Brasil insere-se em contexto global de desafios estruturais
Continua nesta terça-feira (16) a Conferência Nacional “2003-2013: Uma Nova Política Externa”, organizada pelo Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais, composto por diversos partidos, instituições da sociedade e acadêmicos, e a manhã foi marcada pelas intervenções do embaixador Samuel P. Guimarães, secretário-geral do Itamaraty no fim do Governo Lula, do Professor Paulo Vizentini, da UFRS e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
De São Bernardo, Moara Crivelente para o Vermelho
Publicado 16/07/2013 17:53
Samuel Pinheiro Guimarães foi ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos e secretário-geral do Ministério de Relações Exteriores entre os anos de 2003 e 2009, ou seja, praticamente todo o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhando todo o investimento feito por ele na política externa brasileira soberana, autonomista e universalista.
O foco na cooperação internacional e no debate responsável sobre o papel do país no mundo, neste período, havia sido enfatizado também pelo ministro das Relações Exteriores Antônio Patriota, nesta segunda (15), na abertura da Conferência.
Em tom bem-humorado, Guimarães fez formulações críticas, mas também construtivas, sobre a política internacional e a postura construída e consolidada pelo país durante o Governo Lula e, posteriormente, pelo da presidenta Dilma Rousseff.
Enumerando desafios, falou da perspectiva econômica, defendendo que “não há, como gostam de pensar os neoliberais, um comércio livre”.
Guimarães explica o impacto de um processo rápido de aceleração do desenvolvimento, com maior competitividade para as empresas, com a capacidade de produzir mais bens e bens mais baratos. Nesse sentido, o ministro fala da importância da geração de conhecimento e métodos que permitam a produção a custos mais baixos daqueles ou de novos bens. “É isso o desenvolvimento tecnológico, não é outra coisa, é dependente das empresas, e a Petrobras está aí para provar que isso pode ser feito nas empresas estatais, com grande eficiência”, diz.
“É nas empresas que se verifica o desenvolvimento real, que permite maior eficiência das empresas privadas e das militares, das que produzem armamentos cada vez mais sofisticados. Um exemplo é o sistema de espionagem, altamente sofisticado, assim como os aviões não tripulados (drones), desenvolvidos por empresas, no caso, de produtos militares”, ressalta.
E “como a nossa economia é uma profundamente penetrada pelo capital internacional, o grau de competitividade da nossa economia não depende dos nossos operários, mas das máquinas que estão instaladas no Brasil. A deficiência de produção é da máquina, não dos impostos ou da mão-de-obra”. O que sai da fábrica da Volkswagen daqui é menos sofisticado do que sai da Alemanha; os custos da mão-de-obra e sua produtividade aqui são bastante razoáveis, o que foi comprovado por estudos da OCDE, ressalta o ministro.
“O que fazer, então, para que nossos produtos tenham capacidade de competitividade internacional?”, pergunta Guimarães, ressaltando em sua resposta o poder de financiamento do Estado (o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social é maior que o Banco Mundial e o Banco Interamericano juntos), que pode forçar o desenvolvimento e de maquinas melhores; e o poder de compra do Estado (sentido em que a Organização Mundial do Comércio, por outro lado, restringe demais as políticas tarifárias).
Guimarães também mencionou desafios para a integração regional, tema aprofundado na mesa realizada à tarde, com a participação de Valter Pomar, representando o Foro de São Paulo, da Professora Maria Regina Soares de Lima (da UERJ) e de Marco Aurélio Garcia, assessor-chefe da Assessoria Especial da Presidência da República.
Ainda assim, falou da União de Nações Sul-americanas (Unasul) como um bloco integracionista, de políticas sociais e econômicas, com alternativa à ação das potências (“leia-se, Estados Unidos”).
“A Unasul tem tomado decisões que têm superado as diferenças de estratégia econômica, por exemplo, entre os membros da Aliança do Pacífico e os que não são membros” disse Guimarães, quando perguntado sobre o desafio posto à integração regional pela participação do Chile e da Colômbia de foros e blocos de livre-comércio com os EUA.
Por outro lado, o papel poderia ser mais estrutural, por exemplo, no caso dos golpes, como no Paraguai, que foi suspenso do bloco, “mas depois há eleições, colocam de volta alguém no governo eleito, e fica tudo bem. Quer dizer, lavou, tá novo”, protestou. Emblemático também foi que a Organização de Estados Americanos (OEA), por causa dos EUA, e a Associação Latino-americana de Integração (Aladi), por causa do México, nunca condenaram o golpe de Estado no Paraguai, ponderou Guimarães.
Multilateralismo e os desafios da governança
Outra problemática mencionada por Guimarães foi a do Conselho de Segurança da ONU, conforme lembrada também pelo ministro Patriota, no dia anterior (om um défice profundo de representação mundial em uma estrutura concebida em outro contexto), e a instrumentalização gravíssima dos princípios humanitários pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), como foi o caso da Líbia, com a intervenção militar investida não de objetivos de defesa da democracia, mas para a derrubada de um regime.
Hoje, afirma o ministro, “temos uma grande preocupação com a paz, o desarmamento e a não-proliferação do mundo, mas em geral busca-se o desarmamento dos países que já são desarmados, que não são qualquer ameaça. O Brasil, que eu saiba, não tentou invadir ninguém, mas ‘deve ser desarmado, para que não ofereça perigo nenhum’. Os países precisam ser capazes de se defender, de dissuadir aqueles que desejariam ‘intervir’”.
Além disso, os recentes episódios sobre o programa de espionagem norte-americano, revelado pelo ex-agente da Agência Central de Inteligência Edward Snowden, e o emprego de agências de subversão dos EUA nos países árabes e outros países são patentes na diplomacia estadunidense.
A política de mudança de regime, contrária aos princípios de não intervenção e autodeterminação no Direito Internacional, é assumida pelas autoridades estadunidenses com desfaçatez, e para esses fins há agências especializadas que financiam movimentos de oposição nacional, como a “National Endowment for Democracy” (Fundo Nacional pela Democracia) e a Fundação Soros, lembra Guimarães.
Porém, importante ressaltar também que “a análise do declínio da sociedade estadunidense é absolutamente relativa”, ressalva Guimarães. “A soma dos PIBs dos emergentes não chega a 80% do norte-americano, assim como a soma de ogivas nucleares, de drones, de submarinos; no caso brasileiro, também, a inteligência é de grande eficiência, com grande capacidade de previsão de eventos”, diz, com ironia.
Políticas comerciais e balanças
A OMC, em maior escala, também fundamentou a grande estratégia dos EUA de formar uma economia global, com desregulamentação, redução de barreiras ao comércio e serviços, normas comuns aos Estados, tudo para menor regulamentação das empresas e redução da presença do Estado.
“Mas o que acontece na prática é que o comércio internacional é organizado pelas multinacionais. Estima-se que cerca de 40% do comércio mundial é feito dentro das empresas, todo regulamentado. Por isso, não existe livre-comércio, ele é todo organizado pelas empresas: a produção, a exportação, a divisão de mercados”, e assim por diante, diz Guimarães.
Isso ocorre em todas as áreas industriais, mas cabe aos Estados disciplinar a balança de pagamentos. A conta de serviços, de royalties, de juros, de lucros, de remessas, de turismo, entre outras, são todas deficitárias, e a única superavitária é a balança comercial. “Estamos atraindo capitais produtivos na área de serviços, mas que não geram receita, e sim remessas, o que é uma situação muito grave, porque as empresas instaladas no Brasil são levadas a exportar”, explica.
“Podíamos regular a balança de turismo, podíamos ter articulado a indústria naval do Mercosul, mas tudo foi combatido na época dos governos neoliberais. Tivemos sorte, no Brasil, e tivemos sorte porque o governo do Fernando Collor terminou, já que a agenda era profunda no prosseguimento das políticas neoliberais, freadas pelo [ex-presidente] Itamar Franco, embora retomadas mais tarde”, critica.
Reforma dos meios de comunicação e temas ambientais
No âmbito das pautas sociais e políticas que ganharam relevo recentemente, Guimarães mencionou a reforma democrática dos meios de comunicação e a preocupação com o ambiente, em tom preocupado com a inclinação da sociedade.
“O controle dos meios de comunicação é essencial para o controle das classes sociais pela classe hegemônica, pelo estabelecimento de conceitos, de visões de mundo. Por exemplo, a mídia fez uma campanha extraordinária, sistemática para fazer a população acreditar que o regime venezuelano era ditatorial, o que assenta bases para uma intervenção para mudança de regime, ou seja, de golpe de Estado”. Por isso, a democratização essencial, prioritária, afirma.
Já os movimentos ambientais, “nem sempre nacionais, não protestam contra termelétricas, que são muito mais poluentes, mas protestam muito contra hidrelétricas, mais rentáveis e menos poluentes. Por exemplo, no projeto de construção de Belo Monte, houve uma enorme redução da área de alagamento após a consulta com os movimentos que protestavam, com populações locais”, diz o ministro, que mantém uma ponderação sobre a inclinação da sociedade.
Entretanto, o desenvolvimento industrial depende da energia, que depende de unidades que geram eletricidade; as fontes renováveis são todas ainda muito caras, que ainda têm efeitos ambientais, diz Guimarães.
A população urbana brasileira hoje chega a 85% da população, afirma. “Então, não é possível permitir que grupos muito reduzidos, muitas vezes manipulados, dificultem o desenvolvimento econômico e social. Por isso, é muito curioso que haja tanto empenho em torno da mesma questão”.
“Não só eu acho que houve um progresso, uma redução importante nos danos ambientais, mas por que não há o mesmo empenho em relação a outros temas, diferente das hidrelétricas, temas ainda piores?”, questiona.
Desafios globais em contexto de crise
O Professor Paulo Vizentini também fez considerações abrangentes sobre as dinâmicas internacionais contemporâneas, criticando a postura da cidadania brasileira e a perspectiva, construída pela mídia dominante, com que contemplam o mundo.
“Cria-se uma autoimagem de tranquilidade, porque estamos um pouco deslocados em termos geopolíticos. Talvez a onda não bata aqui com força, mas trará impactos. Os atores políticos e acadêmicos aqui não levam em conta a gravidade do cenário internacional”, critica o professor, mencionando os efeitos da crise internacional desde 2008.
Por um lado, temos a questão da “financeirização”, mas também o capitalismo atingiu um centro grau de maturidade, e se expande para outras áreas do planeta que não estavam integradas nele, afirma o professor.
“É preciso um estudo mais aprofundado sobre esse fenômeno; o capitalismo está dentro da China, mas o Estado chinês tem mostrado capacidade pra administrá-lo; o espaço das antigas repúblicas soviéticas, espaços em desenvolvimento, na África e no Oriente Médio. Qual o impacto desse capitalismo internacional?”, pergunta.
Em tom de crítica do estudo desse fenômeno, o professor afirma: “Acho ainda muito pobre e politicamente orientada essa discussão do impacto do capitalismo mundial. Porque não voltar aos clássicos, como Marx, para estudar esse fenômeno? Há uma autocensura que me assusta na academia. Só chamar o capitalismo de capitalismo não nos leva a nada, ele é um fenômeno que está aqui e com o qual precisamos lidar”.
Como exemplo das limitações dessa perspectiva, Vizentini menciona a emergência da China, “pouco compreendida, mas que precisa ser decifrada, porque o dragão não tem um plano tão maquiavélico assim; tem uma visão mais flexível de onde quer chegar e isso tem impacto na realidade internacional”.
Neste sentido, conclui que a dificuldade pode estar na possibilidade de o sistema não ser mais suficiente flexível para dar conta das contradições, como quando a relação centro-periferia era mais clara.
“Isso está mudando, se desenvolvendo nessas conexões sul-sul, na formação desses novos espaços”. Para analisá-los é preciso entender quais são as políticas (não os discursos) implementadas, e analisar essa questão nos permitirá entender o contexto, diz o professor.
Política externa ativa e autonomista.
A nova política externa brasileira a partir de 2003 foi analisada por Vizentini de forma mais reflexiva, atribuindo ao papel do ex-presidente Lula e das suas características um papel de extrema importância: “A qualidade do homem é fundamental; Lula é o primeiro homem da classe trabalhadora a ocupar uma posição de mundo nesse país, e tinha uma capacidade de poucos de sensibilidade para os fenômenos sociais. Mais do que estudar, ele viveu esses fenômenos”, afirmou.
“Também é certo que chegou ao poder num mundo em transição”, complementa. Havia uma tendência, mas também uma contra-tendência, que permitiu novas alianças com áreas estratégicas, a emergência de regimes aliados e progressistas na América Latina e o desenvolvimento da África, de 54 Estados com uma complexidade enorme, ainda incompreendida, e a sua tendência se deve muito, sim, à chegada da China na região.
Por outro lado, ainda há contradições fundamentais na postura das potências com as quais governos como o brasileiro e outros governos progressistas têm buscado lidar. Por exemplo, há atores de fora do Brasil ditando a agenda nacional, e com frequência “até a Otan, que ocupa países na África e no Oriente Médio, tentam nos dar lições de direitos humanos; por que é que não arrumam a sua própria casa antes?”, pergunta o professor.
O limite entre o fator externo e interno é muito tênue, esse limite é cada vez mais difícil de ser estabelecido, e um desafio importante refletia-se na tendência “anti-Estado” herdada da luta contra a ditadura civil-militar, da influência francesa e da influência dos EUA. “A política externa independente foi algo que estava no bojo da discussão sobre o desenvolvimento, mas hoje as pessoas não têm opinião. Fortaleceu-se uma campanha contra política externa que se mantém, e nas manifestações, muitas das coisas que foram depredadas eram órgãos do Estado, como o Itamaraty”, opina.
No governo da presidenta Dilma Rousseff, “tínhamos a impressão de que as coisas já estavam estabelecidas e só precisavam ser institucionalizadas, ou consolidadas. Houve um aumento considerável, entretanto, da presença de agentes externos, com apoio grande da mídia nacional”, disse Vizentini.
No âmbito interno, a redistribuição de renda foi feita “dando aos pobres sem tirar dos ricos, mas os ricos não ficam menos nervosos por isso. Vai ter outro tipo de gente nos aeroportos, nos shoppings; essa mudança afeta e provoca reações”, afirmou. Essa melhoria de vida não foi acompanhada de um trabalho de politização.
Além disso, as manifestações de junho no país “mostraram que o governo não têm os aparelhos de informação (inteligência) necessários. Mostraram um despreparo na resposta, apesar de os otimistas acharem que isso inicia mais desenvolvimento, mais democracia e mais progresso, porém, a oposição não ficou na sombra, não ficou parada, novos discursos foram engendrados”.
“E essa tendência levará à derrubada do prestígio internacional do Brasil, à redução do desenvolvimento, e a política externa certamente será um dos alvos. […] Essa política externa não é só um patrimônio construído, é uma precondição para sairmos do estágio em que estamos e uma alavanca internacional, para que o nosso projeto de desenvolvimento global possa sobreviver” disse o professor.
Vizentini concluiu afirmando que as forças pró-desenvolvimento e anti-guerra precisam de sustentação. “A planilha de custo do capitalismo está se tornando inviável com a inclusão de toda a humanidade nos tempos modernos; em tempos de crise, não podendo ir para frente, fazia o caminho para trás”, o que precisa ser direcionado pela política progressista consolidada.
Movimentos sociais nas relações internacionais
Pedro P. Bocca, que representou o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), iniciou a sua contribuição afirmando que o Governo Lula tomou responsabilidade por pautas dos movimentos sociais, como previstas na agenda do Fórum Social Mundial, da campanha continental contra a Alca, contra a guerra no Afeganistão, entre outros.
O avanço das relações com relação à Palestina, também foi mencionado, embora Bocca tenha ressaltado uma “insuficiência”, ou a necessidade de uma postura mais firme contra Israel, com quem o governo continua realizando tratados comerciais, inclusive mediados no Mercosul.
No caso do Haiti, mencionado pelo ministro Patriota no dia anterior, Bocca disse que o país não precisa de soldados, “mas sim de médicos e professores”, e que o Brasil pode aprofundar a sua “solidariedade” com o país mudando a configuração da sua presença.
No combate a uma crise de representatividade política de certa forma disseminada pelo mundo, o representante do MST disse acreditar que, se o Brasil se propõe a ter uma política externa ativa e altiva (como definida pelo ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim), precisa construir espaço de participação institucionalizada da sociedade.
“Estamos vivendo um momento que a mundialização do capital traz também a mundialização da informação. Os movimentos sociais têm uma nova dinâmica de atuação, assim sendo, inclusive nas relações internacionais. Os coletivos têm as suas próprias secretarias de relações internacionais e suas relações enquanto organização, e isso mostra uma vontade de participação que vai além do âmbito dos governos”, ressaltou.
Para Bocca, não pode haver uma dependência no processo de transformação com a mudança baseada apenas nas instituições, e a sociedade precisa fazer parte desse progresso. “Precisamos aprofundar essa política externa e garantir a participação; […] Negros, mulheres, sem-terra, sem-teto, e não só o Itamaraty”, representam o Brasil, afirmou.
E sobre a mídia, Bocca ressaltou a necessidade de apoio aos meios alternativos de comunicação; “não basta só lê-los ou assisti-los, mas também ter um papel ativista na promoção deles”, tanto nacionais quanto latino-americanos.
Além disso, as universidades desempenham papel fundamental na integração latino-americana, para o representante do MST, “com passos concretos que ajudam a luta popular pela integração”. Bocca deu como exemplos diversas escolas e universidades de caráter regional, em Cuba, no Brasil e na Venezuela, de formação acadêmica generalizada e de formação de movimentos sociais, como a Escola Florestan Fernandes, no Brasil.