Bertolino: O PCdoB e o jornalismo marrom de Leonencio Nossa

Artigo no jornal O Estado de S. Paulo e o livro Mata! demonstram como a mídia abusa das invectivas, se utilizando do anticomunismo mais primário. Dados e fatos facilmente comprováveis são ignorados, o que resulta em mentiras deslavadas, conceitos artificiais e manobras maledicentes.

Por Osvaldo Bertolino*

Leonencio Nossa é um jornalista que recentemente frequentou a mídia com certo destaque por conta da publicação do seu livro Mata! pela Companhia das Letras. O tema, conforme o subtítulo da publicação, é a relação do major Curió com “as guerrilhas no Araguaia” – o uso do plural não ficou esclarecido, assim como muitas outras questões que ele aborda. Mas, ao que parece, segundo “o premiado repórter que teve acesso a um dos mais secretos arquivos da ditadura” – conforme anunciado logo abaixo do nome do autor em destaque no alto da capa do livro –, é um adepto da nefasta prática do jornalismo marrom: as invectivas.

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Leonencio Nossa voltou a praticar seu esporte preferido como jornalista em uma matéria intitulada “PCdoB troca fundadores por ‘celebridades’”, publicada na edição de 6 de maio de 2013 do jornal O Estado de S. Paulo. Segundo ele, o programa do Partido Comunista do Brasil na TV tirou Maurício Grabois e Pedro Pomar de cena para pôr Pagu e Carlos Drummond. Como no livro, o jornalista publicou dados falsos e datas erradas – Grabois e Pomar, segundo suas invectivas, além de serem fundadores da legenda estariam completando cem anos em 2013 –, emitiu conceitos ordinários – o PCdoB teria maquiado marcas centenárias – e mentiu sobre a trajetória de personalidades como Carlos Drummond de Andrade, Pagu e Jorge Amado no Partido Comunista do Brasil.

Caminho da mentira

Seria compreensível se ele questionasse a afirmação de que esses personagens pertenceram ao PCdoB – afinal, em geral os jornalistas da grande mídia não têm tanta liberdade para serem rigorosos com os fatos, principalmente quando eles são históricos. Mas Leonencio Nossa optou pelo caminho da mentira, pura e simplesmente. Ele poderia ter dito que esses personagens – assim como Olga Benário, também citada na matéria – pertenceram ao Partido Comunista do Brasil, o antigo PCB. Mas como a verdade não foi o critério usado, Leonencio Nossa passou por cima da história para avançar com rapidez sobre outras questões.

Ele diz, por exemplo, que Prestes, considerado pelo PCdoB, até recentemente, um “oportunista de direita”, é outra das estrelas mostradas na TV. “Nos anos 1960, Prestes forçou a saída de Grabois e Pomar do ‘partidão’ – e os dois foram fundar a legenda divergente”, inventa o jornalista. Não é preciso muito esforço para se constatar aqui uma mentira deslavada – Amazonas, Grabois, Pomar e outros lideravam a reorganização do Partido Comunista do Brasil quando foram “expulsos” do Partido Comunista Brasileiro, ao qual nunca pertenceram.

Proselitismo sobre o Araguaia

O jornalista devaneia sobre mesquinharias como a beleza da deputada Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), a aparição de Lecy Brandão e a fala do senador Inácio Arruda (PCdoB-CE), demonstrando que ele escreveu a matéria com a clara intenção de fazer provocações anticomunistas. E elas aparecem nitidamente quando ele diz que “o legado de Grabois e Pomar e temas como a guerrilha do Araguaia – episódio crucial na história do partido – foram empurrados pelo PCdoB para blogs e sites na internet”. Segundo Leonencio Nossa, “a decisão de ignorar o Araguaia já era esperada”, citando a fala de Maria Eliana Castro, irmã do guerrilheiro Antonio Teodoro, o Raul, para quem “o PCdoB nunca põe o Araguaia na pauta”.

Os comunistas não fazem proselitismo sobre o Araguaia, uma prática antiga do PCdoB. Organizaram a Guerrilha para cumprir uma missão necessária naquelas circunstâncias históricas. Resgatar a memória e reverenciar aquele feito, como o Partido tem procedido sistematicamente, é um dever. Mas, como é público e notório, o PCdoB não usa o ocorrido para outros fins. E isso nada tem a ver com a calúnia de Leonencio Nossa ao afirmar que, “nas últimas duas décadas, a sigla (o PCdoB) pegou carona em coligações do PT”. Da calúnia, ele vai para mais uma mentira, encerrando a matéria: “Em seu revisionismo, (o PCdoB) deixou de lado sua criação em 1962 e diz ter 91 anos.”

Lugar selvagem

No livro Mata!, Leonencio Nossa dá vôos mais altos. A começar pela citação de informações sem revelar a fonte, como é o caso da origem da família Grabois, pesquisada para a biografia do comandante militar da Guerrilha do Araguaia intitulada Uma vida de combates. Há evidências de que ele usou também informações do documentário Araguaia – a Guerrilha vista por dentro, igualmente sem citar a fonte. Mas o pior são as falsificações históricas, as mais graves delas, como sempre, relacionadas ao Partido Comunista do Brasil. As barbeiragens vão de detalhes prosaicos, como a designação de João Amazonas como presidente do PCdoB na época da luta no Araguaia, à definição dos objetivos da Guerrilha.

Leonencio Nossa escreve na página 43, por exemplo, que o PCdoB descrevia o Araguaia como “terra inóspita”, um “lugar totalmente miserável e selvagem”. O invectivo jornalista usa a citação de Amazonas de que não era possível “fazer a guerrilha na avenida Faria Lima ou na avenida Rio Branco” para se esmerar em mais uma de suas provocações. “O lugar selvagem, ora fantasioso, ora real, isolado, distante e pobre, o sertão e seus obstáculos, era propício à construção de uma história de heroísmo”, afirma, como se os dirigentes do PCdoB fossem irresponsáveis a ponto de montar um movimento guerrilheiro apenas para exercitar suas predileções diletantes.

Mentiras deslavadas

Pedro Pomar e Maurício Grabois também são vítimas das invectivas de Leonencio Nossa. Segundo ele, Pomar era um sindicalista que virou deputado constituinte, sendo que ele não foi nem uma coisa nem outra. Originário do movimento estudantil, Pomar só seria eleito deputado em 1947, quando a Constituinte não existia mais. Sobre Grabois, o jornalista dá crédito a uma calúnia anticomunista torpe: a de que Jorge Amado teria relatado que, pelo Partido, Grabois, que era judeu, aceitara as regras antissemitas da União Soviética. Ainda sobre Grabois, Leonencio Nossa reproduz, acriticamente, citações do que seria o “diário” do comandante da Guerrilha divulgado pelos que comandaram a repressão no Araguaia.

As invectivas são repetidas amiúdes; umas menos graves – como, por exemplo, a de que Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, era o comandante militar da Guerrilha, e a de que Henrique Cordeiro Oest “entrou num dos navios militares enviados por Vargas para a 2ª Guerra Mundial”, quando na verdade ele integrou o contingente da Força Expedicionária Brasileira (FEB) como militante do Partido Comunista do Brasil – e outras muito graves. Segundo ele, como o PCdoB “continuava defendendo a luta armada como estratégia política” – uma mentira deslavada –, o Partido “conseguiu apenas o apoio moral da Albânia, pequena república sob as ordens de Moscou” – mais outra mentira deslavada, visto que os comunistas albaneses romperam com a União Soviética no começo dos anos 1960.

Liberdade de expressão

Leonencio Nossa usa reiteradamente o nome de João Amazonas para tentar dar legitimidade às suas invectivas. A mais insidiosa citação está na página 216, em que ele afirma que o histórico dirigente do PCdoB escapou da Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976, porque “viajou às pressas para o exterior”. Trata-se de uma torpeza, uma calúnia inominável. Qualquer pesquisador com um mínimo de seriedade sabe que a ausência de Amazonas no episódio ocorreu por mera casualidade. Na página 220 ele volta à carga ao afirmar que Amazonas, “ainda no exílio na Europa”, defendera “uma aliança com o general Hugo de Abreu, um dos algozes da guerrilha”. Os fatos são bem diferentes: o dirigente do PCdoB defendeu, no jornal Movimento, a Frente Nacional pela Redemocratização, na qual estaria, circunstancialmente, o general Abreu.

Pode-se afirmar que esses casos evidenciam uma típica prática de jornalismo marrom, totalmente desprovido de ética, muito comum nos dias de hoje. Um jornalismo desonesto, persecutório, panfletário e torpe. Liberdade de expressão não é um direito hierarquicamente superior aos demais direitos e garantias individuais e coletivas. Na Constituição está no mesmo patamar o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. Todos igualmente invioláveis e indispensáveis. É preciso haver um equilíbrio entre eles. A defesa da liberdade de expressão exige protegê-la contra abusos como esses. Na democracia, são tarefas conciliáveis. Fora disso, a liberdade de imprensa não passa de balela.

* Osvaldo Bertolino é editor do Portal da Fundação Maurício Grabois