Clarín x Mercurio: os soldados de Allende e Pinochet na imprensa
No começo da década de 1970, as bancas de jornal eram a representação da batalha ideológica que dividiu o Chile. Os diários mais tradicionais faziam oposição ferrenha ao projeto da Unidade Popular do presidente Salvador Allende, mas este tinha também seus defensores, sobretudo em publicações voltadas ao público operário, que cresceram justamente por apoiar o governo.
Por Victor Farinelli*, no Opera Mundi
Publicado 10/09/2013 19:51
Naqueles anos não havia meio termo. Os meios de comunicação que interessavam ao público eram os que tomavam partido na disputa entre governo e oposição. Entre tantos que fizeram sua trincheira de um lado e de outro, dois jornais foram os que mais se destacaram: Clarín, pelo lado allendista, e El Mercurio, entre os que defendiam Pinochet.
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Estas são as histórias dos dois diários hegemônicos daquele Chile debatia entre “a revolução democrática através de um socialismo impulsado pelo voto popular”, proposto por Salvador Allende e apoiado pelo Clarín, e “a necessidade de tirar o país da rota do marxismo internacional”, como reclamava El Mercurio. Debate que durou até a chegada do golpe, depois do qual somente um deles sobreviveria.
Firme junto ao povo
Se na Argentina o nome Clarín está ligado à defesa do golpe de Estado e da posterior ditadura daquele país, no Chile, pelo contrário, ele significou o último bastião em defesa da constitucionalidade.
Criado em 1954 pelo jornalista Darío Sainte Marie, o Clarín começou como um vespertino que tentou ser uma alternativa de esquerda para os grandes jornais da época. Fracassou na primeira tentativa, após dois anos de insistência, mas logo foi refundado, quando Sainte Marie conseguiu a ajuda financeira de Víctor Pey, um empresário espanhol que chegou ao Chile em 1939, refugiado da Guerra Civil Espanhola como tantos outros resgatados por Pablo Neruda, no famoso navio Winnipeg.
O novo Clarín, de Sainte Marie e Pey, passou a ser um matutino focado em temas sindicais e de apoio a causas sociais diversas, com uma linguagem mais popular e um slogan adequado ao público que o jornal buscava: Firme junto ao povo (“firme junto al pueblo”, no idioma original).
Após se consolidar como jornal popular, passou a dar mais espaço a temas políticos, mas sem abandonar seu estilo e público cativo. Os artigos sobre política escritos por Volpone (pseudônimo de Darío Sainte Marie) seriam, segundo alguns historiadores chilenos, fundamentais para aproximar os trabalhadores da opção presidencial do socialista Salvador Allende. “Allende foi eleito em sua quarta tentativa de chegar ao poder. Foi crescendo em quantidade de votos a cada eleição, e esse crescimento, em certa medida, acompanha a evolução do Clarín. Ademais, Allende ganha finalmente em 1970, quando o Clarín já era um dos diários mais vendidos do Chile”, recorda o historiador e ex-ministro da Concertação Francisco Vidal.
A eleição de Allende marcou a história do Clarín, transformando-o definitivamente no porta-voz midiático da Unidade Popular. Segundo o jornalista Alberto Gamboa, chefe de redação do Clarín, Allende tinha uma relação muito mais próxima com os donos e os jornalistas do seu diário que com os do La Nación, que pertencia ao Estado e cujos diretores eram nomeados por ele. “Todas as quartas e sextas-feiras, depois do expediente em La Moneda, Allende visitava a redação e se reunia com Sainte Marie, Pey, comigo e com o editor de política, Eugenio Lira Massi. Às vezes aparecia de manhã também, de surpresa, e participava das reuniões de pauta”, lembra Gamboa.
Após as marchas organizadas pela direita contra o presidente, o jornal publicava manchetes irônicas, abusando da sua linguagem popular e instalando adjetivos usados até hoje por algumas gerações de chilenos – como “momios” (“múmias”) para qualificar os manifestantes de direita que iam às ruas contra Allende.
A cumplicidade com a Unidade Popular levou o jornal a ser um dos alvos naturais do golpe de Estado. A última edição do Clarín, do dia 11 de setembro de 1973, nunca chegou às bancas. Naquela manhã, os jornalistas foram surpreendidos durante a reunião de pauta por soldados do exército. Todos foram levados ao Estádio Nacional, inclusive o chefe de redação, Alberto Gamboa, e posteriormente ao Campo de Concentração Chacabuco, no norte do Chile, onde alguns permaneceram presos por mais de três anos – Gamboa, por exemplo, foi solto em março de 1976.
O jornalista Alberto Gamboa/ Foto: Victor Farinelli – Opera Mundi
Anos mais tarde, no final da década de 1980, Gamboa e outros colegas do Clarín lançaram a revista Fortín Mapocho, de oposição à ditadura, que recriava o estilo irônico do antigo Clarín. Foi nessa publicação que Gamboa escreveu uma das mais célebres manchetes do jornalismo latino-americano: “Correu sozinho e chegou em segundo” (“¡Corrió solo y llegó segundo!”, em sua versão original), em alusão à derrota de Pinochet no plebiscito de 1988, que decidia entre a continuidade ou não do seu regime.
Entre os jornalistas do Clarín, o que teve o final mais sombrio foi o editor de política, Eugenio Lira Massi, morto em 1975, por um gás asfixiante, quando vivia no exílio, em Paris. Há suspeitas da participação de agentes da DINA no caso, já que dois deles estavam na cidade naquele mesmo dia. Entre os donos do diário, Darío Sainte Marie permaneceu exilado em Madrid até a sua morte, em 1982, e Víctor Pey não saiu do Chile até 1977, quando regressou à sua Espanha natal, após o fim da ditadura franquista.
Hoje, aos 97 anos, Pey espera o desfecho de um processo que iniciou no CIADI (Centro Internacional para Arbitragens de Disputas sobre Investimentos, órgão do Banco Mundial), no qual já tem uma sentença a seu favor, obrigando o Estado chileno a pagar uma indenização de US$ 10 milhões. A decisão é de 2008, mas desde então os advogados que representam o Estado tem conseguido recursos diversos para adiar a execução da multa, a que Pey garante que usará para reativar o diário.
Diário de Agustín
A outra cara daquela batalha midiática pelo poder é a do homem que comandava o jornal mais tradicional e a principal empresa de comunicações do Chile. Agustín Edwards, dono do El Mercurio, o mais antigo jornal em língua espanhola do mundo – fundado em Valparaíso, em 1827.
A oposição de Edwards ao governo de Allende começou no dia seguinte à vitória eleitoral do socialista. O empresário viajou às pressas para os Estados Unidos, dizendo que só voltaria quando Allende fosse deposto. Naquela mesma semana, ele conseguiu se reunir com importantes autoridades norte-americanas, incluindo o diretor da CIA Richard Helms e o secretário de Estado, Henry Kissinger – encontro que teria originado a célebre frase de Kissinger, de que “não se deve deixar um país ser dominado pelo comunismo devido à irresponsabilidade do seu povo”.
O dono do Mercurio cumpriu sua promessa, não só permaneceu vivendo em Miami até 1974, como também conseguiu uma ajuda financeira da CIA, que injetou US$ 2 milhões nos cofres da sua empresa, ponta-de-lança da oposição contra o governo de Allende e defensora insistente da intervenção militar até que ela finalmente chegasse.
Nos anos posteriores ao golpe, os três diários pertencentes à empresa de Edwards (El Mercurio, o tabloide Las Últimas Noticias e o vespertino La Segunda) foram o principal aliado midiático da ditadura, ajudando a ocultar os casos de tortura e execuções políticas.
Em 2009, o Programa de Liberdade de Expressão da Universidade do Chile lançou o documentário “O Diário de Agustín”, que conta a história de como o El Mercurio atuou durante o governo de Allende e a ditadura de Pinochet. Em 2012, houve uma polêmica a respeito do filme, quando o canal estatal TVN comprou os direitos de exibição e logo congelou sua divulgação, o que levou as organizações de direitos humanos a acusarem o governo de Sebastián Piñera de operar para ocultar as denúncias contidas no filme contra Agustín Edwards e sua empresa.
Veja o documentário:
*Victor Farinelli é correspondente do Opera Mundi em Santiago