Maurício Brum: O dia final de Salvador Allende

No início da manhã de 11 de setembro de 1973, Salvador Allende ainda acreditava que o golpe de Estado em andamento poderia ser contornado. Não era a primeira vez que um grupo de militares se insurgia contra o governo. Agora, o levante havia começado pela Armada – e restava a esperança de que a revolta fosse reduzida a alguns navios no porto de Valparaíso.

Por Maurício Brum, especial para o Sul21

Allende confiava que Augusto Pinochet permaneceria tão leal quanto fora Carlos Prats, seu antecessor no comando do Exército. Acreditava que o golpe seria vencido ou, caso viesse mesmo, que não teria o aval de Pinochet. Mas seguia sem conseguir contato para se comunicar com o general.

– Pobre Augusto, deve estar preso – comentou o presidente com alguns companheiros próximos.

Naquela altura, Allende já se localizava no palácio de La Moneda. Havia sido acordado pouco depois das seis da manhã, por um telefonema inquietante informando a situação em Valparaíso: a cidade fora sitiada e jazia na mira de canhões dos navios de guerra do próprio país. O presidente puxou o telefone para tomar a posição do comandante da Marinha, Raúl Montero, mas não obteve resposta. Depois, tentou chamar Pinochet, que também não atendeu. O único a responder foi o general golpista Herman Brady, com a promessa jamais cumprida de enviar soldados para combater o movimento no litoral.

Enquanto isso, o almirante Montero era mantido em prisão domiciliar por seus subordinados, agora às ordens de José Toribio Merino, que se autodenominou chefe da Armada. Já Pinochet estava encabeçando o golpe, embora o presidente ainda não soubesse. Por volta das 7:35 da manhã, enquanto Allende chegava a La Moneda, o comandante do Exército também desembarcava em sua base de combate naquela manhã: o quartel de telecomunicações de Peñalolén, na zona leste de Santiago, de onde passaria as instruções decisivas para a derrocada do governo constitucional.

Ainda sem saber a dimensão do putsch, Salvador Allende entrou ao vivo na frequência da Rádio Corporación duas vezes antes de os militares lerem seu primeiro comunicado do dia. Em suas incursões, o presidente reiterou que “até o momento, não houve nenhum movimento anormal de tropas em Santiago”, e manifestou fé na existência de regimentos leais que não se somariam à intentona. Mas suas esperanças se esvaíram pouco depois disso, às oito e meia, quando o tenente-coronel Roberto Guillard leu a carta da Junta Militar numa cadeia de rádios de oposição. Sua voz vinha desde o quinto andar do Ministério de Defesa, taxativa:

Santiago, 11 de setembro de 1973.

Tendo presente:

Primeiro: a gravíssima crise econômica, social e moral que está destruindo o país;

Segundo: a incapacidade do governo para adotar as medidas que permitam deter o processo e desenvolvimento do caso;

Terceiro: o constante incremento dos grupos paramilitares, organizados e treinados pelos partidos políticos da Unidade Popular que levarão o Chile a uma inevitável guerra civil, as Forças Armadas e Carabineros do Chile declaram:

Primeiro: que o senhor presidente da República deve proceder à entrega imediata de seu alto cargo às Forças Armadas e Carabineros do Chile;

Segundo: que as Forças Armadas e o corpo de Carabineros do Chile estão unidos para iniciar a histórica e responsável missão de lutar pela liberação da Pátria do jugo marxista, e a restauração da ordem e da institucionalidade;

Terceiro: os trabalhadores do Chile podem ter a segurança de que as conquistas econômicas e sociais que alcançaram até hoje não sofrerão modificações no fundamental;

Quarto: a imprensa, rádios e canais de televisão favoráveis à Unidade Popular devem suspender suas atividades informativas a partir deste instante. Do contrário receberão castigo aéreo e terrestre.

Quinto: o povo de Santiago deve permanecer em suas casas a fim de evitar vítimas inocentes.

 

Entre os comandantes – verdadeiros ou autodenominados – que assinavam o documento, estava o nome de Augusto Pinochet. Sua presença na lista confirmava a adesão do Exército ao golpe – e a impossibilidade de o governo superá-lo.
 

O plebiscito que não houve

O golpe aconteceu numa terça-feira. O final de semana anterior havia sido marcado por uma série de reuniões de Allende com lideranças políticas e militares, discutindo as alternativas para o futuro imediato do país. Os problemas do governo iam além da crise econômica impulsionada por seus próprios erros estratégicos e pelos boicotes norte-americanos. Também estavam presentes o terrorismo da ultradireita, as greves dos sindicatos de oposição, em especial o dos caminhoneiros, o desabastecimento do comércio e a inflação perene. As Forças Armadas vacilavam em suas convicções democráticas e os partidos de oposição – e boa parte da sociedade – já apoiavam uma intervenção militar, acreditando um retorno rápido à normalidade.

Dentro da Unidade Popular, duas teses se confrontavam para decidir a estratégia a seguir. Um lado, encabeçado pelos socialistas, desejava acelerar as mudanças mesmo que à revelia da legalidade, impondo antes de negociar. A outra corrente, defendida pelos comunistas e por Allende, queria chamar ao diálogo com os adversários, mesmo que isso arriscasse ceder em parte das mudanças levadas a cabo pelo governo nos últimos três anos. Depois de avançar rápido demais e ver a situação se tornar ingovernável, a ala moderada da UP se esforçou para buscar uma saída e evitar mais derramamento de sangue. Sentindo-se encurralado, o presidente idealizou uma alternativa drástica: um grande plebiscito nacional pela continuidade ou não de sua administração.

Parecia-lhe a maneira mais honrosa de deixar o cargo sem correr o risco de jogar o país numa quebra institucional. Salvador Allende sabia que seria derrotado. Desde sua vitória, em setembro de 1970, a UP só teve a maioria absoluta do eleitorado uma vez – em março de 1971, e mesmo assim somando as cidades de todo o país nos pleitos municipais, com uma margem estreitíssima. Aquele triunfo aproveitou o sucesso econômico dos meses iniciais do governo, mas não correspondia ao cenário real e dividido da política chilena. Allende mesmo fora eleito com apenas 36,6% dos votos, numa disputa rachada entre três nomes. Ainda assim, segundo seus assessores mais próximos, o presidente estava disposto a renunciar tão logo o plebiscito o derrotasse.

Os chilenos, porém, não saberiam de suas reais intenções até a década de 1990: nunca houve tempo de convocar a votação pretendida por Allende. No domingo, 9 de setembro de 1973, o mandatário havia convocado dois generais para uma reunião decisiva em que comentou precisamente seu projeto de colocar nas mãos da cidadania os rumos do poder. Naquela manhã, Augusto Pinochet e Herman Brady – o homem que atenderia o telefonema presidencial no dia 11 – apresentaram-se no escritório do mandatário. Sem desconfiar que estava diante de dois dos principais conspiradores a favor do golpe, Allende confidenciou-lhes a intenção de chamar o povo às urnas. Surpreso, Pinochet afirmou:

– Isso muda toda a situação, presidente. Vai ser possível resolver o conflito com o Parlamento e isso aliviará a tensão.

O que aquela descoberta realmente mudou foi a data do golpe. Fazendo um eterno jogo duplo para se posicionar em público sempre ao lado do mais forte, Pinochet já estava convencido pela causa golpista, e concluiu que a sublevação precisaria ocorrer antes do discurso presidencial. Uma intervenção dos fardados perderia muito de seu apoio caso a população soubesse da proposta de uma saída democrática para o impasse político. O levante estava previsto para antes das Festas Pátrias de 18 e 19 de setembro, para evitar uma nova parada militar diante do presidente que se queria derrubar. Mas a insurreição provavelmente só aconteceria por volta do dia 14, quando ocorriam os ensaios para o desfile e um deslocamento de tropas até Santiago seria menos suspeito.

Municiado pelas novas informações, Pinochet se reuniu naquela mesma noite do dia 9 com Merino e Gustavo Leigh, comandante da Aeronáutica. Foi durante a festa de 13 anos de sua filha, Jacqueline Pinochet, que o general e os demais conjurados chegaram ao acordo de antecipar o “Dia D” para às seis da manhã de 11 de setembro – cinco horas antes do momento em que Allende tomaria os microfones para anunciar seu plebiscito.

Santiago como um grande quartel

Se aquele fosse um dia comum e a agenda do presidente se mantivesse inalterada, a manhã do 11 marcaria a abertura da exposição “Por la vida siempre”, na Universidade Técnica do Estado (UTE). Até o final do mês, em todos os polos da instituição pelo país, estavam previstas 500 exposições mais ou menos simultâneas, expondo os horrores de uma guerra civil – que se temia para o Chile naquele contexto de divisão. As “jornadas antifascistas”, como chegaram a ser chamadas, seriam inauguradas por Salvador Allende no campus da UTE de Santiago, no mesmo ato em que pretendia anunciar oficialmente a realização do plebiscito.

No entanto, desde a véspera aquela programação pouco a pouco ganhou contornos de hipótese improvável. O presidente passou a noite de 10 de setembro reunido em sua residência oficial com vários assessores, planejando o dia seguinte. Perto da meia-noite, a conversa foi interrompida por um telefonema com o aviso: agricultores residentes na beira da rodovia tinham testemunhado o deslocamento de vários caminhões militares, saídos das cidades de Los Andes e San Felipe, com direção à capital. Apesar do movimento suspeito, Allende não ficou atarantado:

– Se eu fosse acreditar em todos os rumores que ouço, ficaria louco – disse aos colegas.

Quando o mandatário se deitou para uma breve noite de sono antes do dia agitado, já havia comprado a versão do Exército: os soldados enviados para Santiago ajudariam a reforçar a segurança da cidade na manhã seguinte, quando poderia haver protestos no centro. Em meio a tantos acontecimentos, o 11 de setembro previa um importante evento a mais: a Justiça realizaria a sessão em que suspenderia o foro privilegiado do senador Carlos Altamirano e do deputado Guillermo Garratón, membros da base aliada de Allende que haviam acolhido as denúncias de um grupo de marinheiros, os quais garantiam ter ouvido seus superiores falando de uma trama golpista. A Armada, evidentemente, negava tudo – e pretendia processar os políticos.

Nem Altamirano nem Garretón chegaram a ter sua imunidade parlamentar formalmente cancelada porque, no dia 11, o próprio conceito de parlamentar – e de imune – se tornou alienígena. Os magistrados não puderam se reunir para julgar a causa; os fatos atropelaram o processo e confirmaram que a Armada estava mesmo planejando o golpe denunciado por seus recrutas e, principalmente, os mandatos dos dois políticos – e de todo o Congresso – logo seriam anulados pelo novo regime. O Parlamento chileno foi dissolvido por um decreto autoritário da Junta Militar e permaneceu fechado até 1990, na volta à democracia.

Allende começou a tomar conhecimento de tudo o que estava passando no país graças àquele telefonema do início da manhã, mas antes disso as tropas já estavam dando os primeiros passos. No campus da UTE, onde deveria acontecer o ato presidencial, uma patrulha militar invadiu a rádio universitária e destruiu suas instalações, impedindo-a de funcionar. Este seria o primeiro atentado contra uma emissora favorável ao governo: ao longo da manhã do golpe, as poucas rádios que ainda colocavam os pronunciamentos de Allende no ar foram silenciadas rapidamente, com suas torres bombardeadas pelos aviões militares.

O presidente começou o dia falando em três rádios principais – a Corporación, a Portales e a Magallanes – e, na altura de seu último discurso, só uma delas ainda estaria operando. As demais emissoras do país ainda no ar ficaram tocando intermináveis marchas militares, interrompidas apenas pelos decretos emitidos ordinariamente pela Junta: ameaças de fuzilar no ato quem tentasse resistir ao golpe, recomendações para que o povo não saísse às ruas, listas de nomes de “extremistas” que deviam se entregar, ultimatos ao presidente e aos companheiros que insistiam em resistir no palácio.

“Eu não vou renunciar”

A resistência de La Moneda durou a manhã inteira. No início do dia, o prédio ainda era guarnecido por um grupo de Carabineros, com a presença do próprio diretor da corporação, o general José Sepúlveda. No entanto, essa presença não durou muito: os soldados desertaram quando o primeiro decreto da Junta veio ao ar e o desconhecido César Mendoza assinou como comandante da instituição. A exemplo do que Merino fizera na Armada, Mendoza também deu um golpe interno nos Carabineros: no seu caso, passou a perna em seis generais mais antigos e virou diretor “de fato” ao assumir o controle da central de telecomunicações da polícia, de onde pôde dar ordens ao país inteiro.

Sem suporte militar de qualquer tipo, os defensores do palácio resistiram usando as armas abandonadas pelos próprios Carabineros, além do equipamento mantido pela escolta presidencial. Tratava-se, evidentemente, de uma resistência simbólica: menos de uma centena de homens parcamente armados contra todo o aparato militar do Chile. Com o tempo correndo perigosamente contra, Allende entrou em contato com a última emissora de rádio aliada ainda no ar. Às 9:10, os chilenos sintonizados na Rádio Magallanes puderam ouvir, entre nuvens de estática, o último discurso do presidente:

Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei me dirigir a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Portales e da Rádio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para aqueles que traíram o juramento que fizeram: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Armada, mais o senhor Mendoza, general rasteiro que ainda ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou Diretor Geral de Carabineros.

Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: eu não vou renunciar.

Colocado em um transe histórico, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser segada definitivamente. Têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detêm os processos sociais, nem com o crime, nem com a força.

A história é nossa e a fazem os povos.

Trabalhadores da minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que apenas foi intérprete de grandes desejos de justiça. Que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez. Neste momento definitivo, o último em que eu poderei me dirigir a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação, criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição.

[…] Seguramente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranquilo de minha voz não chegará vocês. Não importa. Seguirão me ouvindo. Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos minha lembrança será a de um homem digno que foi leal com a Pátria.

O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve se deixar arrasar nem se crivar de balas, mas tampouco deve se humilhar.

Trabalhadores de minha Pátria: tenho fé no Chile e em seu destino. Superarão outros homens este momento cinza e amargo em que a traição pretende se impor. Sigam vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre para construir uma sociedade melhor.

Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!

Estas são minhas últimas palavras, e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a tradição.
 

O cerco final a La Moneda

Após a despedida de Allende, La Moneda se viu rodeada por tanques. No restante da manhã, a Junta reiterou suas ofertas para que o presidente renunciasse ao cargo para ter sua integridade física mantida. Os militares prometiam deixar um avião à disposição para levá-lo a qualquer parte em que desejasse se asilar. Salvador Allende, porém, não aceitou. Em 1985, vazaram gravações das conversas internas dos comandantes, em que Pinochet diz textualmente:

– Mantém-se o oferecimento de retirá-lo do país… e o avião cai, viejo, durante o voo – ao fundo, os colegas do general gargalhavam.

O bombardeio aéreo do palácio atrasou por quase uma hora. Prometido para as onze da manhã, teve seu início apenas às 11:52, quando foi disparado o primeiro dos 79 mísseis a saírem dos caças Hawker Hunter. Antes disso, a residência presidencial, localizada em outro ponto de Santiago, também havia sofrido ataque aéreo. Lá estava a primeira-dama, Hortensia Bussi, que conseguiu fugir escondida num automóvel dirigido por um guarda-costas.

As bombas caíram sobre La Moneda por cerca de 25 minutos. Depois, aproveitando-se dos rombos abertos no palácio, helicópteros se aproximaram e lançaram granadas de gás lacrimogêneo. Apesar de toda a violência do ataque, o 11 de setembro deixaria somente duas vítimas na sede do governo chileno: dois suicídios. O primeiro foi o jornalista Augusto Olivares, diretor da Televisão Nacional, enquanto o bombardeio acontecia. O segundo, apesar das controvérsias que essa afirmação gerou nessas quatro décadas, foi Salvador Allende.

Por muitos anos a versão do suicídio do presidente foi combatida, inclusive por outros defensores do palácio, que garantiam ter presenciado uma troca de tiros. Nos tempos de resistência à ditadura, parecia mais útil a imagem do homem que morrera lutando do que o suicídio honroso de alguém que se recusou a cair nas mãos dos inimigos. Fidel Castro endossou essa versão num discurso que deu em Havana no fim daquele setembro sombrio, e mais tarde seria a vez de Gabriel García Márquez dar ainda mais força à lenda, com um texto baseado em relatos de testemunhas em que confirmava a ocorrência de um tiroteio entre o presidente e os homens do general Javier Palacios – que comandou a invasão ao prédio.

A cada aniversário do golpe, novos livros tentando comprovar “a verdadeira história” por trás das horas finais de Salvador Allende reconstroem as versões, e ainda hoje são escritos textos reforçando a tese do tiroteio. No entanto, na obra mais exaustiva a respeito do assunto – El último día de Salvador Allende, de 2008 –, o médico Óscar Soto confirma de forma convicta o suicídio. Tal sustentação também veio de todas as autópsias encomendadas periodicamente pelos governos chilenos após a volta à democracia.

Cardiologista do presidente, Soto esteve no palácio naquele dia e participou de reconstituições com outros colegas da defesa. De acordo com seu relato, por volta da uma e meia da tarde e já sem chances de resistir, Allende havia pedido que os colegas se rendessem, saindo pela porta lateral do prédio, que dá na rua Morandé. Anunciou que seria o último da fila, mas aproveitou a confusão e se retirou no Salão da Independência, onde tirou a própria vida com o AK-47 que lhe havia sido presenteado por Fidel, anos antes. O tiro foi ouvido das escadarias, seguido pelo grito enlouquecido de Enrique Huerta, responsável pela manutenção do palácio:

– Allende morreu! Viva o Chile!

Longe do palácio, as outras vítimas de La Moneda

Huerta chegou a recolher a arma do tapete para acompanhar a imolação do mandatário, mas foi convencido de que seu sacrifício seria inútil pelo médico Héctor Pincheira. Os dois decidiram respeitar a última ordem de Allende e saíram do prédio pela porta lateral, onde – como todos os demais – foram imediatamente obrigados a se deitar de bruços no chão. A imagem ficou famosa: correram o mundo os registros dos defensores de La Moneda jogados na rua diante das lagartas ameaçadoras de um tanque de guerra.

Ninguém morreu no asfalto de Morandé, mas nos dias seguintes muitos outros nomes se somaram à listagem de vítimas do palácio, que inicialmente contava apenas com Augusto Olivares e Salvador Allende. Dos 56 prisioneiros capturados com vida, 24 foram vítimas de execuções sumárias ou se tornariam desaparecidos políticos, inclusive Héctor Pincheira e Enrique Huerta. A repressão logo se abateu por todo o país, acompanhada pela imposição de um toque de recolher que vigorou até o dia 13. O país já era outro quando se pôde voltar às ruas. Sua posição no cenário político internacional, também: alguns rapidamente criticaram a brutalidade do novo regime, outros silenciaram. A grande maioria, mais cedo ou mais tarde, lembrou dos acordos comerciais para ignorar as violações de direitos humanos.

Mas houve uma nação que se antecipou às demais. Alguns anos mais tarde, Augusto Pinochet lançou um livro de memórias chamado El día decisivo, sobre os preparativos do golpe. Montado como se fosse uma entrevista, com perguntas e respostas, o volume inclui a seguinte interrogação:

Pergunta: Nesse dia [11 de setembro], algum país reconheceu o novo governo do Chile?
Pinochet: Sim. Nessa tarde eu me encontrava no escritório do diretor da Escola Militar, quando chegou o embaixador do Brasil no Chile, senhor Câmara Canto, para dizer que seu país reconhecia o novo governo do Chile, nobre gesto desse país irmãos que os chilenos nunca esqueceremos.

O Brasil, que havia dado apoio de bastidores ao golpe, não sentiu qualquer constrangimento em assumir a trama nas horas seguintes à morte de Allende. O governo Médici seria o primeiro em todo o mundo a emprestar dinheiro para Pinochet começar a “reconstrução” do Chile, e logo autorizou o envio de medicamentos, alimentos e combustíveis para Santiago. Também mandou um destacamento de “especialistas em interrogatórios”, com a missão de ensinar aos militares transandinos as técnicas de tortura mais eficientes empregadas nos porões brasileiros. Era o início de uma frutífera relação entre as duas ditaduras.