Raul Fitipaldi : 36 anos da Ciranda das Velhas Loucas
Lá, pelo ano de 1989 estava casado com uma bela pessoa, fascinante artista plástica e filha de um lindo trabalhador peronista, que tinha um apartamentinho da obra social em Mar del Plata, como boa parte da massa trabalhadora de classe média baixa. Já morava eu em Mi Buenos Aires Querido.
Por Raul Fitipaldi
Publicado 27/04/2013 22:19
Era um entardecer turvo, cheguei cedo do Grupo Cultural que andava com algumas crises e me deitei para assistir TV. Nesse tempo a mídia monopólica era o mesmo lixo que agora. Havia uns flashes de 9 Diário, canal à época da família Romay. Senti o barulhinho da chave, minha companheira chegava; sentia-se desde o quarto o cheiro de cigarro forte, irritação nos pequenos movimentos. – Velhas loucas, gritou! Imprecava das velhas que eu estava assistindo na tela.
Marcela tinha demorado por causa de uma mobilização das Madres de Plaza de Maio, às que ela, como muita gente, tratava ironicamente de Las Locas de la Plaza. Parecia-me raro que mesmo uma intelectual se deixasse levar por tais monstruosidades da imprensa golpista. Mas, se deixava sim, e falava delas com fúria. Não lhes perdoava ter gasto grana num táxi desde o Centro até a Paternal por causa da lentidão do trânsito que elas propiciaram. Chuviscava pena e dor na rainha del Plata.
Como vivia absorvido nos problemas culturais desde o momento em que desci do ônibus de turismo que me levou de Montevidéu para Buenos Aires, em 1985, dei de ombros e não tive argumentos qualificados, calei. Segui assistindo a roda-marcha no jornal central; a jornalista poderia hoje ser perfeitamente da CNN. Seu nome é ainda Sílvia Fernández Barrios.
Eu segui atento. Eram muitas mulheres, entre 40 e 60 anos a maioria, giravam como pombas em ritual de esperança e justiça. Uma sensação de amor, loucura e rancor me levantou da cama. Acendi um cigarro, fui até a cozinha, voltei ao quarto, e lá seguiam as loucas.
Essa roda daquelas mães despojadas, roubadas, vitimadas, ironizadas, mudou para sempre a visão mundial do que significa ter um familiar desaparecido de forma violenta. Um morto vivo imortal que se vela todo dia, e se reencontra toda noite.
No dia seguinte, sexta-feira, atravessei por acaso a Praça de Maio, parecia que o chão se mexia, imaginei ou tudo girava ao redor. Algo mudou no dia anterior, só para mim, o resto de Buenos Aires sabia desse pequeno terremoto humano. Era a sensação de que esta Pátria Grande que baixa do Rio Bravo até Las Malvinas nunca mais voltaria a ser igual.
Na verdade, passavam-se doze anos que Las Madres de Plaza de Mayo vinham rodando e rodando, só que agora com ela giravam os jovens, os pobres de toda pobreza, as mulheres com suas demandas. Girava uma transição democrática ainda amarrada nos quartéis, a cultura nova de liberdade, todavia, tutelada. Doze anos girando e eu apenas tinha notado no dia anterior que, nos passos dessas mulheres, Hebe, Stella, Juanita, Azucena, caminhávamos para gritar um dia ALCARAJO, e tantas outras consignas pela Independência definitiva. Essa independência que com elas ainda hoje buscamos em mandato sereno, constante, inapelável, que nos deixaram nossos mortos, esses que nos deram a vida para mudar e para nos defender do Império e suas instituições moribundas.
Não sei que pensará hoje Marcela, passaram-se tantos anos: 24 da minha descoberta, 36 da primeira Ciranda das Madres de Plaza de Maio em 1977. Tudo mudou tanto graças a essa loucura.
Enviado por Urda Alice Klueger