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Luiz Carlos Antero: Luta de contrários e centralidade

Entre os temas polêmicos das teses ao 13º Congresso, está a questão da efetiva centralidade tática contemporânea ante os objetivos estratégicos dos comunistas, por vezes tratada em anaeróbicos exercícios de astúcia intelectual.
Por Luiz Carlos Antero*

Debatê-lo, portanto, requer cuidados prévios quanto ao perigo das incompreensões, equívocos ou desqualificação entre os pensamentos divergentes. Pois trata-se de um tema acerca do qual não se deve claudicar diante (1) da importância da participação eleitoral dos comunistas e (2) do apoio aos governos iniciados em 2003 — frutos das iniciativas que tem na Frente Brasil Popular, de 1989, seu marco inaugural.

Esta confluência privilegiada, na unidade teórica, ideológica e política, ordenou-se em torno do avesso à “doença infantil”, do absenteísmo e isolamento nas batalhas do âmbito da democracia burguesa, e se entrelaça às raízes da conquista num amadurecido terreno da luta de contrários, no qual se materializou uma inédita mudança num rito de cinco séculos e os avanços conquistados nos últimos dez anos em nosso país.

Avanços que, entretanto, não obstante a importância de seu protagonismo, ofereceram aos comunistas uma contraditória mas previsível participação governamental, muito aquém do seu valor na histórica construção vitoriosa, afastados naturalmente da central esfera decisória do chamado “núcleo duro” de governo, das alterações de prumo na política macroeconômica, entre as instâncias de elevado nível de inserção. E tão secundarizados, desde então, quanto as lutas populares no contexto da própria política de massas.

Neste prumo, a justa aplicação da linha política ampla e flexível — que, no leito da luta de classes, amplia radicalizando e radicaliza ampliando — requer novas e criativas reflexões à luz do significado da pressão revolucionária de massas e da perspectiva de avanço nos limites postos pela atual correlação de forças. Sem despencar, de modo exacerbado, no culto, além fronteiras do institucionalismo e dos governos, os quais se ajustam à camisa de força do capital em sua forma dominante — enquanto fonte de efetivo exercício do poder. Pois, ao contrário do que determina o pensamento dominante, a ausência da pressão de massas não ajuda o governo, mas certamente, sem o fator subjetivo, isola as esquerdas nos compulsórios e cumulativos anseios e mobilizações populares.

O fosso socialdemocrata

Trata-se aqui de um poder delimitado à instância “de Estado” que requer clássica e dócil participação e se exerce pelas regras e condições atualizadas do capitalismo transnacional financeirizado, ao determinar o lugar do (e de cada) país na pauta da subordinação. E que se estabelece no coração da economia, do seu Banco Central, sob sua taxa de juros, sua permanente ameaça inflacionária, seu câmbio “flutuante”, seu superávit primário, ganhos de sua banca financeira, de sua estabilidade construída sobre a instabilidade transferida à população laboriosa, a sua classe operária.

Para os comunistas, a (tácita ou não) aquiescência a tais limites, perfilados na tal “Carta ao povo brasileiro” e seu arcabouço de grilhões em “contratos” e claustro de gestão, sucede-se numa solene capitulação ao aparato da democrática masmorra, ao simbólico espaço do voto, colhendo êxitos “táticos” de dúbio alcance estratégico. Em última instância, neste percurso, a inapelável conversão do Partido Comunista à condição de doméstica legenda, de perfil amestrado e socialdemocrata, o embaraça enquanto força revolucionária nos conciliábulos, em pleno curso de uma progressiva e acirrada luta de classes.

É indisfarçável a lógica que funda este processo. Ao erguer sua concentração econômica e privilégios, o grande capital trata de ampliar seu controle às formas de organização que o ameacem de modo revolucionário. Além do garrote de sua democracia, estende seus mecanismos sobre a sociedade, observa, espiona, mapeia, dita normas, freios de regulação, realiza acordos, e, no vácuo de alguma dócil liberalidade, infiltra ideias (e se possível agentes) nas forças políticas históricas, as únicas a representar risco à sua estabilidade, permanência e perenização enquanto classe dominante.

Com esse propósito, vende a ilusão de que detém o poder quem “governa”, numa instância de fato posta ao soberano livre arbítrio dos cartéis e financistas articulados ao imperialismo. E, no fomento à acomodação institucional e sedução fisiológica, busca assimilar essas forças que, empolgadas ao aparato palaciano, tacitamente renunciam à ênfase dialética da luta de classes, aderem à conciliação e à centralidade acordada pelo polo contrário, hegemônico.

Voto é fruto da luta cotidiana

Ao minimizar a pressão de massas, sob o ilusório enlace de diversas frentes, tais forças passam a semear no terreno onde se dariam as colheitas, reduzindo o solo da fertilidade aos desérticos limites do ideário socialdemocrata, na prática acomodando-se e superestimando a sazonal grade do calendário eleitoral em primazia sobre o fecundo plantio das batatas e batalhas cotidianas — de um vasto e secular acervo de experiências e conquistas.

Neste ambiente e na ausência do financiamento público das campanhas, enfatiza-se a devoção às paroquianas tarefas de arrecadação, ao estipêndio das fontes mais robustas, que buscam vantagens e contrapartidas em troca das suas sinecuras e acepipes. Onde não há como diferenciar-se da mercantil cultura das forças conservadoras, nivelando-se por baixo, de modo humilhante, nas mesmas fontes usurárias do inimigo de classe. O voto dos comunistas não brota de receitas fiduciárias; é safra e fruto da luta e da sua identidade popular.

Tais reflexões confrontam o paradoxo do ponto 98, desconexo e contraditório: (1) “O Partido teve real incidência na luta de classes e aumentou a influência na vida do país. Manteve e relançou um dos maiores legados de sua história: atuar no curso da luta política, inserir-se nos grandes movimentos definidores dos rumos da nação, nunca se isolar, sempre em sintonia com o sentimento do povo e seu real nível de consciência e organização”; e que (2) “Isso levou a assumir de forma plena e com centralidade a Frente institucional-eleitoral, para a conquista de instâncias de poder e representação na atual correlação de forças no país”.

Reincidente no ponto 118: “As vicissitudes são (…) inevitáveis para a esquerda. Hoje, atingem não apenas a frente institucional-eleitoral, mas (…) também nos movimentos sociais e na luta de ideias. Entretanto, a luta eleitoral para a conquista de representação política institucional e instrumentos de governo tem centralidade...”.

A mais histórica e respeitada força política do Brasil não deve celebrar seu ocaso na equívoca negação, falso dilema posto à antítese da sua afirmação. E negacear, ao féretro da dialética, o justo leito de suas múltiplas determinações: a luta, revolucionário impulso vital da vida e da História.

*Luiz Carlos Antero é militante do PCdoB Ceará.