Entrevista – Amália Simonetti: Vocação para a Educação
Ela se emociona ao falar do Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), que ajudou a criar. É tão encantada com o poder da educação e a força do professor que, mesmo quando teve câncer, não deixou os trabalhos.
Publicado 27/05/2013 10:06 | Editado 04/03/2020 16:28
A professora Amália é empolgada. Fala com entusiasmo de educação, gesticula quando conversa sobre pedagogia e se emociona quando conta do processo de transformação na escola. Gosta de discutir a alfabetização. E mais: gosta de ver as coisas acontecendo. Leia a seguir entrevista concedida ao jornal O Povo e publicada nesta segunda-feira (27/05):
Amália Simonetti participou da formação e do nascimento do Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), adotado pelo Governo do Estado, como forma de alfabetizar as crianças da rede pública de ensino até os 7 anos de idade. A professora descreve cada etapa com o orgulho de quem vê os resultados dando certo. Mas não faz isso motivo de vaidade. Nem se diz “a mãe do Paic”. Ela foi “aquela que foi com olhar de professora”, como define. E se mostra surpresa com a dimensão que o projeto tomou. O Paic inspirou o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), do Governo Federal. “Me emociona saber que é uma coisa do Ceará. É o nosso saber respeitado”, justifica.
E, como todo professor é também um contador de histórias, Amália é autora de livros infantis. Um deles, Parece… mas não é, “foi feito para o professor aprender”. Mas tinha de atrair a criança.
A professora usa o conceito “palavramundo” de Paulo Freire para explicar como reuniu linguagem e realidade na alfabetização. “Tinha que ser um desafio, que toda criança gostasse. Eu pensei: ‘toda criança gosta de animal. Animal e ludicidade’”. Foi o que fez. Em cada letra, um ser diferente. Parece urubu… mas é abutre. Começa com a letra A. Parece touro… mas é búfalo. Começa com a letra B.
Mas, como todo mundo é sempre professor e aluno, como nos lembra Rubem Fonseca, a professora Amália precisou aprender a olhar mais para si. Com a descoberta do câncer, em 2011, ela se refugiu na crença na força humana. Logo após receber o diagnóstico, viajou a Salvador (BA) para coordenar a equipe que implantava o programa de alfabetização lá. Só na volta é que contou da doença ao marido. Passou a ler Nietzsche, buscou outros conceitos. Mesmo na quimioterapia, não deixou os grupos de estudos. Fazia as reuniões pelo Skype. “E assumi minha careca”, sorri. É mais uma das boas histórias de superação que ela nos conta.
Como começou a sua relação com o Paic?
Foi em 2005, logo após uma pesquisa realizada pela Assembleia Legislativa sobre a situação da alfabetização no Ceará e que mostrou aqueles resultados que o MEC (Ministério da Educação) já vinha mostrando, que as crianças estavam chegando à 5ª série sem ler e escrever. Diante dessa situação, alguns secretários de Educação dos municípios se reuniram na Aprece (Associação ds Municípios do Estado do Ceará). Tinha que ter uma saída. Eu já tinha escrito esse livro, o Desafio de alfabetizar e letrar, e aqui na universidade, no Departamento (de Economia Doméstica), tem o NDC, o Núcleo de Desenvolvimento da Criança, que é uma escola de aplicação e na época tinha até a alfabetização, que fazia parte da educação infantil. Por isso, minha ligação com a alfabetização. E fui procurada, nós, da universidade, nos reunimos no NDC e tentamos ver como podíamos ajudar. Não tinha esse modelo, essa estrutura de Paic. Tinha a ideia do Paic, dos eixos, mas não tinha o formato, a estrutura e nem era do Estado. Era da Aprece e da Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação).
A senhora foi procurada por quem?
Pela Aprece e pela Undime, que já tinham uma pessoa da universidade, o professor Cláudio Marques, que era do setor de avaliação. Mas precisavam de uma pessoa da parte pedagógica. Eu me dispus a ir com a professora Cilvia Queiroz, que também é do NDC, e nós fomos para a Aprece. O que mais que me encantou foi a gente não saber o que fazer. Eu pensei: “Eu tenho tanta coisa pra fazer, ainda vou me meter num negócio desses?”. Mas sabe quando você volta de uma reunião inquieta com a situação, com a responsabilidade da situação? E resolvemos na Aprece, junto com as pessoas responsáveis na época, que eram a Luiza e a Márcia Campos, visitar alguns pontos do Ceará. Conversar mais de perto com esses secretários, os prefeitos.
Ir pro Interior.
Ir pro Interior. Escolhemos alguns pontos e viajamos. Pensei: “Vai ser ótimo ter esse reencontro com o Ceará”. Eu já morei em Independência, em Iguatu… Mas é diferente. Sou do Rio Grande do Norte, mas, desde os 15 anos, moro aqui. Então, fomos para Iguatu e reunimos o pessoal daquela região. Depois ao Cariri. Depois, para a região de Sobral, Ubajara, Russas, Aracati. A gente foi para regiões que representassem cada região do Estado. Em todas, eles respondiam como nós poderíamos ajudá-los, o que eles realmente queriam diante dessa situação. E era unânime, parecia combinado, todas as regiões diziam: “A gente quer uma proposta para alfabetizar. A gente precisa de uma proposta mais objetiva, mais palpável”.
Por que essas cidades?
Eram cidades-polo que pudessem acolher. E quem mobilizava no município era a Undime e a Aprece. Mobilizavam secretários que estivessem interessados, porque na época não eram todos os municípios que queriam participar não. Depois dessa reunião, 60 municípios aderiram. Aí, a gente já tinha escutado o que as pessoas queriam: “A gente não quer uma cartilha nem uma receita pronta. A gente quer um caminho, um caminho prático”’. Pensei: “Já sei o que eles querem. Eles querem uma reflexão da prática”. E a partir dessa ideia da reflexão da prática e baseada nos dois programas do MEC, o Profa (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores), um programa de alfabetização do MEC, e o Pró-Letramento, que era de um grupo lá de Recife, do Ceel.
E como começou o trabalho com os municípios?
A gente começou com esses 60 municípios a criar uma ideia de uma proposta didática. Ouvindo, com interlocuções. A gente fazia encontros e eu levava várias propostas, atividades. Eles definiam, a gente conversava, voltava. Isso aconteceu em 2006 e início de 2007. Como estava dando resultado e estava tendo uma empolgação muito grande desses municípios, o governo propôs liderar, comandar esse programa e abrir para que todo mundo do Estado que quisesse participar pudesse participar.
Qual era a proposta inicial?
Nessa época, a alfabetização já é primeiro ano do ensino fundamental. Começamos a ir no Estado, mas ainda não tínhamos o material pronto, tínhamos a ideia inicial, o modelo inicial, a proposta inicial, que foi dialogada com esses 60 municípios. No começo a gente chamava essa proposta de “Abracadabra”. A gente estava procurando uma coisa que abrisse. Abracadabra começa com abra e termina com abra. E era isso que a gente queria, que não fosse nada fechado. E fomos procurar o Abracadabra da alfabetização do Ceará. A gente precisava encontrar nossa proposta, dialogando. Acho que fui empolgando e todo mundo se empolgando.
E foi clareando.
E foi clareando. É tanto que, quando o Estado propôs, para surpresa nossa, independente de qualquer partido político, todos os municípios aderiram. A gente não esperava.
Quando o Estado resolveu tomar para si, não houve uma certa resistência?
Não. Engraçado, naquele momento as coisas estavam de uma forma mais apaziguadora. Acho que a gente vive um medo tão grande, um trauma tão grande do analfabetismo. É uma questão que mexe com todo mundo. Ricos e pobres. Quando chega na alfabetização, todos perguntam: “Será que ele vai ler? Quando ele vai ler?”. Pode ser rico, pobre, qualquer idade, há essa preocupação. Era um tema que envolvia todos para além de partido e para além do lugar onde estavam.
Vocês tinham a dimensão de onde poderiam chegar?
A Seduc abraçou. Todo mundo foi muito empolgado. Foi uma história! Se a gente já soubesse a dimensão a que ele ia chegar, acho que a gente não tinha conseguido. Porque ele foi nascendo, ele não já veio com um modelo pronto. Gerado com a cara do Ceará, com as pessoas se juntando, com a gente ouvindo.
A que a senhora atribui tanta empolgação? Por ser um projeto novo ou pela dimensão?
Acho que pelo fato de mexer com a alfabetização. Era a tragédia. Essas crianças estão na escola, adquiriram o direito de escola, conseguimos o direito delas permanecerem na escola, não tem mais tanta evasão, e a coisa principal, que era alfabetizar?
E qual foi a fórmula?
Primeiro eu acho que foi porque não foi uma coisa imposta, ele teve uma construção dialogada e ouvida em todo o Estado. A gente estava presente nos municípios. Eram seis coordenadores; em cada polo tinha um. Mas eu acho que foi a paixão de todo mundo pelo tema. Pela necessidade tremenda. Numa época dessas as crianças não estarem lendo? É uma coisa que mexia com todo mundo. Não mais com aquele sentimento de pena, de culpa, era de responsabilidade mesmo.
Vocês estavam lidando não com uma escola nem com um grupo, mas com o Estado inteiro. Nunca passou pela cabeça da senhora que poderia não dar certo?
Não. Eu tinha tanta certeza. Lembro que, uma vez, eu disse para a Izolda (Cela, secretária da Educação do Estado) e pra equipe toda: “Esse é o melhor método, essa é a melhor proposta, vai dar certo”. Porque já tinha dado certo nos outros 60 (municípios). E outra coisa: eu já tinha muita vivência com isso aqui. Tanto no NDC, teoria e prática, como na escola Espaço Vida, que eu dou assessoria também, que é a escola da minha família. E a gente foi vendo a mudança que foi acontecendo.
Em termos práticos, como foi a estrutura de vocês usaram?
Para montar essa proposta, juntou toda a minha teoria e do meu grupo, todo o teórico-prático. Por exemplo, Emídia Ferreira diz: “A criança pensa…”. Sim, mas o que ela pensa? “A gente tem que trabalhar as práticas de oralidade, leitura e escrita’’. Sim, mas como? Foi aí que eu montei isso aqui. E dialogando nas formações com todo mundo. E a maioria das formações, no começo, eram aqui. Eu mesma que fazia. Acho que a minha paixão empolgava todo mundo. Também teve a confiança que elas tiveram em mim. No começo, as professoras não confiavam na Seduc, achavam que era papo do governo. Eu dizia: “Esqueçam papo de governo, vamos pensar na gente. Vamos aproveitar esse momento e falar como educadores, como pensantes da educação. Deixa os políticos falarem o que quiserem”.
Quando os primeiros resultados começaram a ser vistos?
Foi logo em 2008, fim de 2007. A primeira versão desse material foi em 2008, porque a gente passou o 2007 testando, entregando manualmente. Para fazer o piloto nós dialogamos. Para fazer a parte experimental, fomos para Pacoti, aplicamos com professores da zona rural. A gente experimentava. Eles diziam: “A gente não está entendendo”. E foi muito importante esse trabalho. Nós íamos toda sexta- feira, passamos assim um mês ou dois. Toda sexta-feira o grupo da gente, junto com a Seduc, ia pra lá. Nesse dia, ia pra uma escola e recebia todas as professoras do município. ‘Todas as professoras do município’ só somavam 20. Isso em Pacoti. Todo mundo queria que a gente fosse nas cidades. A gente foi ajustando. Outra coisa que foi pedida: que as formadoras de cada município não fossem por indicação, por causa da política. Tinha exigências: que tivesse o Profa ou que estivesse fazendo o Pró-Letramento e que fosse estudiosa em alfabetização. Outra coisa que eu acho que foi dando certo foi esses apelos técnicos serem atendidos.
A senhora se lembra de algum caso que tenha chamado atenção?
Ah, várias as vitórias. Em Pacoti, eu vivenciei uma professora que disseram assim: “Amália, fica estudando com aquela professora que é a mais tradicional, é bem resistente. Fica na turma dela”. Foi emocionante no dia em que eu vi a professora começar a gritar, a me abraçar e dizer: “Os meninos pensam, os meninos pensam!”. E eu: “E você achava que eles não pensavam?”. E ela dizia: “É porque eu não acreditava que era assim”.
Mas o que mudou dentro da sala de aula?
O método. Elas levaram materiais diferentes pra sala, acreditaram no letramento, na inserção. Ver que se alfabetiza na inserção. Desmitificar a alfabetização do ba-be-bi-bo-bu, da caligrafia, da cópia das letras.
A senhora sentia que elas estavam desacreditadas dos alunos por estar nesse mesmo método há tanto tempo?
Foi bom o Profa e o Pró-Letramento terem dado uma sustentabilidade teórica, que elas abriram a mente. Elas tinham vontade de fazer, de dar uma mudada na sala de aula e não faziam porque os livros que estavam sendo escolhidos e a própria situação não davam suporte. Eu entrei uma vez na sala e a atividade da professora era: “Complete: ba-be-bi-bo…, ta-te-ti-to…”, aquela história das famílias silábicas. A gente perguntava: “Por que faz assim?”. Algumas diziam: “Porque a gente aprendeu assim. A gente tem medo que não dê certo de outro jeito”, “É porque assim é mais fácil”, “É porque a maioria das cartilhas vem assim”.
Como a senhora teve acesso a esse interesse do Governo Federal, de se inspirar no Paic?
Fui acompanhando. Eles vinham visitar a equipe de gestão, na Secretaria.
Quando começou esse olhar diferente para cá?
Em 2010, 2011 eles já estavam formatando. Em 2012, 2013 agora estão lançando. E eles vieram aqui. Eu tive algumas reuniões com a equipe deles, para mostrar o material. E outra coisa: o grupo teórico lá que está na formatação das formações é o mesmo grupo que eu tive, que é o de Pernambuco. Eu não estou no comando no Pnaic (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa) porque, no caso aqui da gente, já era a UFC que estava nesse comando. Também por conta do meu doutorado. E eu tive um câncer em 2011. Então, tive que parar um pouco. Mas foi até terapia: enquanto eu fazia quimioterapia, até reunião pelo Skype fazia.
A doença não foi motivo para a senhora se afastar?
Não. Não abri mão, não abri. Eram só aqueles dias depois da quimioterapia que eu já sabia o que acontecia. A médica Célia Barreto me chamou para escrever um livro com ela, para mostrar a forma como eu encarei e superei.
Hoje, pelos resultados já obtidos, qual é desafio?
Agora é matemática. Tem dois anos que a gente está dando formação de matemática.
Dentro desse processo, a senhora se intitula “a mãe do Paic”?
Não. Do Paic, não, porque ele é muito mais que uma questão didática. A Aprece, a Unicef e a Seduc é que seriam grandes figuras.
E a professora Amália se insere como?
Eu seria a professora. A pesquisadora, aquela que foi com olhar de professora. No meio dessa selva política, acho que o que deu certo foi eu ir com esse olhar de professora. Eu não queria saber de partido político. Eu não gosto dessas coisas. A minha forma é de professora mesmo, de botar limite, ser apaixonada mesmo.
Algum dos seus filhos seguiu a área de educação?
Nenhum dos dois, acredita? Mariana, a mais velha, tem uma empresa de entretenimento, a Bambolim. Ela dizia assim: “De uma coisa eu tenho certeza na vida: professora nunca!”. Terminou na área de administração. E o Artur faz Direito, mas é músico também.
A senhora tem fé?
Na força humana. Com o câncer, nos primeiros três meses, a gente pensa que vai morrer. É porque é difícil. Eu passei a ler Nietzsche e o conceito de corpo sem órgão, entre a lucidez e o delírio. Toda vez, antes de eu sair pra fazer a quimioterapia, eu olhava pro mar e gritava bem alto: “Ahhh”. Era uma forma de expurgar.
A senhora parece uma mulher de força.
Só tenho medo de sapo. (risos)
Fonte: O Povo