Após 9 anos haitianos ainda buscam refúgio no Brasil
O município de Brasiléia (AC) continua sendo porta de entrada para dezenas de haitianos que diariamente imigram de forma irregular para o Brasil. O terremoto e a epidemia de cólera que assolaram o país caribenho em 2010 intensificaram os fluxos. Hoje, cerca de vinte pessoas chegam ao Acre todo dia.
Por Guilherme Almeida, no Brasil de Fato
Publicado 30/09/2013 14:44
Para entender os motivos que levam a esse movimento é preciso entender o passado e o presente da ilha. O Haiti é considerado o país mais pobre das Américas. Segundo os integrantes do Comitê Pró-Haiti, Lúcia Skromov e Sonéca, essa pobreza não é coincidência. “O Haiti é pobre porque foi empobrecido. Eles sofrem com embargos econômicos. Isso somado aos desastres naturais recorrentes impede qualquer tipo de estabilização”, analisa o rapper Sonéca.
A pesquisadora Lúcia Skromov vai mais longe ao analisar as causas do processo. “O Haiti foi protagonista de uma dupla revolução: a abolição da escravidão, feita pelos próprios escravos, e a independência. Eles sofrem em decorrência disso até hoje”, afirma.
Leia também:
Haitianos pagam até US$ 2,5 mil para entrar no Brasil
Acre recebe recursos por sobrecarga com atendimento a haitianos
Alguns problemas sociais do Haiti, como a falta de água, foram divulgados na imprensa brasileira no período do terremoto. No entanto, pouco se discute sobre as consequências que o povo do país sofre nesse contexto. O Brasil comanda a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas pela Estabilização do Haiti) desde sua criação em 2004; cerca de 17 mil militares brasileiros já viveram lá.
O coronel José Mateus Teixeira Ribeiro, oficial do Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEx) tem ampla experiência tanto nas incursões militares quanto como porta-voz dos batalhões e diz que “o que parece o inferno para um brasileiro, seria algo parecido com o paraíso para um haitiano”. O militar fez essa comparação quando perguntado sobre as condições de saneamento e infraestrutura do país caribenho. “Eles tentam se recuperar, mas existe despreparo e inúmeras adversidades”, diz o coronel José Mateus Teixeira Ribeiro.
A ONU intervém no Haiti com o pretexto de fornecer condições para o país voltar a se autogerir após conturbado momento político. Quando o presidente Jean-Bertrand Aristide deixou o poder em fevereiro de 2004, em meio a uma insurgência de três semanas já prestes a se tornar uma guerra civil, as Organização das Nações Unidas reconheceram sua renúncia, assim como a posse do chefe da Suprema Corte como constitucional. Ocupando o vácuo de poder, Boniface Alexandre assumiu como presidente em 8 de março de 2004. E solicitou, de imediato, apoio ao Conselho de Segurança da ONU, através de uma força internacional de manutenção da paz. Em 9 de março de 2004 o apelo foi atendido com o desembarque da Multinational Interim Force (com mandato de 3 meses), composta por forças estadunidenses, canadenses, francesas e chilenas – o prenúncio da MINUSTAH, que seria formada logo depois sob comando brasileiro através da Resolução 1542 do CS, de 20 de abril. O Brasil tomou o comando formalmente da operação em 1 de junho de 2004, na posse do general Augusto Heleno Ribeiro como comandante dos capacetes azuis.
A atuação da MINUSTAH, assim como a necessidade de sua permanência por tanto tempo (nove anos), nunca foi consenso. Parlamentares do Brasil e do Haiti criticam a maneira com que as coisas se desenvolveram. O senador haitiano Jean Charles Moise se destaca por fazer discursos contundentes nos quais denuncia a truculência das tropas e a inversão de valores que uma missão humanitária deveria seguir. “A MINUSTAH não pode trabalhar pela segurança, mas pode reprimir quem toma as ruas para reivindicar. Isso não é aceitável”, falou em entrevista no Programa Arena Livre exibido pela TV ALESP.
“O exército leva engenheiros com o pretexto de reurbanizar favelas e estruturas, ruas e estradas. Mas eles só asfaltam estradas por onde passam os carros de combate”, denuncia Lúcia Skromov, do Comitê Pró-Haiti. Segundo seus fundadores, a organização foi fundada com o propósito de expor as contradições da MINUSTAH e transmitir as demandas do povo haitiano sem a mediação da imprensa.
Jean Charles Moise aponta sempre que pode que a melhor maneira de ajudar um país não é a ocupação militar. “Os novecentos milhões de dólares que gastaram com a MINUSTAH no Haiti poderiam ser dispersos entre as várias áreas carentes do país, como educação, saúde, segurança pública e infraestrutura”, pondera. O coronel José Mateus Teixeira Ribeiro diz que quem se opõe tão veementemente à missão não contextualiza a necessidade da mesma. “A faixa dos dezessete aos vinte e cinco anos é bem agressiva com as tropas da ONU. Eles não viveram o Haiti em guerra, então vêem aquilo como um homem ocupando seu espaço”, afirma.
O oficial da CCOMSEx ainda ressalta que, por mais que sintam hostilidades nas ruas, é o meio acadêmico que tem maior resistência à MINUSTAH. “Até pelo incomodo que causamos, acho que a saída é uma boa”, diz o coronel José Mateus Teixeira. A resolução 2070 do Conselho de Segurança da ONU prevê o fim da missão e a conseqüente retirada das tropas em 2016.
Em uma carta escrita em conjunto pela retirada imediata das tropas da MINUSTAH, Eduardo Galeano, Juan Gelman, Frei Betto e Adolfo Pérez Esquivel afirmam o caráter ambíguo da ocupação militar na ilha caribenha: “É inconcebível que os exércitos de nossos países estejam diretamente envolvidos na ocupação militar de uma nação que já foi uma luz de esperança e liberdade para nossos movimentos de independência em suas origens, e prestou um apoio essencial à campanha de Simon Bolívar pela libertação da América Latina. É inconcebível que nossos países, que têm sofrido tantas agressões estrangeiras, estejam agora pisoteando a soberania de outro que tem vivido inúmeras e brutais intervenções desde o dia que rompeu as correntes da escravidão e do colonialismo”, protestam.
(Título original: Haitianos buscam refúgio no Brasil mesmo após nove anos de missão humanitária – modificado pela redação do Vermelho)