Moniz Bandeira coloca em xeque "ataque químico" na Síria
Em entrevista ao jornal O Estado de Minas, no último domingo (1º/9), o professor Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira é um dos que coloca em xeque os relatos sobre o ataque químico na Síria.
Publicado 03/09/2013 14:05
Doutor em ciência política, professor aposentado de história da política externa do Brasil e autor de vários livros premiados sobre relações internacionais, ele não tem dúvidas em afirmar que o ataque da madrugada de quarta-feira foi “montado” por opositores ao governo de Bashar al-Assad.
Diferentemente dos países árabes, onde ocorreram mudanças de regime na chamada Primavera Árabe, o conflito na Síria envolve questões mais complexas e confronta interesses estratégicos de diversos atores.
É dado como certo que algum tipo de arma química foi utilizado no ataque realizado nos subúrbios de Damasco. No entanto, há incertezas sobre quem foi o responsável por desferir a operação.
Os Estados Unidos e seus aliados atribuíram imediatamente a autoria do bombardeio ao governo de Al-Assad, que sempre negou o uso de tais armas. Além da própria Síria, Rússia e Irã acusam os rebeldes pelo crime.
As imagens e declarações a respeito do massacre encheram os noticiários. As informações mais veiculadas relatam 1,3 mil mortos, centenas delas crianças. O credito dado é sempre “de acordo com ativistas”, ou seja, um lado do conflito. Às vezes, mais responsavelmente, fala-se em centenas de vítimas.
Segundo a reportagem do Estado de Minas, os dados "mais confiáveis" sobre o caso até agora é a da organização Médicos sem Fronteiras, que relatou 355 mortos. Embora não haja dúvida de que uma matança ocorreu, esse fato evidencia que nas guerras não existe imparcialidade, mas apenas versões. E o questionamento dessas versões é saudável.
Moniz Bandeira não tem dúvidas em afirmar que o ataque da madrugada de quarta-feira foi “montado” pelos bandos armados que procuram derrubar Al-Assad, com o objetivo de mobilizar a opinião pública internacional e justificar uma intervenção externa no país. Nesta entrevista dada ao jornalista Pablo Pires Fernandes, o professor discorre sobre importantes aspectos que compõem o trágico xadrez do conflito sírio.
O ataque com armas químicas de 21 de agosto ocorreu, mas sua autoria é alvo de controvérsia. Quem acha que é o responsável?
Civis e crianças jamais podiam constituir um alvo militar para o uso de armas químicas pelo governo da Síria. Porém, configuram excelente alvo midiático para exploração dos rebeldes e terroristas, por meio da mídia ocidental, sobretudo depois que o presidente Barack Obama declarou que o emprego de armas químicas pelo governo do presidente Bashar al-Assad seria a “linha vermelha” para que os Estados Unidos interviessem militarmente na Síria. E o cenário para a intervenção, está claro, foi perfeitamente montado, uma vez que o Exército do governo de Al-Assad, desde junho, vem vencendo os insurgentes em sucessivas batalhas no país.
Isso, portanto, seria usado pelos EUA para outra intervenção no Oriente Médio.
Sim. Ao longo dos 235 anos de existência, desde sua fundação em 1776, os EUA estiveram 214 anos em guerra. E agora o presidente Obama tem uma “razão propagandística” para fazer outra, ademais das que ainda enfrenta, sem sucesso, no Afeganistão e Iraque. O ataque com armas químicas, mostrado em vídeos, constituiu outra manipulação, uma tragédia fabricada, como os anteriores massacres em Hula, Homs e outras cidades, com fins de propaganda, com a cumplicidade da mídia, contra o regime da Síria, de forma a encorajar a intervenção aberta das potências ocidentais, como ocorreu na Líbia. Todos os governos, inclusive o do Brasil, estão informados da assistência que os serviços de inteligência estrangeiros prestam aos insurgentes e a “política dos massacres” é enfatizada pela mídia internacional de forma a favorecer algum tipo de intervenção do Ocidente. A necessidade de "razão propagandística" para justificar as guerras tem grandes antecedentes históricos recentes.
Pode dar alguns exemplos?
Em 22 de agosto de 1939, Hitler explicou ao Alto Comando da Wehrmacht, que ele daria “uma razão propagandística” para invadir a Polônia. Agentes da Gestapo, vestidos com fardas de soldados da Polônia, invadiram um posto militar da Alemanha e aí começou a Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1970, durante a guerra do Vietnã, os EUA manipularam um ataque a um navio americano a fim de obter do Congresso autorização para bombardear Hanoi. O ex-secretário de Estado, Henry Kissinger posteriormente reconheceu a fraude que permitiu ao presidente Lyndon Johnson induzir o Congresso a aprovar a Tonkin Resolution, que equivaleu a um cheque em branco para escalar a guerra do Vietnã. E em 2002, o presidente George W. Bush atacou o Iraque sob o pretexto de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa que na realidade não existiam. Hitler deu o exemplo para atacar a Polônia e os outros copiaram.
Para que ocorra uma intervenção externa em um país, as leis internacionais determinam que a ação deve ser aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU. Porém, o Reino Unido e os EUA falam na possibilidade de agir sem este aval. Como fica a questão da legalidade?
A doutrina de responsabilidade de proteger, criada pela ONU em 2005, parte do princípio de que a soberania não é um direito, mas um privilégio, e que, se um Estado violar os preceitos da boa governança, a comunidade internacional está moralmente obrigada a revogar a soberania da nação e assumir o comando e o controle do Estado transgressor. É óbvio que tal princípio visa jogar poeira nos olhos da humanidade. Na prática, só pode ser aplicado pelas grandes potências contra as nações mais débeis, que não dispõem de poder de defesa e retaliação. A conclusão, óbvia, é a de que todos os Estados devem armar-se, inclusive, tanto quanto possível, até com artefatos nucleares, como poder de dissuasão, tal como fazem o Irã e a Coréia Popular. Tivessem Saddam Hussein e Muamar Kadafi armas nucleares certamente não teria ocorrido a invasão do Iraque em 2003 nem o ataque à Líbia em 2011.
Os rebeldes que lutam para depor Al-Assad são uma miríade de facções e grupos autônomos. Quem são eles?
Os ditos rebeldes são, em larga maioria, salafistas, militantes da Irmandade Muçulmana, terroristas da Frente Al-Nusra, grupo vinculado a Al-Qaida no Iraque, jihadistas de vários países árabes, mercenários recrutados pela Arábia Saudita, Catar e outros Emirados. Mais de um milhar de jovens islâmicos radicalizados foram da Europa Ocidental e, também, dos EUA para lutar na Síria. Matthew Olsen, diretor do US National Counterterrorism Center, em Aspen, no estado do Colorado, disse que “a Síria tornou-se no mundo o principal campo de batalha dos jihadistas”.
Como a questão religiosa interfere no conflito?
Os fatores da guerra na Síria são os mais diversos, em que as questões religiosas se entrelaçam com interesses econômicos e geopolíticos (a Bacia do Mediterrâneo e suas jazidas de petróleo), interesses hegemônicos dos EUA e de Israel, o conflito com o Irã, divergências e competição entre Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Esses fatores, que são extremamente complexos, tratei em meu livro A segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos – Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e Oriente Médio, que deve ser lançado em setembro.
Como o conflito altera as relações entre Rússia e EUA?
A Síria converteu-se em uma Segunda Guerra Fria, na qual se evidencia a confrontação de dois blocos, formados, de um lado, pelos EUA, União Europeia, petro-monarquias do Golfo Pérsico, Turquia e Israel; e, do outro, pela Rússia, China e Irã, apesar da diversidade de interesses. Apesar de não reconhecerem, a Rússia continua como o principal adversário estratégico para os EUA. E a queda do governo de Al-Assad permitiria suprimir sua presença no Mediterrâneo, onde mantém duas bases navais na Síria (Tartus e Latakia); cortar as vias de suprimento de armas para o Hezbolá, baluarte dos xiitas contra as investidas de Israel no Sul do Líbano; conter o avanço da China sobre as fontes de petróleo; isolar completamente e estrangular o Irã, com a consequente eliminação do governo islâmico (xiita). O resultado da equação, ao mudar completamente o equilíbrio de forças no Oriente Médio, seria o estabelecimento pelos EUA e União Europeia da full-spectrum dominance, que é o pleno domínio territorial, marítimo, aéreo e espacial, bem como a posse de todos os ativos do Mediterrâneo, região de vital importância estratégica. A rivalidade entre os EUA e a Rússia – e também a China – vai continuar.
Como pode ser uma eventual transição?
É difícil prever qualquer coisa no Oriente Médio, uma região onde a fé e as crenças predominam, comandam a mentalidade da maioria das populações, quaisquer que sejam as etnias. O que estamos assistindo é, na realidade, uma tragédia grega, em que todos os atores sabem o que vai ocorrer, todos dizem querer evitá-la, porém, cada qual faz exatamente o que é necessário para que ela aconteça.
Quais as chances de o conflito se espalhar para a região, envolvendo outros atores?
Todos esses atores de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, já estão envolvidos e o risco é de que explosão provoque conseqüências ainda piores, se efetivada a intervenção do Ocidente na Síria.
O que um ataque ocidental pode mudar no conflito?
É difícil prever. Não há bombardeios "cirúrgicos". Só posso imaginar que, se o governo de Al-Assad cair, o radicalismo islâmico – Al-Qaida e outros grupos terroristas – será o vencedor. E o que provavelmente os EUA, França e Reino Unido desejam é redesenhar o mapa do Oriente Médio e favorecer a hegemonia de Israel na região.
Como analisa o papel da mídia no conflito?
A mídia internacional – sobretudo as redes de TV BBC, CNN, Al-Jazira e outras, dos mais diversos países – está servindo como instrumento do Psyops Group do Pentágono. E o propósito das operações de guerra psicológica (PSYOP), conforme definido pelo U.S. Army Civil Affairs and Psychological Operations Command (USACAPOC), assim como do MI6, o serviço de inteligência do Reino Unido, é desmoralizar o inimigo, causando dissensões e agitação nas suas fileiras, e convencer a população a apoiar as forças dos Estados Unidos e de seus aliados. A estratégia para desencadear a guerra contra a Líbia consistiu em construir, através da mídia, um imaginário em que o ditador Muamar Kadafi estava na iminência de massacrar os civis que protestavam contra seu regime em Bengazi. O mesmo aconteceu contra a Síria e, como ainda não produzira o resultado desejado, manufaturou-se o ataque com armas químicas, gás sarin etc, exibido em vídeos através dos canais de TV e das redes sociais.
Fonte: O Estado de Minas