Experiência chilena mostra que a esquerda precisa se unir
Nesta quarta-feira, 11 de setembro, completam-se 40 anos desde que o general Augusto Pinochet interrompeu, com um golpe de Estado, a experiência de governo popular que vinha sendo implantada por Salvador Allende. As falhas e deficiências que debilitaram o governo Allende são debatidas até hoje. Para a historiadora Elisa de Campos Borges, que pesquisou o processo em seu doutorado, as divergências internas da esquerda enfraqueceram o governo.
Por Vanessa Silva, do Portal Vermelho
Publicado 11/09/2013 15:03
Allende foi eleito em 1970 por uma coalizão de partidos de esquerda agrupados na Unidade Popular (UP), formada pelos partidos Socialista (PS) e Comunista (PC) que divergiam entre si a respeito de qual deveria ser a “via chilena ao socialismo”. “A UP apostava na conquista do poder executivo e legislativo, na participação popular, e no desenvolvimento da economia por meio da nacionalização das áreas econômicas estratégicas, para então iniciar o processo de transição ao socialismo”, esclarece Elisa. Ao discutir os meios, tais divergências resultaram no enfraquecimento do apoio ao governo Allende “principalmente onde ele tinha o maior respaldo: entre os setores populares”, ressalta a pesquisadora.
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Portal Vermelho: O governo de Salvador Allende representou uma estratégia de construção do socialismo pela via democrática, sem rompimento da ordem constitucional. Quais foram as dificuldades que Allende encontrou para conciliar as diversas tendências dentro da esquerda?
Elisa de Campos Borges: Bom, o PS era internamente dividido em grupos que discordavam entre si da possibilidade da realização da transição ao socialismo pela via não armada. Allende era o defensor da ‘via democrática’ enquanto Carlos Altamirano, que era da chamada ala radical e um defensor da via armada e do modelo cubano de revolução. Altamirano é eleito Secretário Geral em 1971. Neste momento, o conflito de Allende com o presidente do PS passa a ser explícito. A atuação do PS, a partir deste momento, será de organizar um poder popular radicalizado e que pudesse estar preparado para o conflito armado. Nem mesmo internamente o presidente Allende contava com o apoio dos seus partidários.
Já o Partido Comunista do Chile (PC) desde os anos 1960 tentava formular uma via própria e revolucionária para o país. Seus dirigentes afirmavam que era preciso analisar profundamente a constituição da sociedade chilena para propor um projeto de transição ao socialismo. Eram críticos às posições cubanas que defendiam que necessariamente a revolução na América Latina deveria ser pela via armada. Neste momento, a União Soviética já tinha aprovado a tese da coexistência pacífica, o que influenciou muito na formulação da ‘via não armada’ do PC Chile. Como afirmava o advogado e escritor Volodia Teitelboim era possível construir o socialismo ‘sem um banho de sangue’. Ou seja, para o PC era razoável construir a transição ao socialismo consolidando uma força político-social hegemônica por meio de uma política de massas. Tanto que para o PC a atuação nos movimentos populares era principal ‘tarefa’ de um militante político.
Como estas disputas contribuíram para debilitar o governo Allende?
Durante o governo da Unidade Popular os dois projetos de revolução se enfrentavam a partir de duas consignas: “avanzar sin tranzar” do PS e “consolidar para avanzar” do PC. Para o Partido Socialista era necessário avançar no processo de nacionalizações e de organização do poder popular sem fazer qualquer concessão ao centro político ou mesmo à direita. Ao mesmo tempo em que era preciso prepará-los militarmente. Já o PC adotava uma postura mais conciliatória e de acúmulo de forças para seguir no processo de implantação do programa da UP, até porque, o governo não tinha maioria no parlamento e contava com uma oposição explícita do judiciário.
Essa disputa refletiu no dia a dia do governo da Unidade Popular. Mesmo nos momentos de maior vulnerabilidade do governo, com ataques do centro e da direita, os discursos dos militantes e dos partidos socialistas e comunistas não apresentavam unidade. Enquanto o PC concordava e apoiava o presidente Allende a sinalizar pela abertura de diálogo com setores opositores, os socialistas clamavam pela radicalização do processo. Nos movimentos populares esta questão se repetia. Na eleição da Central Única dos Trabalhadores, socialistas e comunistas formaram chapas concorrentes. Em Santiago, dentre outros motivos, esta divisão acabou possibilitando a segunda maioria a Democracia Cristã (partido de centro e envolvido com ações golpistas dos opositores de Allende).
Mas como este processo se deu entre o movimento popular organizado?
Veja, na base os militantes socialistas e comunistas divergiam sobre a leitura do governo popular e da estratégia de atuação nos movimentos, o que afetou a organização de uma frente única de defesa do governo. Um exemplo claro está no processo engendrado pelo governo de estatização das indústrias ditas prioritárias para o sistema produtivo chileno. As indústrias estatizadas tiveram melhorias no sistema produtivo, nas condições de trabalho, nos salários, etc. Com todos esses avanços, os trabalhadores queriam que as indústrias em que trabalhavam fossem estatizadas, independente do grau de prioridade do governo. Mas como o governo nunca conseguiu aprovar uma lei de estatização das indústrias, o que requeria um processo lento e cuidadoso para respeitar a legislação que abria brechas para estatização. No entanto, os próprios trabalhadores e setores do P.S acabavam ocupando indústrias exigindo do governo a sua estatização. Carlos Altamirano apoiava explicitamente essa conduta, enquanto Salvador Allende pedia aos trabalhadores e partidários da UP que tivessem calma com o processo. Não era possível, dentro da proposta do governo, romper com a institucionalidade de uma só vez. Uma onda de ocupações de indústrias ocorreu durante os anos de 1972 e 1973, forçando o governo a estatizar algumas que não estavam no planejamento original do governo e, em outras, negociar a desocupação da indústria. Assim, um dos grandes problemas era conjugar as expectativas dos setores populares (que em diversos momentos eram estimulados por militantes da linha “avanzar sin tranzar”) e os limites do processo.
Como a direita agiu diante disso?
Quem se aproveitou da falta de unidade entre a esquerda foram a direita e o centro político que viam uma possibilidade de enfraquecer o governo e de articular ofensivas dos setores patronais para se contrapor aos movimentos populares. Então as divergências entre PS e PC acabaram por enfraquecer o governo principalmente onde Allende tinha o maior respaldo: entre os setores populares.
Claro que isso não justifica nenhum pouco o golpe que a democracia chilena sofreu em setembro de 1973, mas demonstra que é preciso unidade entre a esquerda não somente para ganhar eleições, mas, sobretudo, após a vitória eleitoral para dar seguimento à implantação de projetos de mudanças.
Sendo mais específicos, como, a seu ver, o Partido Comunista do Chile atuou no governo Allende?
De forma resumida, o PC atuou de acordo com suas convicções presentes no programa do partido, ou seja, acreditando que era possível uma transição onde a luta armada não era uma questão fundamental e decisiva. No entanto, é importante frisar que a linha do PC não era mais pela “via pacífica” (meados dos anos 1960) e sim pela “via não armada”, ou seja, cabia dentro do projeto político a atuação mais radical de mobilização social. Historicamente o Partido Comunista teve uma importante atuação de participação eleitoral e parlamentar. Mesmo nos momentos em que vivenciou reveses políticos continuou a trilhar o caminho do parlamento. Por isso, também foi tachado por setores de esquerda como um partido reformista. Ao mesmo tempo, se dedicava a aumentar a sua influência nos movimentos populares, inclusive, nos programas do PC nota-se uma questão extremamente importante: o êxito eleitoral deveria ser reflexo do êxito da atuação do partido nos principais movimentos populares. E o Partido Comunista tinha uma grande votação até o golpe. Chegou inclusive a ser o partido mais votado entre a esquerda.
No governo Allende, o PC foi leal ao presidente e ao projeto político enfrentando inclusive situações onde tiveram que discutir com sua base política que era necessário avançar no processo com certa cautela, uma vez que não possuíam maioria no sistema político e enfrentavam muitas resistências de setores econômicos nacionais e internacionais.
Ao mesmo tempo, essa lealdade e a sua tendência em manter a hegemonia em determinados movimentos populares não os permitiram perceber ou colocar entre suas prioridades, que, em um processo como o da UP “novas” formas de organização popular certamente poderiam ser articuladas. Isso o levou a criticar as ‘novas experiências’ de atuação popular que possuíam um discurso mais radicalizado ou que não tinham os comunistas entre os seus participantes. No geral, a atuação do Partido Comunista foi de colaborar ao máximo com o governo da UP. De fato, nota-se, ao analisar os discursos da época, que os comunistas acreditavam no projeto, diferentemente de muitos socialistas.
Podemos dizer que a edificação de um poder popular no país tem ainda hoje consequências nos protestos estudantis, na luta camponesa, na organização sindical…?
Essa questão não posso responder diretamente. Teria que pesquisar sobre as organizações sociais nos dias atuais e sua posição em relação à experiência chilena dos anos 1970.
Mas me parece que, o fato do Chile ter vivido por um lado, a experiência de um governo popular e democrático que ampliava direitos e incluía a população mais carente e, por outro, um Estado Autoritário que excluía, torturava, sequestrava, assassinava e privatizava os setores públicos, influencia as pautas de alguns movimentos populares na atualidade.
O sistema educacional, previdenciário, econômico, político, cultural dentre outros, atuais no Chile segue um modelo imposto pela constituição de 1980 do Estado Autoritário. Após o início da chamada transição à democracia, o país não realizou uma constituinte ou uma reforma nos principais dispositivos da lei máxima do país. Deste ponto de vista, as reivindicações hoje questionam as balizas colocadas pela constituição e pela ditadura ao Estado Chileno, que não foram alteradas substancialmente nos governos eleitos em democracia. O sistema excludente continua, na essência, o mesmo.
E quanto à herança repressora no país?
Eu ainda fico estarrecida com a presença dos blindados de guerra e com o número de oficiais do exército acompanhando manifestações populares no país. É impressionante como o sistema autoritário ainda faz parte do Estado.
Na minha opinião, o Chile ainda precisa rever a sua constituição e tornar o seu sistema político mais democrático. É preciso iniciar mudanças a favor da inclusão, da participação e assegurar direitos e serviços públicos aos chilenos.
Será um processo difícil porque até hoje a população ainda é muito dividida. Basta lembrar as manifestações no dia da morte de Pinochet, assim como na eleição de Piñera em que partidários de Pinochet comemoravam o retorno da direita política à presidência do país. Também não sei até que ponto setores da Concertación, sobretudo do Partido Socialista quer de fato uma mudança, no sistema político. Aguardemos as eleições deste ano e os seus desdobramentos.