Mário Augusto Jakobskind: Esqueceram dos empresários
Causou estranheza o fato de a Comissão Nacional da Verdade ao apresentar um balanço sobre um ano de atividades dedicasse pouca informação relacionada com a participação do setor empresarial na ditadura. Para se passar o país a limpo será necessário ir fundo nessa questão, porque muitos apoiadores do regime de força hoje se apresentam como democratas desde criancinha, na prática enganando a opinião pública.
Por Mário Augusto Jakobskind*, no Direto da Redação
Publicado 30/05/2013 13:47
A área de mídia também merece uma investigação profunda, porque muitos veículos além de silenciarem na época deram apoio ostensivo ao regime ditatorial. O Globo é um exemplo, embora alguns digam que o patrono da empresa, Roberto Marinho, tenha livrado a cara de jornalistas que não eram bem vistos pelo regime. Mas os mais críticos, em função da subserviência aos generais de plantão, não absolvem as Organizações Globo, mesmo se eventualmente o seu patrono tenha livrado a cara de um ou outro jornalista do seu quadro das garras da repressão.
Não há notícias de que as Organizações Globo chegassem a ceder veículos para o aparelho repressivo, como fez o grupo Folhas, de Octávio Frias, em São Paulo. Os veículos de comunicação dos Marinhos se limitaram a abrir seus espaços de forma áulica aos generais de plantão e seus seguidores.
É preciso que os brasileiros, sobretudo os das novas gerações, sejam informados sobre o que se passou nos anos de chumbo e como se comportaram alguns setores que hoje se dizem defensores da democracia.
No relatório apresentado pela Comissão da Verdade, alguns fatos tornados públicos não chegam a ser novidade, como, por exemplo, que os que pegaram o poder à força torturavam opositores logo depois da derrubada do presidente constitucional João Goulart.
A tortura, portanto, não foi instituída a partir de 1968 com a promulgação do AI-5, como alguns ainda hoje apoiadores do regime justificam. Esta gente, que navega nas ondas do Clube Militar, ao deturpar a história diz que o regime ficou mais duro para enfrentar a guerrilha. Omitem o que acontecia antes de 13 de dezembro de 1968. E que a ação do próprio regime fez com que alguns setores da oposição, de forma precária, partissem para a luta armada por entenderem que seria o único caminho para acabar com o estado repressivo.
Exemplo argentino
A Argentina tem dado exemplo de como ir fundo nas questões da repressão. Além de julgar agentes do Estado que fizeram barbaridades em matéria de violações dos direitos humanos, agora mesmo a Justiça processou três ex-diretores da filial da Ford no contexto de uma causa que investiga o sequestro de trabalhadores em uma filial da empresa norte-americana.
Por ordem da juíza federal Alicia Vence, os acusados Pedro Muller, do setor de manufaturas, Guillermo Galarraga, da área de relações trabalhistas e Héctor Francisco Jesús Sibilla, ex-chefe de segurança da empresa estão respondendo na Justiça pelo sequestro de 24 trabalhadores da Ford, na localidade de Pacheco, próximo a Buenos Aires, ocorrida entre 24 de março e 20 de agosto de 1976.
Os três, segundo a juíza, facilitaram informações sobre os trabalhadores à repressão. Ou seja, eram dedos-duros, fornecendo até fotografias e os endereços particulares para que as autoridades os prendessem.
Embora os acusados tenham sido considerados “participantes primários dos crimes de privação ilegal da liberdade dos trabalhadores, duplamente agravada por ter sido cometida por abuso funcional, com violência e ameaças”, mesmo assim a juíza ordenou o embargo dos bens dos processados, até alcançar a soma de 750 mil pesos, correspondente a cerca de 143 mil dólares.
É bem possível que a Comissão da Verdade destas bandas esmiuçando arquivos e toda a papelada da repressão possa chegar aos dedos-duros que infelicitaram a vida de muitos brasileiros, ajudando inclusive o trabalho da repressão, e seguem por aí como se não tivessem nenhuma responsabilidade sobre os acontecimentos.
Em suma, não basta conhecer os 1.500 agentes do estado ditatorial brasileiro, sejam militares ou civis, que cometeram atrocidades, inclusive estupros de opositoras, como informa a Comissão Nacional da Verdade. Para virar a página definitivamente é preciso fazer o mesmo que está sendo feito na Argentina.
Por lá, em um primeiro momento duas leis, Ponto Final e Obediência Devida, livravam a cara dos que cometeram violações dos direitos humanos. Bastou aparecer um Presidente com vontade política, como Nestor Kirchner, para que a lei de anistia fosse revogada em 2003. A Corte Surpema em 2005 confirmou a constitucionalidade da decisão e começaram os julgamentos.
Por aqui, a instância máxima da Justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF), em um julgamento lamentável, confirmou a Lei da Anistia que deixa impune agentes do Estado que cometeram crimes de lesa humanidade. E ainda não apareceu um Presidente que tivesse vontade política para levar adiante para o Congresso o mesmo que aconteceu na Argentina.
*É correspondente no Brasil do semanário uruguaio Brecha. Foi colaborador do Pasquim, repórter da Folha de São Paulo e editor internacional da Tribuna da Imprensa. Integra o Conselho Editorial do seminário Brasil de Fato. É autor, entre outros livros, de América que não está na mídia, Dossiê Tim Lopes – Fantástico/IBOPE