Camila Vallejo: Estudantes retomam Allende, um ícone chileno

Durante muito tempo, as forças progressistas chilenas trataram a figura de Salvador Allende como um ícone. Ressaltavam suas qualidades pessoais e humanas, louvavam sua atitude heroica na ocasião do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, lembravam-se dele como o chefe de Estado que morreu com as armas em punho. Celebrações como essas, contudo, nublavam as ambições – e conquistas – do governo da União Popular (UP), uma coalizão que juntava de comunistas a sociais-democratas.

Por Camila Vallejo Dowling*, no Le Monde Diplomatique Brasil
Salvador Allende denuncia, na ONU, a ação desregrada das multinacionais e as ações desestabilizadoras dos Estados Unidos contra seu governo/ Foto: AP

Assim, as manifestações estudantis de 2011 – as mais importantes do Chile desde o retorno à democracia em 1990 – e a emergência de numerosos movimentos sociais (sindicatos, ecologistas etc.) por todo o país [1] chacoalharam a esquerda. Trouxeram à ordem do dia a necessidade de transformações estruturais profundas e da ampliação dos horizontes daquilo que é possível exigir: não somente uma educação “gratuita e de qualidade”, mas também os meios de obtê-la, como a reforma tributária, a renacionalização do cobre e, principalmente, o fim do modelo neoliberal inscrito na Constituição de 1980 – aprovada durante a ditadura pela convocação de uma assembleia constituinte. Novamente, as representações de Allende tomaram as ruas. Mas, dessa vez, não se tratava de louvar um ícone: os manifestantes afirmavam se reconhecer no projeto político que o líder encarnava e ainda encarna.

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Allende chegou ao palácio presidencial La Moneda em 1970, após três tentativas eleitorais fracassadas. Militante socialista, sempre trabalhou pela convergência das forças populares opositoras às forças imperialistas e à oligarquia. Em uma América Latina dilacerada pelas guerrilhas, Allende propunha uma “via pacífica” em direção à transformação social, enquanto seu próprio partido, logo depois do Congresso de Chillán, em 1967, abria mão da via institucional pela luta armada.

Essa visão distinguiu Allende e permitiu-lhe iniciar um ambicioso programa político: “Triunfamos com a missão de expulsar definitivamente a exploração imperialista, acabar com os monopólios, realizar uma reforma agrária profunda e digna desse nome, controlar o comércio de importação e exportação e nacionalizar o crédito. Esses pilares sustentarão o progresso do Chile, criando o capital social capaz de impulsionar nosso desenvolvimento”, declarou no palanque da Federação dos Estudantes da Universidade do Chile por ocasião de sua vitória.

Os mil dias da UP constituem, ao mesmo tempo, um processo inédito de abertura política e um grande sacrifício para o povo chileno. Durante esse período, partidos políticos, sindicatos, cordões industriais (órgãos autogestionados por trabalhadores) e comitês de abastecimento e controle de preços (Juntas de Abastecimiento y Precios, JAP) uniram forças para fazer eclodir um poder popular capaz de responder às tentativas de desestabilização do país por parte do capital estrangeiro e dos interesses imperialistas.

A experiência da UP não fracassou: foi interrompida. E a figura de Allende não é a de um presidente idealista que deixou como legado um processo político condenado. O ex-presidente representa a audácia política de afirmar a modernidade do projeto de transformação revolucionária da sociedade não somente no Chile, mas em todo o continente. Grande parte da América do Sul tomou essa audácia emprestada, ainda que em outro contexto, marcado por outras relações de forças geopolíticas. Cada avanço dos governos progressistas os aproxima cada vez mais de Allende.

Cronologia

4 de setembro de 1970
Candidato da Unidade Popular (UP), Salvador Allende é eleito presidente do Chile com 36,3% dos votos.

22 de outubro de 1970
Tentativa de sequestro do general legalista René Schneider, que não resiste aos ferimentos.

26 de outubro de 1970
A eleição é ratificada pelo Congresso.

4 de novembro de 1970

Allende assume e põe em prática as “quarenta medidas do governo popular”.

15 de julho de 1971
Nacionalização do cobre.

Dezembro de 1971
Primeira grande mobilização das “panelas vazias”, orquestrada pela direita.

Outubro de 1972
Graças à mobilização popular e aos esforços empregados, a crise é superada. Allende inicia um giro mundial que o levaria à tribuna das Nações Unidas para denunciar os ataques ao seu governo, notadamente pelos Estados Unidos.

Março de 1973

A UP obtém 43,4% dos votos nas eleições legislativas.

Junho de 1973

Nos Estados Unidos, o Relatório Church revela as atividades desestabilizadoras da Internacional Telephone & Telegraph (ITT) e da Agência Central de Inteligência (CIA) no Chile. No dia 29 de junho, um regimento de artilharia se rebela e toma o palácio do governo: é o tanquetazo (com tanques e outros veículos pesados), ação que teria servido como um ensaio…

Agosto de 1973
A Democracia Cristã denuncia a natureza “inconstitucional” do governo da UP.

11 de setembro de 1973
Golpe de Estado conduzido por Augusto Pinochet, com o apoio de Washington.

* Vice-presidente da Federação dos Estudantes da Universidade do Chile (Fech) 2011-2012. Blog: camilavallejodowling.blogspot.fr

[1] Ler Victor de la Fuente, “En finir (vraiment) avec l’ère Pinochet” [Acabar (de verdade) com a era Pinochet], La Valise Diplomatique, 24 ago. 2011. Disponível em: ; e Hervé Kempf, “Au Chili, le printemps des étudiants” [A primavera estudantil no Chile], Le Monde Diplomatique, out. 2011 (nota da redação).