Miltinho: Mulher de Trinta

Os discos de Miltinho tomaram conta do ambiente na casa da Rua Rio Verde durante muito tempo.

Por Alberto Villas

Miltinho

Tinha eu dez anos de idade. No meu caderno nobre de capa dura fazia esboços de uma Brasília imaginária que ainda não havia para mim. Com um lápis Johann Faber número 2 traçava superquadras com blocos sobre pilotis e depois coloria a grama de verde no cerrado do planalto central do país.

Em Berlim, onde o muro era apenas uma ideia na cabeça, alemães corriam de um lado para o outro da cidade fugindo do comunismo. Já Havana era uma festa. Por aqui, Jânio com sua vassoura era eleito presidente da República e Eder Jofre, tranquilo e infalível, sagrava-se campeão mundial de peso galo.

O sonho de ser arquiteto e construir uma cidade dos sonhos mexia comigo, menino ainda. O medo do comunismo estava estampado no rosto de cada um dos cinco filhos na hora do jantar quando o meu pai nos repassava as notícias do Repórter Esso que ouvira no rádio. Rádio que também tocava música. De manhã, de tarde e de noite.

O meu coração, pequeno ainda, já balançava entre aquela menina loirinha da casa branca na Rua Lavras em frente ao Colégio Marista e a vizinha moreninha tão linda do andar de baixo. Era uma vida que engatinhava ainda mas dividida entre a arquitetura, o comunismo e o primeiro amor, a primeira paixão. Ah, e a música!

Com meus dedos finos de Joãozinho e Maria mal conseguia localizar no dial do rádio o que queria ouvir. Mas me lembro bem agora que sempre parava naqueles primeiros ruídos da banda The Quarrymen vindos do Cavern Club lá de Liverpool. Foi naquele rádio GE enorme de madeira que ouvi pela primeira vez Brenda Lee entoando I’m Sorry e Buddy Holly cantando Girl on My Mind. Eu pegava o dicionário Português-Inglês/Inglês-Português do MEC e ficava traduzindo, imaginando que garota era aquela que estava in my mind, que não saia do meu pensamento. A loirinha da Rua Lavras ou a moreninha do andar de baixo?

Para o meu pai o som não era só a harpa paraguaia, o violão de Dilermando Reis e o Rei do Baião. Ele espalhava pela casa música para os nossos ouvidos. Aos dez anos não gostava do que ele gostava. Achava Dilermando Reis envelhecido pro meu coração de estudante e Luiz Gonzaga cafona com sua Kalu, com aquele tal de “tira o verde desses óios di riba deu”. Mas confesso que parava para ouvir Dalida cantando Ô Sole Mio e Teixeirinha – outra paixão do meu pai – com o seu dramático Coração de Luto. Aquilo me impressionava.

O embate entre eu e meu pai acirrava quando de um lado eu imitava Elvis Presley com It’s Now or Never e ele vinha com Sylvinha Teles e seu Amor em Hi-fi, com Nelson Gonçalves vociferando Negue!

Mas tudo isso, o comunismo, a arquitetura, o primeiro amor, o sole mio, o verde desses óios di riba deu, o amor em hi-fi e o coração de luto ficou esquecido quando meu pai chegou em casa com o disco Um Novo Astro, de Miltinho. Não se ouviu outra coisa naquela casa até o final do ano, até dezembro chegar, ele virar o disco e colocar pra rodar Assis Valente cantando “anoiteceu, o sino gemeu e a gente ficou feliz a rezar”.

Miltinho tomou conta do ambiente na casa da Rua Rio Verde durante muito tempo. A cada ano ele vinha com uma novidade, um novo long-play daquele cantor de bigodinho. O Diploma do Astro, Poemas do Adeus, Miltinho é Samba, Poema do Olhar, meu pai ia colecionando vinis uns em cima dos outros. Quantas e quantas vezes ouvimos Ideias Erradas, Ultimatum, Fica Comigo, Menina Moça, Fechei a Porta e Triste Fim. Quantas?

Cinquenta e poucos anos depois, eu brasileiro confesso que nunca poderia imaginar que estaria aqui hoje na maior cidade da América do Sul, nesses tempos deliciosos de Tiê, Tulipa, Jeneci, Malu e Pethit ouvindo cada um desses long-plays de Miltinho transformados em CDs que chegaram hoje cedo pelo correio dentro de duas caixinhas. Só aquela canção que diz “Você, mulher/Que já viveu/ Que só sofreu/Não minta/Um triste adeus/Nos olhos seus
/A gente vê/ Mulher de trinta” eu já ouvi oito vezes.

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Miltinho: Mulher de Trinta

Fonte:CartaCapital