Chile: Golpe abriu caminho para neoliberalismo na América Latina

“Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição.” Estas foram as últimas palavras antes de Salvador Allende se suicidar quando o Palácio de la Moneda foi bombardeado pela Força Aérea. Quarenta anos depois do golpe, qual o seu legado para a América Latina?

Por Vanessa Silva, do Portal Vermelho

Palácio de la Moneda sendo atacado pela Força Aérea chilena

“O golpe de Pinochet inaugurou na América Latina o que depois ficou conhecido como neoliberalismo”, ressalta o historiador, professor da Universidade Estadual Paulista e do Programa San Tiago Dantas de Relações Internacionais da Unesp, Unicamp e PUC/SP, Luis Fernando Ayerbe.

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Vencedor do Prêmio Casa de las Américas de 2001 na categoria Ensaio Histórico-Social pelo livro Estados Unidos – América Latina: a construção da hegemonia, Ayerbe observa que alguns governos progressistas da América do Sul, principalmente, chamados muitas vezes de moderados, aprenderam com o governo Allende que “uma coisa é o programa que você defende e outra é a capacidade de governabilidade que você tem”.

Portal Vermelho: Salvador Allende optou por um caminho que foi o da nacionalização dos recursos do país. Este método perdeu força na América Latina diante da onda neoliberal da década de 1990 ou ainda segue presente?
Luis Fernando Ayerbe: A questão da nacionalização do cobre, por exemplo, que é um recurso estratégico do Chile, foi aprofundada no governo Allende, mas o processo já vinha antes. O governo militar não privatizou o mineral porque ele fornecia recursos estratégicos, servindo, inclusive, como alavanca de recursos para o Estado. O golpe de Pinochet inaugurou na América Latina o que ficou conhecido como neoliberalismo e foi o precursor das reformas liberais na América Latina. Depois do Chile veio a Bolívia com Paz Estenssoro e o processo na Argentina e no Brasil, que tinham como característica principal a ideia de privatização e a ideia de que o Estado deveria sair de setores estratégicos e econômicos. Inclusive, no governo Fernando Henrique falou-se da privatização da Petrobras.

De fato a partir da década passada, houve na América Latina um processo em que os governos mais populares retomaram a ideia de que o Estado deveria ter um maior poder de regulação. No caso da Venezuela, por exemplo, a PDVSA [Petróleos de Venezuela SA], que é a maior empresa petroleira do país e que continua nas mãos do Estado, teve um papel muito importante no financiamento de projetos populares, na política exterior do governo Chávez.

O ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ao pontuar que aprendeu com o processo chileno, ressaltou que a experiência bolivariana é pacífica, mas não desarmada, em um contraponto a Salvador Allende que optou por não armar o povo. Na sua opinião este debate ainda se faz presente?
Atualmente colocar esta perspectiva não parece razoável. A Venezuela é um caso muito particular. Nós temos que ter claro qual é a situação do país. Chávez passou pelo golpe em 2002, pela greve petroleira, por um plebiscito que propunha sua destituição. Então a ameaça externa se colocou mais claramente para ele, o que não acontece nos casos de Brasil e Argentina, por exemplo, que não têm esta necessidade para defender seus governos.

A questão do governo de Allende era outra. O Chile, diferentemente de Cuba, tem fronteira com diversos países que viviam momentos de radicalização política: Argentina, Uruguai, Bolívia. Então, se esta experiência socialista por via eleitoral desse certo seria um estímulo para uma radicalização maior na região. Daí o apoio dos Estados Unidos ao golpe.

Outra questão é que na Europa, naquela época, a experiência italiana do eurocomunismo era forte. O Partido Comunista Italiano colocava a perspectiva de fortalecimento de uma alternativa ao capitalismo, mas pela via eleitoral e os comunistas tinham muito apoio. O governo dos Estados Unidos considerava que se desse certo esta experiência pela via pacífico-eleitoral, isso seria um exemplo também para a Europa.

Por isso o governo Allende era visto como uma mau exemplo que deveria ser interrompido.

Diante deste quadro, como avaliar o movimento estudantil no país?
O movimento estudantil do Chile vem se fortalecendo e Michele Bachelet já se comprometeu com a causa, caso ganhe as eleições presidenciais. Lá a privatização da educação foi avassaladora. Não é como no nosso caso que temos um ensino público forte. No caso do Chile é um sistema que foi privatizado [durante o governo de Pinochet]. O movimento lá trabalha para recuperar o setor público como elemento importante na educação superior. É um movimento progressista. Não é um caso de boicote ao sistema político, mas é opositor ao [presidente Sebastian] Piñera que é um conservador.

Vemos na América Latina um recrudescimento da contraofensiva da direita a governos progressistas na região. Que lição fica do exemplo chileno para nós hoje?
O que a experiência chilena nos deixou de fato é que a esquerda aprendeu com o passado que uma coisa é o programa que você defende e outra é a capacidade de governabilidade que você tem. Vemos isso em governos como o de Lula, quando se cobrou uma radicalização. Um presidente eleito que se propõe a trabalhar por uma agenda que é de esquerda tem que ser pragmático. Alguns setores que governam a América do Sul aprenderam com o passado que de alguma forma estes governos devem saber lidar com a diversidade.

Agora o problema que se coloca claramente não é a questão de desestabilização no Paraguai ou em Honduras [países que recentemente passaram por golpes parlamentar e de Estado, respectivamente] e sim a Aliança do Pacífico, que está sendo promovida a partir de Chile, Peru e México e que está sendo apresentada principalmente como uma alternativa ao eixo bolivariano [da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América – Alba] e da Unasul. Então, de repente, aparece um bloco de países que apostam no mercado, que têm boas relações com os Estados Unidos. Isso fazendo frente a países que tomam distância dos estadunidenses e são mais intervencionistas no Estado. Então para mim é isso que está sendo colocado. Não tanto a questão da desestabilização da direita e dos governos, mas a ideia que está aparecendo outro eixo de integração com países liberais.

Jacques Chonchol, que foi ministro da agricultura de Allende, em entrevista, afirmou que um dos problemas da Unidade Popular de Allende à época é que não dimensionaram que “a mudança das mentalidades é um processo cultural e ético complexo, que não caminha no mesmo ritmo das mudanças econômicas ou puramente técnicas”. Olhando para a América Latina hoje, acredita que temos, ou que algum país tenha, condições de caminhar efetivamente para a construção do socialismo ou ao menos de uma sociedade mais justa amparado pelo povo, sobretudo pelas classes médias?
Certamente houve uma melhoria da condição de vida dos mais pobres com os governos progressistas da América do Sul, há também uma política exterior mais autônoma com relação aos Estados Unidos e que busca que a América do Sul tenha consenso com relação a intervenções externas.

Agora do ponto de vista de um avanço substantivo interno em termos sociais e distributivos, eu não vejo isso como algo que vai muito além do que já aconteceu. Principalmente vendo países grandes como Brasil e Argentina. Os avanços do governo Chávez agora estão freados por um problema de governabilidade. Maduro está enfrentando uma série de desafios que tiraram, um pouco, o ímpeto que havia com Chávez de promover a integração através da Alba e está mais voltado para sua agenda interna.

Então penso que chegamos a um momento não de esgotamento, mas de limite do que poderia ser feito dentro destes processos. E um avanço substancial para mim não está colocado diante dos atores atuais. Então penso que não haverá grande avanço na agenda das reformas de setores populares.