Aurélio Santos: A pergunta que nunca lhe fiz
Muitos foram vítimas silenciosas da exploração e da opressão, vítimas submissas por julgarem ser esse o seu destino. Alguns, enfrentando corajosamente o medo, confrontaram a voz do poder com o poder da sua voz, exigiram justiça e dignidade, ajudaram a construir a História dos dias de hoje.
Por Aurélio Santos*, no jornal Avante!
Publicado 01/08/2013 11:10
Poucos tiveram força, determinação e abnegação bastante para gastar a vida por inteiro numa luta incessante pelo quebrar das grilhetas que tornam os homens menos livres.
Foi isso que fez deles homens diferentes, os tornou grandes e justamente os inscreveu na História dos homens.
Percorro a exposição no pátio da Galé sobre o centenário do nascimento de Álvaro Cunhal onde quase tudo me é bastante familiar. Fomos companheiros de luta na clandestinidade e na Revolução, durante décadas.
Detenho-me na reconstituição do que foi a sua cela na Penitenciária de Lisboa. Espaço exíguo, onde por um ainda mais exíguo postigo gradeado se escoa uma ténue luz. Pergunto a mim mesmo: Como se resiste, incomunicável, durante sete longos anos? Por que se resiste?
À memória chegam-me as suas palavras numa entrevista, após a fuga de Peniche: “Certamente é possível enlouquecer ao ter consciência de que, adiante, nada mais existe, que te encontras preso e não podes fugir desses ásperos muros, pó de cimento imóvel, fugir dos surdos passos do vigilante que anda no corredor”.
Como se resiste, por que se resiste? O sótão das memórias devolve-me agora os comentários feitos por comunistas espanhóis que com ele se encontraram clandestinamente, na casa do Penedo em Sintra, no fim da 2ª Guerra Mundial: “A sua extrema magreza impressionava, as orelhas pareciam transparentes. Vivia com imensas dificuldades, os comunistas portugueses tinham muitas dificuldades financeiras”.
E vem-me à lembrança aquela pergunta que nunca lhe fiz…
Conheci Álvaro Cunhal em Moscou após a fuga de Peniche. Não descobri nele vestígios por aquilo que seria uma compreensível amargura por tantos anos privado de tudo. Pelo contrário, sempre lhe vi uma natural e sincera afabilidade e uma profunda confiança na capacidade dos trabalhadores e do povo português no derrube do hediondo regime fascista que tão barbaramente o tinha tratado.
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Mais tarde, quando trabalhava na Rádio Portugal Livre em Bucareste, tive com ele contatos mais regulares. Cunhal era um homem de convicções fortes, com uma determinação e firmeza inquebrantáveis, mas paralelamente existia nele um profundo conhecimento e compreensão pela complexidade e fragilidades da natureza humana. A sua visão arguta e abrangente da realidade permitiram-lhe sempre o gizar de caminhos que se revelaram um precioso e valioso contributo na vida do PCP [Partido Comunista Português].
Desde o primeiro dia em que o conheci que persistiu em mim a tentação de lhe perguntar: Álvaro, por que te tornaste comunista? À pergunta que nunca tive coragem de formular ele foi-me respondendo dia após dia, todos os dias, com uma firmeza e uma convicção que estão muito para além de uma opção ideológica. Só uma opção de vida e de generosidade as poderia justificar.
Recentemente alguém ao referir-se a Álvaro Cunhal afirmou: “o que torna os homens grandes não é o que fizeram por si ou para si, mas o que fizeram pelos outros”.
Álvaro Cunhal ajudou a abrir a estrada por onde um dia o sonho se tornará verdade, se fará real, por onde os homens libertos da sua condição de escravos dos novos tempos, se tornarão mais homens, porque livres.
Mais cedo do que tarde a História o confirmará.
Por esse legado de profunda coerência e inteira dedicação ao nosso coletivo partidário e ao povo português – obrigado Álvaro.
Obrigado, camarada.
* Aurélio Santos é membro do Partido Comunista Português