Anistia aos comunistas goianos; entre a dor e o reconhecimento
Uma das mais importantes e simbólicas atividades da programação do 53º Congresso na União Nacional dos Estudantes (UNE), o Ato em Defesa da Memória, Verdade e Justiça aconteceu no último dia do mês de maio, a sexta-feira (31), na Praça Universitária, em Goiânia-GO.
Publicado 07/06/2013 23:19
Na ocasião, a entidade estudantil, em parceria com a Comissão Nacional de Anistia e diversas forças políticas do movimento estudantil, tratou da temática de modo a homenagear o ex-líder estudantil Honestino Guimarães – morto por militares –, além de reconhecer a condição de anistiados políticos a Luiz Carlos Orro, Fábio Tokarski e Carol Stalin Leal.
O objetivo da solenidade foi de resgatar a história dos militantes perseguidos pela ditadura militar e cobrar o fim da impunidade dos agentes da repressão, responsáveis pelas torturas, mortes e desaparecimentos de políticos de esquerda no período ditatorial ocorrido entre 1964 e 1985. Com essas exigências, o ato foi precedido por uma passeata de quatro quilômetros, da Praça até o Centro de Convenções, local que recebeu a reunião.
Lá, a atividade teve início com um cortejo simbólico em homenagem aos mortos e desaparecidos goianos, organizado pela Associação dos Anistiados do Estado de Goiás (Anigo) e pela Comissão Goiana pela Verdade. Acompanhando o cortejo, ocorreram apresentações culturais do músico goiano Itamar Correia e do professor Reinaldo Pantaleão, ambos militantes de esquerda nas décadas de 60 e 70. Sob as palavras de ordem “pela abertura, pela abertura, dos arquivos da ditadura”, os estudantes saudaram a memória dos goianos que lutaram pela democracia no Brasil.
Em seguida, o presidente da gestão cessante da UNE, o acadêmico de Ciências Sociais da UFRJ Daniel Iliescu, abriu oficialmente o ato afirmando que sua geração assumiu a responsabilidade de resgatar a verdade histórica sobre o golpe de 1964. “Somos a geração que comprou a briga pela Memória, Verdade e Justiça, e que colocou esse tema no centro da agenda política do país”, disse. Para ele, os estudantes brasileiros se somaram à luta pelo fim da impunidade dos militares e são responsáveis por levar o assunto ao conjunto da sociedade brasileira.
A mesa do ato foi composta, além de Iliescu, pelo secretário Nacional de Justiça e presidente da Comissão Nacional de Anistia Paulo Abrão, pelo representante da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Gilney Viana e pelos membros da Comissão da Verdade da UNE Raisa Marques e Carlos Virtude. Também estiveram presentes o representante do DCE anfitrião (da UFG) Iago Montalvão, o representante da OAB-GO Egmar José de Oliveira e representantes das juventudes organizadas que compõem o espectro político da UNE.
Memória
Abrindo a primeira parte do ato, a apresentação preliminar do relatório da investigação do caso do desaparecimento de Honestino Guimarães, Iliescu criticou o que chamou de “permanência de vestígios do autoritarismo” ainda nos dias de hoje. “O cheiro de enxofre da ditadura continua pautando o nome de escolas, ruas e praças. Mas acabou a paz para aqueles que nos torturaram. Estamos na luta pela justiça”, avisou.
Raisa Marques, primeira a falar sobre o caso de Honestino Guimarães, disse que é preciso fazer um “acerto de contas” com o Estado brasileiro pelas perseguições e violências cometidas entre 1964 e 1985. Para ela, Honestino é um caso simbólico, e um exemplo de pessoa que lutou pela liberdade e que pagou um preço caro por isso. “Esse passado está vivo aqui, entre os militantes do Movimento Estudantil”, afirmou.
Já Carlos Virtude apresentou os objetivos do relatório sobre o caso Honestino. Segundo ele, o trabalho de pesquisa e resgate de evidências históricas procurou traçar uma biografia do militante goiano e ex-presidente da UNE, sobretudo de sua atuação no Movimento Estudantil. “Queremos manter acesa a memória de Honestino”, disse.
Em segundo lugar, houve um esforço de reunir fontes documentais que aprofundam o conhecimento sobre a atuação política e a perseguição sofrida pelo jovem militante. Por fim, procurou-se resgatar informações sobre o desaparecimento, com a finalidade de tentar descobrir o possível paradeiro dos restos mortais.
Força-tarefa
Não houve uma leitura do relatório completo, mas os membros da Comissão da Verdade da UNE fizeram recomendações. Segundo eles, é preciso que a UNE lidere uma “força-tarefa” que reúna diversas comissões da verdade que se somariam nos esforços para descobrir o que de fato aconteceu com Honestino.
Além disso, sugeriram que se investigue com mais profundidade os indícios de que, possivelmente, o corpo de ex-dirigente estudantil estaria enterrado em um dos cemitérios clandestinos existentes no estado do Rio de Janeiro. Segundo Daniel Iliescu, o relatório será tornado público durante o congresso da União Estadual dos Estudantes de São Paulo, entre 14 e 16 de junho, na cidade de Ibiúna-SP, onde, em 1968, centenas militantes foram presos em congresso clandestino da UNE.
Verdade e justiça
Para Paulo Abrão, atos como o promovido no congresso da UNE são importantes para fazer o enfrentamento social de graves problemas ainda existentes no Brasil. “Precisamos superar a cultura do esquecimento e do silêncio. Precisamos superar as restrições vigentes às liberdades civis. Ainda há opressão contra a união homoafetiva, contra a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias. Ainda há criminalização dos movimentos sociais”, lamentou. “Os avanços dependem o engajamento das novas gerações”, provocou.
O secretário nacional de justiça lembrou que a primeira vez que a Comissão de Anistia realizou um julgamento fora do Palácio da Justiça foi no Conune de 2007, na UnB, e que isso foi um marco na luta contra os resquícios da ditadura. “Iniciamos um movimento de ruptura com o medo. Não temos medo de viver em liberdade!”, disse. Para ele, fazer mais um ato novamente em uma atividade da UNE representa um marco democrático na história do Brasil.
O representante da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Gilney Viana concordou, dizendo que a luta pela verdade se amplia através do trabalho da UNE. “Olhando para essa juventude nós resgatamos nossa esperança. A verdade e a justiça agora são bandeiras da UNE, da juventude e de todo o povo brasileiro”, comemorou. Ele também alertou para a necessidade de mobilizar cada vez mais a sociedade.
Para o representante da OAB, o advogado Egmar Oliveira, a Lei 6.683 de 1979 (Lei da Anistia) é um “entulho autoritário da ditadura”. “Naquela época a oposição apresentou um projeto alternativo que foi derrotado por quatro votos”, lembrou. “Havia regras para regular a sociedade e havia regras para regular o Estado. Mas não havia nenhuma regra que permitia aos agentes do Estado torturarem a abusarem sexualmente de homens e mulheres que discordavam de suas opiniões”, atacou ele.
Para o advogado, é preciso avançar para além dos relatórios produzidos pelas comissões da verdade. “É preciso punir os torturadores! É preciso mudar os livros didáticos!”, defendeu. Para ele, só a força da mobilização popular pode mudar a história do país.
Finalizando essa primeira parte do ato, os representantes das forças políticas presentes na mesa saudaram o ato e atacaram a ditadura militar e os problemas sociais e políticos ainda existentes no país. Daniel Iliescu anunciou ainda a inauguração da Comenda Honestino Guimarães, homenagem da UNE a figuras de reconhecido mérito no movimento estudantil e nos movimentos sociais. A 1ª medalha foi entregue solenemente ao presidente da Comissão Nacional de Anistia Paulo Abrão.
Caravana da Anistia
Em seguida, iniciou-se a 70ª Caravana da Anistia, do Ministério da Justiça. Após execução do Hino Nacional e exibição do curta metragem “Anistia 30 anos”, foram julgados três pedidos de anistia política de militantes do movimento estudantil goiano do período militar. O primeiro caso foi o do advogado e membro do Comitê Central do PCdoB Luiz Carlos Orro. A relatora Luciana Silva Garcia apresentou o caso protocolizado em 12 de abril de 2010.
Orro iniciou sua militância como estudante do Colégio Estadual Rui Barbosa, em Goiânia, no ano de 1974. Naquela época, com apenas 16 anos, sofreu sua primeira prisão por fazer panfletagem em defesa da democracia em sua escola. Em 1978, como estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Goiás (UFG), criou um grupo de estudos e ação política. No mesmo ano foi ao Rio de Janeiro participar da manifestação pela retomada da sede da UNE na Praia do Flamengo.
O comunista participou, em 1979, do Congresso de reconstrução da UNE, na cidade de Salvador – BA. Também ajudou na refundação o Centro Acadêmico de Jornalismo e outros da UFG. No mesmo ano ingressou formalmente no PCdoB, sendo eleito, no ano seguinte, vice-presidente regional (Centro Oeste) da UNE. Em 1984 sofre sua quarta prisão violenta, sendo enquadrado em inquérito policial com base na famigerada Lei de Segurança Nacional. Em decorrência disso, perdeu seu emprego de escriturário na empresa que trabalhava.
Segundo a relatora do processo, documentos oficiais comprovam o intenso monitoramento que Orro recebia por parte do Estado brasileiro. “A prisão do requerente, no mesmo mês da promulgação da Lei de Anistia, indicava claramente que a repressão à lideranças estudantis e militantes do PCdoB estava longe de arrefecer”, opinou Luciana Garcia. Ela ainda completou: “as diversas prisões, o intenso monitoramento sofrido, o processamento criminal demonstram que o Requerente faz jus a condição de Anistiado Político”.
Emocionado, Orro parafraseou o poeta comunista chileno Pablo Neruda. Confesso que vivi, confesso que lutei e confesso que não me arrependo de ter lutado!”. O recém anistiado defendeu o enfrentamento aos resquícios da ditadura. “A Avenida Castelo Branco, aqui em Goiânia, deveria se chamar Avenida Liberdade”, disse. Para ele, continuar a homenagear os militares que aplicaram o golpe de 1964 é um contrassenso histórico.
Fato curioso e emocionante no discurso de Orro foi a leitura de um editorial do jornal do C.A. de Jornalismo da UFG que foi apreendido junto com ele na prisão que sofreu no ano de 1979. “Terrorista é a ditadura que desapareceu com Honestino Guimarães”, dizia o título do texto escrito pelo então estudante.
Lendo com emoção suas próprias palavras escritas contra o governo militar, o comunista informou que o material chegou às suas mãos apenas duas semanas antes, e que só então, 34 anos depois, pode reler o editorial às vésperas de um ato promovido pela UNE em homenagem, justamente, à memória de Honestino. Para finalizar, Orro leu poema de sua autoria em homenagem às mães dos mortos e desaparecidos, e concluiu: “viva o Partido Comunista do Brasil, onde estou com orgulho a 34 anos”.
Tokarski
O segundo caso, relatado pelo conselheiro Virginius José Lianza da França, foi o do atual presidente do PCdoB goiano, Fábio Tokarski. O pedido foi feito junto ao Ministério da Justiça em 8 de abril de 2010, com base na Lei 10.559/2002. Antes de entrar no mérito do processo, França fez um longo relato do combate (inclusive armado) dos estudantes brasileiros contra a ditadura militar. Ele lembrou da ferrenha perseguição emplacada pelo regime autoritário ao movimento estudantil. “Logo que se instaurou o golpe militar, a Universidade de Brasília (UnB) foi invadida. A UNE foi posta na ilegalidade e o ME começou a ser perseguido pelos agentes da repressão”, afirmou.
Em seguida, apresentou a biografia de militância de Tokarski. O dirigente comunista é de uma família de agricultores do interior do Paraná, da cidade de Barbosa Ferraz. Chegou a Goiás com 17 anos de idade, em 1974, tendo seu primeiro contato com a política no Colégio Carlos Chagas. Ainda como secundarista, se aproximou dos grupos políticos de oposição à ditadura e atuou em campanhas eleitorais do MDB (Movimento Democrático Brasileiro).
No ano seguinte, ingressa no curso de Engenharia Civil da UFG, onde conhece o jornal “Movimento”, que lhe ajuda a se informar mais sobre a resistência ao regime. Tokarski passa a se dedicar, no fim da década de 1970, à luta pela anistia e à reconstrução dos movimentos estudantil e sindical. Ainda estudante, é eleito dirigente do Diretório Central dos Estudantes da UFG.
Em 1979, vai à Salvador para participar da reconstrução da UNE, e passa, a partir de então, a ser amplamente monitorado pelo Estado autoritário. Após a conclusão de sua graduação, o jovem Tokarski se torna professor universitário, e segue na militância sindical.
Segundo o relatório apresentado, “após ser reiteradamente classificado como: subversivo, comunista, amigo do movimento estudantil, presidente do sindicato dos professores, militante o qual não perde uma oportunidade de se manifestar contra a revolução, veio o anistiando a ser preso por duas vezes”. A primeira prisão foi efetuada em São Paulo, durante a participação de Tokarski em um curso de formação política do PCdoB. A segunda, em 1987 (após o fim formal da ditadura), foi em Goiânia, durante sua participação em passeata a favor dos operários da Capital.
O monitoramento e perseguição do militante comunista perduraram até o ano de 1988, como apontam os documentos anexados ao processo. “Das informações trazidas e extraídas dos presentes autos, foi o anistiando vilipendiado em sua intimidade, monitorado constante e diuturnamente por quase nove anos ininterruptos, sempre no intuito de ver-se vigiado e atentado na sua liberdade, o que de fato culminou a ocorrer em duas oportunidades”, apontou o relator.
Tokarski, emocionado, afirmou que a Caravana da Anistia resgata trechos que foram e continuam sendo omitidos pela mídia. “Não vivemos mais a ditadura militar, mas vivemos a ditadura dos bancos e dos grandes meios de comunicação”, denunciou. Ele lembrou as dificuldades dos anos de repressão, inclusive enfrentadas dentro de sua própria família.
“Meu pai, agricultor humilde, não entendia a luta que nós travávamos pela democracia. Numa tentativa de me afastar do perigo da violência dos militares, disse que eu deveria abandonar a militância ou sair de casa. Saí, e foi acolhido pelo professor da Universidade Católica, Silvio Costa, meu camarada presente aqui nesse auditório”, agradeceu. Em seu discurso, homenageou também o ex-reitor da PUC-GO, prof. Pedro Wilson Guimarães, que, segundo ele, “teve a coragem de falar da luta pela anistia dentro da universidade”.
Para concluir, Tokarski afirmou que vestígios da ditadura perduraram após a derrocada do regime. “Fui preso em 1987, senhoras e senhores, após o encerramento formal do governo militar. Ainda há heranças do autoritarismo na polícia militar, que a poucos dias reprimiu violentamente uma manifestação pacífica dos estudantes aqui em Goiânia”, lamentou. Ele finalizou dizendo que é “esse Brasil mais justo e soberano que começa a se construir pelos governos Lula e Dilma que traz novas motivações para continuar na luta”, e leu a letra da canção “Angélica” de Chico Buarque, homenageando as mães dos militantes perseguidos pela ditadura.
Encerramento
O último anistiado da noite foi o ex-militante do PCB goiano Carol Stalin Pires Leal. Como nos outros dois casos, a relatora Marina da Silva Steinbruch relatou a trajetória militante e as perseguições sofridas pelo comunista. Carol Stalin, morto em 1989, foi representado por sua filha, a professora Tatiana Leal, que emocionada falou sobre a trajetória do pai, que chegou a ser banido do Estado brasileiro, perdendo assim sua cidadania. “O ápice da violência contra os direitos da pessoa”, segundo palavras de Paulo Abrão.
Exilado no Chile, Carol Stalin foi novamente preso após o golpe do general Augusto Pinochet. Exilou-se novamente na Suécia, vindo a morrer em um acidente automobilístico no Brasil, em 1989, fato presente em documentos oficiais, comprovando que seu monitoramento se manteve mesmo após a Constituição de 1988.
O secretário nacional de justiça Paulo Abrão, em nome do Estado brasileiro, concedeu o título de anistiado político a todos os três requerentes, ao mesmo tempo em que formalizou o pedido oficial de desculpas a eles que foram vítimas da ditadura. “A anistia da democracia não é a anistia do esquecimento, a da lei 6.683, e sim, a anistia do resgate da memória e da verdade”, concluiu.
… a saudade
é arrumar o quarto
do filho
que já morreu…
(C.B.)
Do lamento da canção
vem a idéia bela e pungente
de que mãe se dá aos filhos
a cada um
aos pedaços.
Com a licença de todas as outras
vai a dedicatória desse dia das mães
àquelas mães em especial:
as mutiladas
as interrompidas
com rebentos delas arrancados
pedaços seus confiscados
em vinte e uma longas noites
da cruel tirania.
Vencidas as trevas
em dias que a democracia ilumina
sempre é preciso cantar
vivam Maria Rosa
Zuzu Angel
Dona Santa
Maria Campos.
Vivam seus filhos-heróis
Honestino
Stuart
Divino
Marco Antônio
e tantos outros
tombados na luta pela liberdade.
E em todo maio de todos os anos
há que ser lembrada a dor
dessas e de outras mães que já se foram
sem resposta dos filhos levados
postas no limbo da espera
por uma volta
uma carta
um pedaço de osso
um enterro digno
uma verdade, que seja.
Luiz Carlos Orro
12 maio 2013
De Goiânia, Paulo Victor Gomes para o Portal Vermelho