Temos nas mãos a chance histórica de corrigir o desequilíbrio desta matéria. É necessário que o Congresso trabalhe para gerar um substitutivo a este texto, ouvindo todas as partes e deixando claro que a História não pode ser calada, mas tampouco os direitos pessoais de cada um de nós podem ser atropelados por mãos inescrupulosas. Por isto também se faz necessário aprimorar o Código Penal deixando mais clara a tipificação desses crimes e consequente celeridade no julgamento destes que buscam apenas desenvolver seus negócios às custas de inverdades.
Precisamos, por tudo isso, levar a discussão para um estágio de maturidade maior, abandonando os ataques àqueles que, no mínimo, tiveram o mérito de recolocar o debate e avançar para evitar a morte da memória e do conhecimento.
Ser público é ser parte do povo, ao ser a voz ou transmitir amplamente os sentimentos de nossa geração. Que essa importância não passe em branco, despercebida e ganhe a História: "No anfiteatro, sob o céu de estrelas / Um concerto eu imagino / Onde, num relance, o tempo alcance a glória / E o artista, o infinito" (Chico Buarque).
*É deputada federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro e presidenta da Comissão de Cultura da Câmara