Questão de gênero
Já no texto introdutório a Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea as organizadoras apresentam uma questão que, embora fundamental, passa despercebida a muitos que atualmente se debruçam sobre os estudos em perspectiva de gênero no Brasil.
Henrique Marques-Samyn
Publicado 21/06/2013 16:45
Nem sempre as pesquisas inscritas nesse campo de investigação podem ser qualificadas como feministas, uma vez que não necessariamente estão comprometidas com a necessidade de advogar transformações políticas (a propósito, pode-se lembrar que Heleieth Saffioti já alertava contra certa tendência a adotar-se uma abordagem pretensamente “neutra”). Nesse sentido, é louvável que Virgínia Maria Vasconcelos Leal e Regina Dalcastagnè ressaltem que “o conceito de gênero não deve ser tão esvaziado a ponto de se perder a história das lutas feministas que proporcionaram a existência desse campo epistemológico”, sendo igualmente alentadora a constatação de que os textos publicados no volume — produzidos por professoras e pesquisadoras de diversas universidades brasileiras, com destaque para a Universidade de Brasília e a Universidade Federal de Santa Catarina — não negligenciam a dimensão política em suas reflexões sobre a literatura brasileira contemporânea.
Ampla análise
Merece menção a pluralidade de perspectivas teóricas e metodológicas que orientam os textos constantes do livro, bem como a diversidade de autoras e obras analisadas. Alguns dos artigos têm por objeto de estudo um conjunto reduzido de textos literários, ou mesmo uma única obra, assim produzindo uma leitura em profundidade do corpus selecionado. Esse é o caso do trabalho de Sandra Regina Goulart Almeida, que aborda um conto de Marilene Felinto (Muslim: woman) para tematizar o lugar das mulheres no mundo atual, orientada pelo “feminismo transnacional” proposto por teóricas como Ella Shohat e Gayatri Spivak; da leitura de Simone Pereira Schmidt para outra narrativa de Felinto, As mulheres de Tijucopapo, em conjunto com o romance de Conceição Evaristo Ponciá Vicêncio, interrogados por um olhar informado pela reflexão feminista acerca da intersecção entre gênero, raça e classe no Brasil; do texto de Adelaide Calhman de Miranda, que analisa a condição transexual da protagonista de Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna; do artigo de Edma Cristina de Góis, que problematiza a imposição de padrões estéticos corporais por meio da leitura de Por que sou gorda, mamãe?, de Cíntia Moscovich; do olhar sobre o conto Senhor diretor, de Lygia Fagundes Telles, proposto por Susana Moreira de Lima Bigio, enfocando os dispositivos de exclusão que incidem sobre as mulheres envelhecidas na sociedade de consumo; e do artigo de Bruna Paiva de Lucena sobre a cordelista Salete Maria da Silva, que não só representa uma voz feminina num meio tradicionalmente dominado por homens como também abre espaço em seus versos para a tematização da diversidade sexual. Abordando não a narrativa literária, mas a estética presente na produção da artista plástica Ladjane Bandeira, Ermelinda Maria Araújo Ferreira investiga as transformações nos modos de representação artística do corpo feminino, enfocando o afastamento das tradicionais visões androcêntricas.
Outros textos compilados no volume optam pela análise de um corpus mais amplo, ou mesmo por uma problematização panorâmica da situação atual da literatura brasileira. Com um conjunto de obras de cinco escritoras — além das já citadas Cíntia Moscovich e Elvira Vigna, também Livia Garcia-Roza, Adriana Lisboa e Stella Florence — trabalha Virgínia Maria Vasconcelos Leal, indagando de que modo uma leitura feminista pode revelar nelas um tratamento das questões associadas ao gênero; já Cíntia Schwantes lida com textos de Betti Brown, Caio Fernando Abreu e, novamente, Cíntia Moscovich e Conceição Evaristo, lendo-os como narrativas de formação que figuram protagonistas cujas trajetórias existenciais desafiam a normatividade convencional. Contemplando âmbitos mais dilatados de produção e recepção literária, Tânia Regina Oliveira Ramos toma como ponto de partida antologias que compilam textos de escritoras do século 21 para questionar, por meio dos dados biográficos nelas presentes, como se dá o processo de (auto)representação das escritoras na contemporaneidade; Regina Dalcastagnè apresenta uma vasta investigação que envolve desde a autoria até os processos de construção de personagens na literatura atualmente produzida no Brasil, envolvendo questões como gênero e raça de quem escreve, orientação sexual das personagens e recursos manejados para a representação do corpo feminino e da sexualidade, entre outras; Rita Terezinha Schmidt aborda o resgate das obras de autoras oitocentistas no âmbito do renovado interesse pela história da literatura, indagando pelas especificidades dos romances de Júlia Lopes de Almeida e Maria Firmina dos Reis; e Norma Telles empreende uma reflexão sobre a emergência na contemporaneidade de paradigmas contestatórios das perspectivas universalizantes, concedendo ênfase ao pensamento feminista, à linguagem e à literatura de autoria feminina.
Novas possibilidades
O texto que encerra o volume, assinado por Claudia de Lima Costa, poderia à primeira vista parecer deslocado, mesmo neste livro que trata precisamente de deslocamentos; em contraste com o que encontramos no restante do volume, este não se debruça sobre obras literárias contemporâneas, enfocando os debates em torno do sujeito no feminismo. Contudo, por apresentar uma reflexão teórica sobre o estado atual da questão, o texto sugere caminhos que podem ensejar novos olhares sobre a produção literária, considerando-se o impasse a que chegaram as teorias pós-modernas e pós-estruturalistas, devido ao esquecimento da materialidade; daí a necessidade premente de se promoverem discussões que possibilitem um renovado olhar sobre elementos olvidados, como a identidade e o conceito de experiência.
Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea tem, desse modo, o melhor dos desfechos: após uma valiosa coletânea de textos que interroga em profundidade as produções mais recentes e o estado atual da literatura brasileira, suscita novas possibilidades de questionamento, capazes de determinar futuros rumos para a reflexão em torno de obras literárias a partir de enfoques feministas.
(*) Henrique Marques-Samyn é escritor e pesquisador da UERJ.
O livro:
Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal (orgs.). Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea, Vinhedo (SP), Editora Horizonte
Fonte: Rascunho – O jornal de literatura do Brasil