Rachel Moreno: Controle social não é censura
A questão do controle social da mídia, levantada como uma das demandas da 1ª. Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) tem provocado polêmica e deturpação de seu significado.
Por Rachel Moreno*
Publicado 11/06/2013 11:40
Logo após a conferência, a grande mídia, que se retirou na última hora dela, fez um seminário, patrocinado pelo Instituto Milenium e, desde então, rebatiza o controle social de “censura”, pretendendo a ele se contrapor por defenderem “a liberdade de expressão”, por vezes apresentada como “direito humano à liberdade de expressão comercial”
Proibição/inconstitucionalidade do controle?
Mais recentemente, a ministra-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Helena Chagas, afirmou numa entrevista publicada pela revista Meio e Mensagem que a Constituição brasileira impõe a regulação da mídia, mas impede qualquer controle sobre o seu conteúdo.
Com essa declaração, Helena Chagas sanciona a confusão estabelecida entre “censura” e “controle social da mídia”, adotando a deturpação do sentido que os grandes meios querem lhe associar.
Entretanto, a nossa Constituição nada fala sobre “controle social de conteúdo”. Garante a liberdade de expressão – que nós também defendemos. De qualquer modo, curiosa com o caminho encontrado por outros países que têm esse controle estabelecido em lei, com relação à imagem da mulher nos meios de comunicação, fiz uma pesquisa tentando entender a fundamentação e a forma que lhes deu origem e consistência. E descobertas interessantes reforçam a minha crítica à declaração tanto da Helena Chagas quanto dos grandes meios de comunicação em nosso país.
O estabelecimento do controle social e da liberdade de expressão
Os 12 países cuja legislação referente ao controle social da imagem da mulher na mídia foi analisada em A imagem da mulher na mídia – Controle social comparado – União Europeia, Estados Unidos, Itália, França, Canadá, Suécia, Inglaterra, Espanha, México, Peru, Nicarágua, Argentina, Chile – são democracias estabelecidas e em nada contrariam a liberdade de expressão (ver, neste Observatório, “Exemplos de lá e de cá“ e “Luta e coragem de ser feliz“).
Aliás, todos esses países reiteram como primeiro item de suas legislações de controle a determinação de que “é garantida a liberdade de expressão…”. E justificam esse controle social sobre o conteúdo (ou responsabilidade sobre o conteúdo) com base em alguns aspectos de sua Constituição – no que diz respeito à necessidade de se alcançar a efetiva igualdade entre homens e mulheres (como também reza a nossa Constituição); no respeito aos direitos humanos (“o direito à liberdade de expressão não pode ser exercido em detrimento dos demais direitos humanos”) que dizem implementar (assim como nós); e na necessidade de implementar os acordos internacionais dos quais eles (e nós também) somos signatários – como as Metas do Milênio (que incluem a igualdade entre os sexos) , a Convenção de Belém do Pará (contra todas as formas de violência de gênero), o acordo de Beijing (que se propõe a utilizar e envolver a mídia para conseguir avançar rumo a igualdade entre os gêneros), entre outros.
Alguns países justificam o controle social da imagem da mulher na mídia como política necessária à redução – e, se possível, erradicação – da violência contra a mulher. E, nossa Lei Maria da Penha, admirada mundialmente por sua amplitude e precisão, também recomenda o mesmo – ou seja, o envolvimento dos meios de comunicação neste esforço comum.
A União Europeia reitera
Recentemente, como relatado por Venício A. de Lima, a União Europeia mais uma vez reafirmou a necessidade de implementação de propostas, que não só incluem o controle social da mídia, como propõem um organismo oficial que exerça esta função, justamente para garantir a liberdade ampla de expressão e o pluralismo na e da mídia:
(2) o monitoramento permanente do conteúdo da mídia por parte de organismo oficial ou, alternativamente, por um centro independente ligado à academia, e a publicação regular de relatórios que seriam encaminhados ao Parlamento para eventuais medidas que assegurem a liberdade e o pluralismo;
(…).
Entre outros trechos e conclusões relevantes, Venício de Lima salienta ainda, do relatório final produzido, que:
Todos os países da União Européia deveriam ter conselhos de mídia independentes, cujos membros tenham origem política e cultural equilibrada, assim como sejam socialmente diversificados. Esses organismos teriam competência para investigar reclamações (…), mas também se certificariam de que as organizações de mídia publicaram seus códigos de conduta e revelaram detalhes sobre propriedade, declarações de conflito de interesse etc. Os conselhos de mídia devem ter poderes legais, tais como a imposição de multas, determinar a publicação de justificativas [apologies] em veículos impressos ou eletrônicos, e cassação do status jornalístico”(grifos meus) [ver, neste Observatório, “Depois de Leveson, a União Europeia“].
Lembrem-se – estamos falando da União Europeia, constituída de países e regimes democráticos. Ou será apenas o Brasil, defensor da democracia e liberdade de expressão?
Parece mais lógico entender que, como já aconteceu em outros momentos e vozes do governo, particularmente os ligados à área de comunicação, que a nossa ministra-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom) simplesmente produziu mais um discurso ao gosto dos poucos detentores da nossa grande mídia.
A liberdade de expressão e os direitos das crianças
Ocorre uma discussão similar em torno da regulamentação da publicidade infantil, também taxada de “cerceamento de liberdade da expressão” pelos representantes dos anunciantes e publicitários, desenhando assim mais uma disputa de significados e de interesses.
A legislação examinada no referido livro mostra também que, em função do alcance e impacto social da propaganda, ela também é objeto de regulamentação e controle nos países examinados. Mesmo naqueles, como o Canadá, em que há alguns anos se exerce o autocontrole.
A nossa autorregulamentação, reduzida ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), tem servido mais aos interesses da classe que representa do que da sociedade em geral. Contamos apenas, além dele, com os institutos de defesa do consumidor (Idec e Procon), além da classificação indicativa para TV.
E até mesmo a simples “classificação indicativa” (“este programa é recomendado para maiores de 12 anos”) também foi por eles taxada de atentado à liberdade de expressão e desrespeito à autoridade dos pais. E está em julgamento no STF, tendo sido condenatórios os quatro votos já proferidos.
Seminário internacional da ANDI – Comunicação e Direitos, em março de 2013, reiterou a relevância da proteção social à infância, bem como a importância e delicadeza da classificação indicativa (que só sugere a adequação do programa à faixa etária), e recomendou, entre outras medidas, a necessidade de elaboração e implantação de educação para a leitura critica da mídia nas escolas, como existe em inúmeros países.
No último seminário do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), no dia 15 de maio de 2013, no auditório do Ministério Público de São Paulo, o procurador de Justiça Vidal Serrano Nunes Junior, membro do Conselho Diretor do Idec, que participou do painel “Publicidade e Consumo Infantil”, trouxe um reforço à posição, argumentando que o Código de Defesa do Consumidor tem quatro diretrizes para a publicidade comercial, e que configura abuso aproveitar da deficiência de julgamento da criança.
Comentando também a reação do setor publicitário às tentativas de regulação da publicidade de alimentos, com um discurso associado a um suposto cerceamento de liberdades,Serrano frisou “a publicidade comercial não tem caráter artístico, nem informativo, razão pela qual não está inserida no âmbito da livre manifestação do pensamento, e sim na garantia da livre iniciativa. E se trata da exploração de atividade econômica com objetivo do lucro”.
A mensagem publicitária não pode conflitar com os direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal, como o direito à saúde e os direitos do consumidor. “O direito de publicidade não deve onerar essas disposições constitucionais”, declarou Serrano.
Tal visão é também compartilhada por Marco Antônio Zanellato (procurador de Justiça e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor – Brasilcon) que ressaltou a necessidade de se regulamentar a publicidade dirigida a crianças; assim como o procurador Mário Luiz Sarrubbo, ao afirmar que “somente existe Estado de Direito quando a sociedade exerce seus direitos”.
Mais argumentos, portanto, que contestam a visão segundo a qual qualquer forma de controle de conteúdo da mídia, ou da publicidade, representaria um cerceamento à liberdade de expressão.
Na verdade, estamos diante da percepção de que o direito incontestável à liberdade de expressão deve se estender a todos, e não pode ser exercido em detrimento dos demais direitos humanos.
Afinal, quem controla quem?
A mídia, ao invés de constituir um espaço para circular a informação e expressar e dar voz a múltiplos atores, ao tender à concentração, ao monopólio e ao oligopólio muda a sua função. E, assim, reduz o pluralismo ideológico e leva a conflitos de interesses, como afirma Anne Marie Cingras (Mídias e Democracia – o grande mal-entendido). E então, “mais do que promover a democracia, como um contraponto a outros poderes e interesses, na verdade os instrumentaliza – através da formação de valores e modelos, do estímulo ao consumo, da produção e utilização para fins políticos”.
Com isso, termina contribuindo para o bom funcionamento do sistema capitalista, fornecendo consumidores aos anunciantes, preconizando um estilo de vida com base no consumo e produzindo informação econômica mais centrada no interesse dos negócios do que na economia social, nas relações de trabalho ou nas consequências negativas das decisões dos homens de negócio. E desempenha assim um papel político.
E faz isso porque, como educadora informal sofisticada, cheia de recursos – de visuais a emocionais – a mídia é uma poderosa contribuidora para a formação da cultura, dos valores, da manutenção ou da modificação dos estereótipos e preconceitos – funções que perfaz com uma maestria, sutileza e sofisticação notáveis. Sanciona modas e modelos, pinça as novidades a que lhe convém dar visibilidade e as transforma em objetos do desejo generalizado, enquanto invisibiliza o que não lhe interessa destacar ou divulgar.
Noticia o que lhe convém e omite o que não lhe interessa salientar. E, quando não pode ignorar, noticia os fatos que contrariam os seus interesses já com a análise que deles deve ser feita pelo ouvinte/leitor/telespectador – sem diversidade, sem pluralismo, sem fornecer as diversas informações que lhe permitam formar um ponto de vista autônomo.
A professora, na sala de aula, reduzida ao quadro-negro, giz, caderno-e-lápis, alfabetiza mais lentamente do que os comerciais, com todo o seu poder de sedução, que introduzem os recém-catequizados no mundo do consumo. E assim as crianças aprendem a ler antes “Omo lava mais branco” do que “mamãe me ama”.
Os fabricantes gastam grandes somas em publicidade e visibilidade não só nos pontos de venda, como na mídia. Sabem que esse investimento lhes trará um retorno vantajoso. Se não, não precisariam desse desembolso. O “ambiente” se adapta ao cenário dos anunciantes, e a programação e noticiários preenchem a sua função de formadores de opinião e disseminadores de valores.
Com isso, uma pergunta não quer calar: isso tudo, afinal, não é controle? Não estaríamos diante do controle das pulsões, dos desejos, da estética dominante e dos valores dos que são atingidos pela mídia?
Diante desse imenso controle que eles exercem sobre o imaginário da população e sobre a cultura, não seria o controle de conteúdo que pleiteamos um simples contracontrole social, que visa defender a população desse poder incomensuravelmente maior, que a seduz?
Será, assim, o nome do que pretendemos, mais palatável?
*Rachel Moreno é jornalista, integrante da Articulação Nacional Mulher e Mídia, autora de A Imagem da Mulher na Mídia – Controle Social Comparado (com a colaboração de Tereza Verardo).
Fonte: Observatório de Imprensa