Samuel Sérgio Salinas: O capital em transe  

“A burguesia não pode existir sem constantemente revolucionar os instrumentos de produção e , através deste, as relações de produção e todas as relações sociais…A constante revolução da produção, a ruptura ininterrupta de todas as condições sociais, a permanente incerteza e a agitação distinguem a época burguesa de todas as anteriores . Todas as relações rígidas tornam-se antiquadas antes que possam adquirir consistência maior.”

Por Samuel Sérgio Salinas*, especial para o Vermelho

Comentando este trecho de O Manifesto, observa Sweezy que seria fácil argumentar, tomando-se por base essa afirmativa, que o capitalismo é sempre inevitavelmente um “novo capitalismo” em relação ao que ora se esvai.

Nos horizontes do nosso percurso recente, os economistas burgueses nem sequer buscam examinar se há um novo capitalismo em gestação, no ambiente traumatizado do neocapitalismo. Neocapitalismo que ainda não foi abandonado como fórmula e instrumento de renovação, pois persiste nas recomendações de austeridade como meio de preservar e corrigir a devastação do regime nas regiões sagradas do seus melhores momentos. Não se fala em crise, palavra maldita que está em todas as consciências, mas não quer se exprimir, engole em seco.

No momento, as finanças, companheiras próximas das fases recentes do capital, figuram no polo passivo do que se oferece como perversas bolhas de inconsistência, provocadas pelos magos do dinheiro e seus asseclas, no rodopiar das invenções de meios de postergar a morte anunciada. Descobre-se o mal feito, mas nada se acrescenta para obter um novo capitalismo. Só o silencio é grande, tudo mais é fraqueza. . Fiquemos em silencio sobre tais crises, pois tudo se consolidará no melhor dos mundos do capital.

Procuremos um fio de raciocínio histórico que desvenda as fases reais que antecederam esta grande crise equiparada à dos anos 30.

O capitalismo, dizem os seus epígonos (palavra que Marx usa com frequência) do regime é eterno, constitui a substância revelada aos homens da ciência divina e humana para assegurar o progresso e a riqueza das nações.

O percurso histórico das empresas capitalistas, porém, deve satisfazer as exigências de acumular o capital, em substância, de manter a taxa de lucro e a continuidade da extração da mais-valia.

O aumento constante do capital, diz Marx, acrescendo a mais- valia, converte -se em requisito de sua sobrevivência como Modo de Produção , quer de maneira geral, quer do ponto de vista do empresário individual.

Quais os parâmetros desta infindável claudicância. Vale a pena resvalar pelas sucessivas fases que engendraram as crises (e foram muitas, como os demônios), e abriram o leito duro das renovações do capital em sua caça insaciável da mais valia e do lucro. O capitalismo começou menino e ingênuo. Acreditou na Lei de um economista que ainda perturba o raciocínio silencioso dos sábios da nossa mídia, Jean Batista Say, que até Keynes espancou em dura reprimenda. Para Say ,tudo que se produz encontra comprador. Zero a zero. No princípio foi este o verbo, mas logo alguns se adiantarem, criando a concorrência, uma forma de desempatar o jogo.

O mercado, nos termos de zero a zero, é a mais complexa das criações do poder burguês, e o campo de expansão e jogo de forças enormes, nele tudo é oferecido, tudo se compra, inclusive esta energia só existente no homem, a sua força de trabalho, que se concretiza em valor.

A decadência do mundo feudal, nos primórdios da revolução econômica burguesa, não oferecia resistência a um inimigo sutil, desconhecido, que se ambientava nos incipientes burgos, quase inabitáveis, distantes dos campos da nobreza rural. Os enfrentamentos com o Antigo Regime só se tornaram truculentos quando os burgueses, constituídos como classe, afiaram as suas armas, ocuparem de vez as cidades e revolucionaram o território urbano..

O Iluminismo, pensamento filosófico emergente no século XVll, abriria o caminho às filosofias da razão, que se transformaram em instrumento relevante do momento de bonança e luta da burguesia alçada em lanças e livros . O Estado seria racional, e o comércio livre uma condição do progresso. A Escola Clássica de Economia, expoente emanada desse período, assegurava não somente a liberdade individual, mas a propriedade, considerados os princípios fundamentais do progresso e da riqueza das nações, na expressão de Adam Smith. O comércio é a emanação livre de um direito fundamental: com prar e vender, sem empecilhos sociais ou políticos, no mercado de mercadorias e serviços, o principal produto do trabalho humano, a força de trabalho, mercadoria que despontava num crescimento de virtualidades para nova redescoberta do homem e seu meio ambiente.

Não só a superioridade das armas, mas o vigor dos economistas clássicos, nas armas da teoria, desencadeou o fim do que ainda subsistia de vestígios culturais da dominação feudal.

O mercado, porém, não é inócuo, mas um monstro delicado, insaciável. A mercadoria deve ser vendida sempre e sobre ela pesa o risco de desvalorização, como a palavra expressa, perde valor, a característica que a revela como trabalho humano. O mercado em transe está no limite em que a metamorfose se impõe. Na totalidade (Totalität) se delineia a síntese da genial formulação marxiana, o Modo de Produção Capitalista.

Sem mais-valia não há capital, pois este só adquire consistência mediante as condições históricas que asseguram a sua valorização , ou seja, a taxa de mais-valia. Todo capital é histórico, não se esvai no ar rarefeito, supõe tempo e espaço, mais tempo do que espaço. Não se superpõe ao tempo, mas dele é tributário. A cada fase, ou metamorfose de sua descontínua existência, renovam-se as condições sociais e técnicas que mantêm a reprodução. A empresa individual e familiar dos primórdios da industrialização, inglesa primordialmente, aparece no momento ingênuo em que a liberdade de empreender uma atividade in dustrial não exigia se apresentasse pronta para enfrentar a concorrência mais suave. A busca da mais-valia, porém, é o dínamo que impulsiona a valorização permanente do capital, exigência instisfeita com os limites momentâneos da sua extração. O vigor da acumulação, da criatividade, revela-se no homem pelo trabalho, o seu maior bem. O capitalismo não inventou o trabalho, mas dele se assenhoreou, amor e ódio.

Superados os primeiros momentos da atividade industrial, a extração do valor começa a desequilibrar a taxa de lucro das empresas, como observaram os clássicos da economia burguesa, Ricardo, Smith. A tendência é decrescente. A crise pode perturbar o mercado do capital. Crise, palavra proibida na mídia, mas tema que exigiria outro espaço.

A concorrência, irmã próxima do primeiro capitalismo, desperta a necessidade de aumentar a taxa de lucro, obtendo valor acrescido sobre os demais empreendedores, alimentando a taxa de exploração do trabalho, inclusive pela introdução de máquinas. Esta é uma das importantes mudanças de fase do modo de produção capitalista. Aberto o caminho que se expressa no crescimento constante da produtividade, o grau de exploração sobre o trabalho cresce e modifica, substancialmente, a natureza das empresas. As variações da concorrência e as novas características do sistema empresarial serão sempre outro percurso em que a luta de classes entre operários e capitalistas desdobra-se. As disputas no campo da competição e da produtividade do trabalho mediante o emprego de máquinas não impedirão novas empresas de se apresentarem no mercado, n em de criarem maiores medidas de produtividade, amparadas na produção científica, em ritmo vigoroso, da Alemanha de meados do século XlX. Marx afirmou que o desenvolvimento das máquinas ( ainda não se cogitava da automação contemporânea) iria criar as condições materiais para que o sistema de trabalho assalariado fosse substituído por um outro, verdadeiramente social.

Outra fase se delineia com o aparecimento dos monopólios. No final do século XlX os grandes conglomerados , inclusive nos EUA, aumentam a concentração e a acumulação do capital, sempre espicaçados pela robusta concorrência, desta feita de verdadeiros gigantes da produção e distribuição. O capitalismo dos monopólios descrito num dos melhores textos do marxismo, o “Capital Financeiro”, de Hilferding (1910), referenciado por Lenin no seu “Imperialismo, mantém, ainda hoje, a sua relevância. A concentração de capitais em poucas mãos estendeu-se amplamente a ponto de surgirem teorias afirmando que os monopólios dominariam os mercados, superando a a narquia da produção. Trabalho posterior de Hilferding suscitou muitas críticas, ao se referir o economista austríaco à cartelização , em suma, ao cartel único que controlaria integralmente a produção capitalista, evitando os ciclos e as crises.

A formação do imenso poder dos monopólios e oligopólios quebrou, dessa maneira, em muitas áreas da socialdemocracia, especialmente alemã (onde se travaram os grandes debates) , a convicção das crises permanentes do capitalismo e de sua derrocada final. O capitalismo havia obtido a harmonia pelo domínio integral da cadeia produtiva, cortando custos e aumentando a produção, esmagando os concorrentes menores.

O sistema creditício, por sua vez, forjava uma poderosa aliança com estas gigantescas empresas, ampliando a centralização dos capitais. O Estado principia a servir a monopolização, comportamento que engendra a teoria do Estado Monopolista, que suscitou uma grande controvérsia na esquerda europeia.

Nessas condições sociais e históricas desenvolveu-se na Alemanha a Teoria do “Capitalismo Organizado”. Estariam essas hipóteses em época mais recente decisivamente afastadas Nem tanto, J.K. Galbraith, no final do século passado, elaborou o conceito de tecnoestrutura, revolução administrativa e tecnológica que daria ao capitalismo vertente para reorganizar-se. O seu livro, “O Novo Estado Industrial,” teve enorme acolhimento, inclusive no Brasil, na década dos anos 70. Para Galbraith, as novas empresas industriais se reajustaram ao tempo das inovações. Diligentes e audazes administradores substituíram os antigos e agora superadas personalidades , Ford,Carnegie, Rockfeller . Acrescentava-se a ciência da administração aos progressos tecnológicos aprimorando uma tecnoestrutura com imensos poderes de reconstrução da empresa pr ivada. A rigor, um renascimento da superada aspiração do “capitalismo organizado”, desta feita estruturado pela ciência dos novos agentes empresariais, que nem sequer são proprietários expressivos das ações das empresas.

Vimos como o percurso do capital, monopólios incluídos, foi desbaratado pelas crises e permanente ciclos, de 1930 a 2008.A tecnoestrutura de Galbraith não superou os ciclo.,As crises, dentre elas a atual, reduziram o poder das empresas, as taxas de lucro despencaram e os investimentos não ofereceram, nem oferecem renovadas perspectivas. A recuperação é um mito falado e escrito, mas não realizado. Nem as melhores expectativas do grande Keynes lograram evitar a estagnação das ultimas décadas, modorra com breves instantes de estupor financeiro. O horizonte tornou-se sombrio.

O último figurino na concentração de capitais é o aparecimento das empresas multinacionais, ou seja, o capitalismo articulado sobre plataformas territoriais, contínuas ou descontínuas. Um imperialismo sem império, propósito de ganhar mais explorando a mão-de-obra do mundo inteiro. Vale algumas observações sobre esta fase. A financeirização, peculiar das últimas décadas do século passado, e na primeira deste, ofereceu uma ilusão de que as contradições do capitalismo que acarretaram partir dos anos 70 do século passado uma permanente estagnação no centro do mundo capitalista, seriam contidas pela sustentação financeira de consumidores alimentados pela massa de divulgação de uma gama crescente de bens e produtos, acessíveis a todas as camada s da população. Assistimos ao fim dessa fase sem vislumbramos (refiro-me a economistas e sociólogos) sugestões de retomada, a não ser as malogradas tentativas executadas pelas finanças internacionais que irão cobrar o alto preços dos derrames financeiros, envolvidos na salvação dos grandes conglomerados, “muito grandes para falir”. A intervenção do Estado, que não quer ou não tem condições para intervir, como aconteceu no passado, busca estranha medida homeopática. As quedas de crescimento e o desemprego estão desbaratando as derradeiras energias do capital. A guerra, a destruição produtiva, não empolga nenhuma nação, pois as populações parecem resistir, em toda parte, ao apelo das armas. Argumenta-se com o crescimento da China e de outros países, mas o gigante asiático tem enormes problemas e sua industrialização decorre de alta produtividade tecnológica e a umento do exército interno de reserva industrial, um problema de desemprego assustador. A população chinesa e de outras regiões do Sul estão reduzidas a habitantes de sofríveis condições urbanas e são empregadas pelas multinacionais que capturam essa mão-de-obra baratíssima. A arbitragem no valor da força de trabalho não se circunscreve aos países do Sul, mas atingem os trabalhadores do rico Norte. Nos Estados Unidos, os sindicatos acusam essa situação que denominam “the maquiladora effect” apontando o caso mexicano como característico. Os salários dos trabalhadores americanos sofrem os efeitos desta enorme comparação. Imperialismo? Vejamos Harry Magdoff “O Imperialismo não é uma questão de escolha, para uma sociedade capitalista: é o seu modo de vida”.

Como irão se comportar as taxas de lucro, a obtenção de mais-valia e as relações sociais de produção nos próximos anos? Vivemos momentos de grandes acontecimentos. Parece que o americano médio não aceitou a intervenção norte-americana na Síria. O Irã e os americanos dialogam. No momento, a paralização da economia recai sobre os Estados Unidos, envolvidos numa cisão que tem raízes na luta de classes.

*Samuel Sérgio Salinas é procurador de Justiça aposentado, colaborador do Vermelho