A revolução feminista e autônoma no hip hop cubano

A arte como única arma de luta pelos direitos e por um futuro melhor para todos, justiça social, equilíbrio e contra a opressão do sistema patriarcal. É dessa forma que a dupla de rappers cubanas Las Krudas Cubensi, formada por Odaymara Cuesta e Olivia Pendes, se enraízam na cultura hip hop.

O nome Krudas está intimamente ligado ao cardápio das ativistas, que se alimentam apenas de produtos crus (naturais), uma tradição que, segundo elas, poderia garantir uma saúde melhor para todos. Veganas, não comem nada que seja derivado de animais. Defensoras de uma alimentação mais saudável, a dupla também defende a prática da medicina verde. 

“Em Cuba, temos muita tradição de ervas e medicina verde. Essas também deveriam ser compartilhadas com outros países, embora a Academia não as levem em consideração. A boa comida e plantas medicinais são medicina”, avaliam.

Autônomas e feministas, as poetisas caribenhas vieram ao Brasil participar de dois eventos: o Festival da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha, em Brasília, e para o Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual (ENUDS), no Paraná. Também visitaram Porto Alegre, Salvador e São Paulo. Apesar de terem gostado de todos os locais que conheceram, afirmam que se sentiram como em ‘su casa’ em Salvador, na Bahia.

O rap caribenho também ecoou e contagiou territórios latino-americanos em outros eventos culturais e saraus nas periferias de São Paulo. Foi em um deles, na Biblioteca Comunitária Solano Tindade, em Cidade Tiradentes, na periferia da zona leste da capital, que o Brasil de Fato conversou com as cubanas. Entre outros assuntos, a dupla falou da sua relação com o país, sobre o hip hop, a medicina e a solidariedade cubana além do amor pela arte.

“A música para nós é uma arma, uma missão. É a maneira de expressar nossa filosofia e sentimentos nesses tempos e lugares. É o nosso presente que se manifesta”, disseram.

Me Rebelo

Contra a supremacia, a falta de amor, a injustiça. As palavras de ordem da música “Me Rebelo” sintetizam a insatisfação da dupla caribenha com o sistema capitalista e a vontade de mudar o mundo. Antes um trio, do qual, além de Odaymara e Olivia, fazia parte a rapper Odalys Cuesta (Wanda), a dupla se fixou nos anos 2000. Em 2006, com dificuldades de seguir a carreira artística em Cuba, uma mudança radical na vida e carreira das caribenhas.

De malas prontas, elas rumaram para os Estados Unidos. Hoje, residentes em Austin, no Texas – cidade de referência para músicos, cujo slogan é “Capital da Música ao Vivo” –, a dupla garante que é do mundo. “A gente mora entre Estados Unidos, México, Cuba e onde nos chamarem”, afirmam.

Com letras fortes, rebeldes e sem “papas na língua”, Odaymara e Olivia ressaltaram os pontos positivos e negativos que ainda veem no país. Entre os negativos elas ressaltaram o totalitarismo, o controle da informação, o empobrecimento da economia e a falta de interação com a comunidade internacional. Nativas de um país em que mais da metade da população é formada de mulatos e pouco mais de 10% por negros, é marcante na música das Krudas a crítica ao racismo em Cuba, herdado do processo de colonização.

No entanto, o amor e a consideração pela cultura e natureza cubanas são claramente perceptíveis na fala das poetisas. Uma relação que elas fazem questão de dizer que “é excelente”, além de concordarem com o posicionamento antiimperialista e solidário da ilha caribenha.

“Há muito o que ensinar e muito o que aprender [em Cuba]. Há muita sabedoria em nossa cultura. Não é por habitar uma terra ou participar de um espaço que significa que aprovamos tudo que as pessoas que estão no comando fazem. Além disso, nossa revolução natural é feminista”, ressaltam.

Hip hop e gênero

A cultura hip hop ganha destaque em Cuba na mesma época em que se fortalece no Brasil, nos anos de 1980. Com mais força para o break – dança criada por afro-americanos e latino-americanos nos subúrbios dos EUA na década de 1970 – com o tempo, o movimento vai se tornando mais popular e aglutina os outros elementos que o compõe – mc, dj e grafite.

Com o recrudescimento da crise econômica na década de 1990, muitos encontram no hip hop uma maneira de se expressar. Com o poder da fala, os conflitos entre o estilo musical e o poder público tornaram-se constantes. Não diferente do Brasil, os jovens negros foram, e continuam sendo, os mais perseguidos pela polícia.

Apesar da existência de uma Agência Cubana de Rap, cujo objetivo é comercializar os artistas do movimento, há um estilo alternativo da cultura que não para de crescer na ilha. No entanto, por mais que esse movimento seja um contraponto à lógica comercial, as rappers criticam a hegemonização masculina predominante nele.

Odaymara e Olivia, cujas referências brasileiras são Racionais MC´s, GOG, Nega Gizza, Criolo, entre outros, avaliam que o hip hop deve ser para todos que encontram na cultura uma ferramenta de luta e liberdade, independentemente se for mulher e homem heterossexuais, bissexuais, ou então para lésbicas, gays e transexuais.

“Realmente quase todo o hip hop que conhecemos reflete a sociedade machista, homofóbica, heteronormativa em que vivemos. Felizmente, somos cada vez mais vozes que estão incomodando dentro e fora da cultura. Denunciando, trabalhando e construindo um novo e diverso hip hop. Mas ainda necessitamos mais, mais e mais.”


Evento sobre as expressões contraculturais e de negritude na periferia realizado pela Comuna Aurora Negra, em São Paulo. Foto: Elaine Campos

Solidariedade enraizada na medicina

Longe, mas não alheias ao país onde nasceram, a dupla de rappers cubana analisa as características positivas de Cuba. No campo social, veem com entusiasmo o fato de a educação e a medicina serem gratuitas. Em relação à política, dizem que o “antiimperialismo” é uma posição correta da ilha, hoje governada por Raúl Castro.

Entre outros pontos abordados pelas cantoras, está a “solidariedade internacionalista” evidente, principalmente, na questão da saúde. Com êxito na prevenção e educação, o sistema de saúde cubano é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e ainda tem o maior índice de médicos por mil habitantes de todo o mundo.

Além disso, envia seus profissionais para áreas de conflito e vulnerabilidade social de países parceiros. “O povo cubano fala e pratica a solidariedade há muito tempo entre nós mesmos e também fora dele com muitos países. É parte da cultura ajudar, compartilhar e receber”, afirmam.

Mais Médicos

Para o Brasil, em acordo firmado entre o Ministério da Saúde e a Organização PanAmericana de Saúde (Opas), serão enviados 4 mil médicos cubanos que trabalharão na rede básica de saúde por meio do Programa Mais Médicos.

Em solo brasileiro para uma série de shows e apresentações, as rappers presenciaram a chegada dos primeiros 400 médicos cubanos que participarão do programa federal. Ao mesmo tempo em que parabenizaram a iniciativa do governo, lamentaram a hostilização enfrentada por eles – com demonstrações de xenofobia, racismo e preconceito – por parte dos médicos brasileiros.

Para Las Krudas, não é compreensível que alguns brasileiros não queiram abrir as portas para os médicos de seu país, uma vez que Cuba é solidária, abre suas portas a outros homens da América Latina e oferece saúde para o povo. “Não sabemos de casos de hostilização em outros lugares”, afirmam.

Odaymara Cuesta afirma que independentemente do capitalismo ou do socialismo, o importante é a saúde do povo. “Em todos os lugares que há médicos cubanos o que sei é que as pessoas querem que eles estejam ali porque tratam bem as pessoas e não são médicos que estão em busca de dinheiro; estão pela missão de curar as pessoas”, diz.


Fonte: Brasil de Fato