Alterações no ECA: punição versus garantia de direitos

Uma discussão acerca de decisões iminentes que afetarão o futuro dos jovens brasileiros está sendo travada no Congresso Nacional. Está em apreciação, na Câmara dos Deputados, projeto de lei do Senado Federal (PL nº 7.197/2002 e mais 18 apensados) que pretende alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/1990), para, entre outras coisas, permitir a aplicação de medidas socioeducativas aos infratores que atingirem maioridade penal.

Para socializar o debate antes de emitir parecer ao projeto e encaminhá-lo à votação, foi criada na Câmara dos Deputados a Comissão Especial de Medidas Socioeducativas. Conscientes da responsabilidade de legislar sobre tema tão caro à sociedade brasileira, os representantes da comissão deram-lhe um caráter itinerante e estão percorrendo algumas capitais brasileiras para ouvir in loco autoridades e profissionais que atuam nas áreas de infância e juventude. 

Com esse intuito, a comissão aportou na capital baiana em 16 de setembro e cumpriu uma agenda que incluiu visita a uma unidade de acolhimento de medidas socieducativas (Case-CIA), audiência com o governador em exercício, Otto Alencar, e realização de seminário na sede do Ministério Público do Estado da Bahia, com o apoio irrestrito desta instituição.

Durante todo o dia, os deputados federais Vieira da Cunha (PDT/RS), presidente da comissão; Carlos Sampaio (PSDB/SP), relator do projeto; Alice Portugal (PCdoB/BA), membro da comissão e coordenadora das atividades na Bahia, e a terceira presidente, Rosane Ferreira (PV/PR), inteiraram-se da situação da Bahia no que diz respeito ao adolescente em conflito com a lei e ouviram os segmentos que atuam na área.

Punição versus garantia de direitos

Mediado pelo deputado Vieira da Cunha, o seminário reuniu autoridades das mais atuantes nas áreas de infância e juventude. A partir de explanações com focos variados, chegou-se a um consenso: é temerário alterar uma lei considerada modelo como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e que sequer foi integralmente aplicada. As opiniões também convergiram para a ideia de que jovens e crianças não precisam de mais punição e sim de políticas públicas que lhes assegurem os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, conforme preconiza o art 4º do Título I do ECA.

O relator do projeto, Carlos Sampaio, abriu os trabalhos destacando que o ECA é uma das mais relevantes peças jurídicas em vigência no Brasil e que o seu arcabouço não deve ser alterado. O deputado salientou que o estatuto traz importantes garantias de direitos acrianças e adolescentes, mas não foi devidamente implementado em seus 23 anos de vida útil no Brasil. “O ECA é um diploma legal de altíssima qualificação no Brasil e no mundo. Nós queremos ouvir o Brasil antes de emitir parecer”, ponderou o relator.

A visão de Sampaio é compactuada por Alice Portugal, que ressaltou o caráter delicado da matéria e a necessidade da busca por um texto legislativo que faça avançar o efetivo cumprimento desses direitos. A deputada atacou a imprensa conservadora, que, segundo ela, faz recortes estereotipados do tema, simplificando uma questão complexa e levando a crer que o problema da violência no Brasil se resolveria a partir do encarceramento de sua juventude. “A grande repercussão na mídia de casos em que os nossos jovens se envolvem em crimes quer fazer crer que precisamos de um Estado punitivo, mas nós queremos um Estado social, que garanta a jovens e crianças brasileiras direitos básicos de sobrevivência. Só assim nós os afastaremos do crime”, disse a deputada, ao destacar que, ao invés de criminosos, os jovens são vítimas e que o rigor na punição deve recair sobre adulto que alicia menor para a prática de crimes e não sobre os adolescentes. Apenas 10% das notificações de crimes no Brasil são atribuídas a adolescentes.

Onda conservadora

Rosane Ferreira alertou para uma onda conservadora no Congresso Nacional, amplificada pela mídia, que luta para endurecer punições para o adolescente infrator e reduzir a maioridade penal, sem contemplar o âmago do problema. “Na Câmara, há muitas propostas para redução [da maioridade penal]. Foi criada até uma frente parlamentar com esse objetivo. A mídia pressiona pela redução como forma de inibir a violência, mas nós precisamos é proteger os nossos adolescentes, para que eles tenham oportunidades”, defendeu a deputada parananense.

A esse respeito, muitos participantes consideraram que a alteração do ECA segundo as proposições em tramitação no Congresso é um sucedâneo escamoteado da redução da maioridade penal. Além disso, julgou-se que, da forma como estão propostas, as alterações podem desvirtuar o ECA, transformando-o em um código penal para crianças e adolescentes e não um instrumento de garantia de seus direitos, como foi concebido originalmente. “Podemos estar contribuindo, pela via transversa, para um aumento do ato infracional”, opinou o promotor de Justiça Evandro Luis Santos de Jesus. Segundo ele, há muitos itens na proposta que violam frontalmente as normas federais brasileiras, como a Constituição Federal, e também convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. “O que precisamos é de medidas de prevenção, uma vez que as causas da omissão do Estado não são tratadas”, reforçou.

O presidente da comissão, deputado Vieira da Cunha também reiterou a compreensão dominante entre os debatedores. “Reduzir a maioridade penal e ampliar as medidas [socioeducativas] para jovens que foram alijados de qualquer direito é um equívoco. Devemos trabalhar na sua garantia e não na sua punição”, disse. A visão do presidente foi reforçada pelo conselheiro titular do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (Ceca-BA), Edmundo Ribeiro Kroger. “O ECA é uma lei que propõe a construção de uma sociedade mais humanista, onde a educação é o maior valor”, defendeu Kroger, que distribuiu entre os participantes carta assinada pelo Ceca e pelo Forum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente contra a redução da maioridade penal e pela garantia de direitos e oportunidades para adolescentes e jovens.

Representando Moema Gramacho, titular da Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza, a diretora geral da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac-BA), Ariselma Pereira, aportou dados que legitimaram a compreensão de que a redução da maioridade penal e ampliação das medidas socioeducativas é um equívoco que pode custar caro à sociedade brasileira. Segundo a diretora, uma entusiasta da recuperação desses jovens, 90% dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas são negros e 53% não frequentavam a escola quando cometeram o ato infracional, caracterizando um corte social e de raça no perfil do adolescente infrator. “Esse jovens são mais vítimas do que algozes”, frisou Ariselma, ao defender o cumprimento do Eca e não a sua alteração. “Por que revisar e mudar algo que não foi plenamente executado?”, questionou.

Estado punitivo

Ariselma salientou ainda o fato de que cada jovem interno custa ao Estado um valor que oscila de 7 a 8 mil reais mensais, que poderiam ser investidos em medidas preventivas, em detrimento das punitivas. Numa matemática simples, quando se multiplica o custo de cada jovem punido pelo quantitativo de 18 mil adolescentes em internação hoje no Brasil, chega-se à bagatela de 144 milhões de reais gastos a cada mês, ou seja, 1,7 bilhão de reais gasto para punir adolescentes que cometeram ato infracional, na maioria das vezes, por total ausência de perspectiva de futuro.

Vice-presidente da Assembleia Legislativa da Bahia e membro da Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da casa, o deputado estadual Yulo Oiticica (PT) trouxe mais dados para referendar a ideia compartilhada pelos participantes. Segundo Oiticica, 45% dos adolescentes infratores trabalham sem carteira assinada. O deputado também desconstruiu a ideia difundida erroneamente pela mídia de que os atos infracionais cometidos são em sua maioria crimes que atentam contra a vida. De acordo com ele, 45% desses atos são cometidos contra o patrimônio público, 21% são por porte de tóxicos e entorpecentes e 20% são contra a pessoa. “Eles não precisam de punição, eles precisam de políticas públicas”, reiterou.

Após a argumentação das autoridades, o debate foi aberto à plenária, que endossou a compreensão unânime entre os expositores. Entidades das mais variadas que atuam na área de infância e juventude, educadores e assistentes sociais, lideranças estudantis e de movimentos sociais corroboraram a ideia de que os atos infracionais praticados por adolescentes têm sua origem na desigualdade social que ainda impera no país e torna os seus jovens vulneráveis á ação de criminosos.

Diante disso, não haveria porque transformar uma lei que garante direitos a esses jovens em um instrumento para a sua punição. Na Bahia, foi consensual a visão de que, pelo menos nesta matéria, não cabe ao Estado um papel punitivo, mas sim um caráter social, que contemple a implementação de políticas públicas que se traduzam em maiores oportunidades para esses jovens em situação de vulnerabilidade.

Fonte: Ascom Alice Portugal